Discurso do Presidente
da SBPC, Ennio Candotti
À Glaci Zancan
e Telmo Araújo, in memoriam
À José Reis, fundador da SBPC, nos 100 anos
do seu nascimento
O naturalista, primatólogo, holandês,
radicado há mais de vinte anos no Brasil, na Amazônia,
em Manaus, Marc Von Roosmalen, foi condenado a 14 anos de
prisão e cumpre pena.
Atribui-se a condenação a infrações
cometidas por ele no exercício de pesquisas, como
por exemplo a falta de autorizações para coletar
e transportar macacos por ele estudados. Von Roosmalen é
um cientista, que, por sua obra, merece o nosso respeito
e a nossa defesa. A alegada desobediência burocrática,
não justifica a pena.
Não há noticia de penas semelhantes aplicadas
a burocratas que nunca respondem aos pedidos de autorização:
formal e pacientemente solicitados por pesquisadores.
O que devemos decidir – sociedade
e comunidade cientifica, governo e Congresso – é
se a pesquisa cientifica é uma ameaça ao patrimônio
público.
Decidir se as intervenções na natureza, usuais
na pesquisa, podem, de alguma forma, perturbar e colocar
em risco os equilíbrios ecológicos que a Constituição
do país manda preservar para as futuras gerações.
Uma vez comprovado que a pesquisa cientifica não
perturba a natureza, mas apenas a estuda, interferindo,
sim, mas sem comprometer os equilíbrios ecológicos,
então a pesquisa deve ser definitivamente descriminalizada.
Ela não pode ser objeto de ações
de vigilância e punição por parte da
polícia federal ou ambiental. Dando a burocratas
e agentes armados a missão de controlar e tolerar
o estudo e a educação.
Pesquisar, entender, estudar são direitos fundamentais,
como o ir e o vir, reunir-se, falar, expressar idéias
e opiniões.
Pelo contrario, ela deve ser incentivada. Precisamos formar
muitos naturalistas, antropólogos. Indisciplinados
ou não, queremos que eles sejam rigorosos e preservem
o espírito crítico ao cultivar a arte da dúvida
na busca do conhecimento.
Há outro aspecto da pesquisa cientifica
que devemos esclarecer com a sociedade e o Congresso: o
intercâmbio cientifico internacional não pode
ser confundido com biopirataria.
Ele é necessário, dependemos
dele e aprendemos com ele, através do livre intercâmbio
de idéias com nossos colegas de Institutos de Pesquisas
de outros países, a entender o mundo em que vivemos.
Não podemos construir instituições
cientificas sem essa cooperação, elas necessariamente
são parte de uma rede internacional, que se formou
em tempos remotos e se confunde com a própria história
da ciência moderna.
A biopirataria deve, sim, ser combatida, mas é preciso
saber distinguir entre quem trabalha para conhecer a natureza
e divulgar ao público seus conhecimentos e quem faz
trafico de informações e conhecimentos científicos
ou tradicionais. Ou ainda de quem promove o contrabando
ou mesmo o comércio de animais, plantas, sementes
etc.
Nesse sentido, para cumprir – com
rigor e determinação – a missão
de proteger a natureza e, sobretudo, de acelerar o seu estudo
e conhecimento, deveríamos estabelecer amplo acordo
entre Institutos de Pesquisa, Escolas Técnicas, Universidades
e as agências de fiscalização e licenciamento.
Juntos, deveríamos compartilhar as responsabilidades
de classificação e proteção
do material biológico, e educar e promover a sua
conservação.
Multiplicaríamos por 100 o numero de tutores da natureza
e de educadores dedicados à sua conservação.
O sistema de proteção e defesa dos interesses
nacionais ganharia, assim, nova dimensão científica
e sócio-ambiental.
É bom reafirmar que precisamos de
muitos pesquisadores, professores de ciências, capazes
de empolgar os jovens interessados no estudo da natureza,
da sociedade e de sua história.
Precisamos multiplicar, sim, e de modo acelerado
(menção ao Acelera Amazonas) o número
de cientistas nesta região, de mestres, engenheiros,
sanitaristas e pesquisadores.
Setenta por cento das pesquisas e das informações
científicas consistentes sobre a Amazônia são
publicadas em revistas internacionais por pesquisadores
estrangeiros – que realizaram suas pesquisas em plena
legalidade, com todas as certidões devidamente carimbadas.
Um índice razoável – se, de fato, estamos
preocupados com a soberania de nossa inteligência
– seria justamente o contrario: 70% pesquisadores
nacionais, 30% estrangeiros.
Hoje, como há 20 anos, o Museu Goeldi
e o Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa)
têm orçamentos muito pequenos, juntos recebem
aproximadamente 1/5 dos orçamentos de uma Cnen ou
do Inpe.
Esses Institutos e as Universidades da região,
além de ampliar significativamente a sua participação
na produção científica sobre a Amazônia,
devem também ter resposta clara para uma pergunta
de profundo valor social e científico:
A floresta em pé vale mais do que
a madeira de suas árvores? Por que? Como? Para quem?
Ao derrubar árvores, vende-se a madeira, na terra
planta-se ou cria-se gado, que tem valor conhecido. É
uma substituição criminosa, alimentada pela
ignorância. Estima-se – e isso será discutido
nessa Reunião Anual – que a madeira corresponde
a ¼ do valor da árvore. Frutos, óleos,
sementes, resinas etc. têm valor comercial muito superior
ao da madeira. Alem do fato de que as extensas áreas
de floresta têm papel fundamental nos equilíbrios
climáticos do Planeta.
Por outro lado, se conseguirmos decifrar
os segredos das árvores como deciframos os das galáxias
distantes teremos dado um grande passo na nossa civilização.
Entender – no sentido de saber reconstruir com meios
próprios como funcionam estas máquinas maravilhosas,
que, em poucos m² de terreno, transformam, com a ajuda
de microorganismos, água, ar, luz solar em folhas,
frutos, sementes, óleos, aromas, e madeira..., além
de absorver e emitir CO2 – é o desafio dos
naturalistas, botânicos, microbiologistas, físicos
e bioquímicos. Mas isso exige um esforço conjunto
da sociedade, das agências de Governo, dos Institutos
e Universidades e seus pesquisadores.
Na Amazônia, há outros grandes
desafios sociais, científicos e tecnológicos.
Há, por exemplo, questões mal resolvidas de
Engenharia de Transportes. Quantos Institutos de Engenharia
se dedicam ao estudo dos transportes fluviais? Para não
falar em solos, telecomunicações, espaço
etc.
A bacia do Tieté poderia ser monitorada de Manaus?
Por que então a floresta amazônica é
monitorada de S.José dos Campos? (sem prejuízo
de intensa e necessária cooperação).
Os laboratórios instalados na região são
importantes. Como verificar se as imagens colhidas de sensores
remotos correspondem mesmo à realidade e a qual delas?
Em 1983, na primeira Reunião Anual
da SBPC realizada aqui em Belém, alertávamos
para os sombrios cenários que se desenhavam no horizonte,
se persistissem as políticas de desmatamento e ocupação
das terras com “grande projetos agrícolas”
de pecuária ou grãos.
As hidroelétricas planejadas ou em
construção – como a de Tucuruí
– viabilizariam grandes empreendimentos minero-metalúrgicos,
e poucos benefícios deixaram para os estados e as
populações locais. O resultado é o
que vemos. Se procuramos evitar que isso acontecesse, a
nossa luta serviu apenas para evitar danos maiores. Mas,
isso não basta.
A expansão da fronteira agrícola
se deu desmatando e devastando grandes áreas e deu
origem a cidades e povoamentos que hoje reclamam por educação,
saúde e políticas públicas.
A comunidade se organiza, participativa, consciente da necessidade
de promover um desenvolvimento sustentável para a
economia local. Trata-se de nova etapa do desenvolvimento
local.
Nas visitas e encontros que promovemos – os últimos
deles em Altamira e Cruzeiro do Sul, preparatórios
desta Reunião –, esta preocupação
ficou clara nos depoimentos de representantes de associações
de agricultores, povos indígenas, trabalhadores e
empresários que nos receberam.
Atentos às propostas de aproveitamento de áreas
degradadas, que tecnologias desenvolvida pela Embrapa já
permitem.
Podemos afirmar, no entanto, que a educação
é hoje a principal reivindicação nestas
áreas de ocupação consolidada. Nos
novos e velhos municípios, clama-se por escola, ensino
técnico e por ensino de nível superior.
Para melhor aproveitar os recursos minerais e biológicos
existentes e reduzir drasticamente a devastação.
Os jovens querem estudar mais (100 mil no último
vestibular da Universidade do Estado do Amazonas –
UEA). Na Amazônia como no Brasil. No Brasil, na Amazônia
e na Grande Amazônia.
Sugeriria ao presidente Lula e aos presidentes
Morales, Chaves e Kirchner, que, ao pensar e negociar acordos
tarifários para os mercados da economia e da energia,
pensem também no intercâmbio científico
e universitário.
Devemos permitir que um jovem possa iniciar seus estudos
em Caracas e possa terminá-los em Belém, Buenos
Aires ou Brasília.
Creio mesmo que, mais do que um gasoduto atravessando a
América Latina, precisamos de um “cerebroduto”,
um “matemaduto”, que promova a circulação
de idéias e competências. Que acelere a formação
de engenheiros, biólogos, geólogos, historiadores,
antropólogos para a região.
É com cimento fresco e bem formado que construiremos
a grande Confederação Sul-Americana, que todos
sabemos ser necessária para que o futuro da região
possa ser decidido de modo soberano e atento aos interesses
de nossos povos.
Há, nesse ponto, um cuidado que me
parece importante mencionar, pois surgiu de modo recorrente
em nossas viagens:
A formação dos jovens, particularmente nesta
região, deve evitar que a idéia de progresso
tecnológico corrente nos corredores do planejamento
nacional seja dominante.
Esse modo de pensar o desenvolvimento – que chamaria
de “asfáltico” – tem causado graves
danos ao desenvolvimento socialmente e culturalmente equilibrado
da região.
Desconfio que uma das razões da pequena
penetração dos programas de desenvolvimento
que se quer “sustentável” se encontra
na sua reduzida capacidade de ler e ouvir a historia da
cultura, da técnica, dos conhecimentos acumulados
em milhares de anos nesta região.
Os conhecimentos chamados de “tradicionais”
não encontram espaço nos planos de governo,
da tecnocracia e da comunidade científica, por mais
que sociólogos, antropólogos, etnobotânicos
nos alertem desse grave equívoco.
Estes conhecimentos respondem a estruturas
de pensamento semelhantes às nossas, mas utilizam
categorias diferentes: enquanto o conhecimento científico
trabalha com unidades conceituais, o conhecimento tradicional
opera com unidades perceptuais – como, por exemplo,
sons, cheiros, cores e sabores. Basta adentrar a floresta
e procurar se localizar sem bússola ou GPS para compreender
o que estou dizendo!
Deveríamos, sim, entender em sua
origem os saberes tradicionais e, junto com os conhecimentos
científicos, formar um corpo vivo de conhecimentos
– sempre cultivados e renovados –, básicos
para a formação dos jovens que se dedicarem
ao estudo dessa imensa e diversificada região.
Desta forma interdisciplinar, poderíamos
talvez encontrar as chaves adequadas para promover um desenvolvimento
sereno e equilibrado da região e das comunidades
e dos povos que nela vivem.
“A Amazônia é um feitiço
e as ‘uiaras’ e os ‘curupiras’ estarão
do nosso lado”, dizia José Cândido de
Melo Carvalho, por ocasião da reunião sobre
a Biota Amazônia, realizada em 1966, a primeira dedicada
ao tema da Biota e do inventário da fauna e flora
amazônicas.
Passados 40 anos, não podemos certamente
afirmar que as “uiaras” e os “curupiras”
evocados pelo prof. José Cândido estiveram
conosco durante esse tempo todo.
Talvez, a origem de nossa desdita resida
mesmo na ausência de cumplicidade, ou mesmo a presença
de sinais de hostilidade dos donos da floresta que negaram
proteção aos nossos projetos de estudo e tentativas
de decifrar seus segredos.
Em recente viagem a Cruzeiro do Sul, no
Acre, ouvi histórias fantásticas sobre os
poderes do caipora – como é chamado por lá
o cururpira.
Ele existe, afirmam os seringueiros: “Todo mundo sabe
que existe, mas ninguém vê; para o caboclo,
sua existência é um fato ‘cientificamente’
comprovado”, como conta o antropólogo Mauro
Almeida.
O caipora é o dono da floresta, vigilante;
nada acontece sem a sua permissão. Desrespeitá-lo
é ofensa grave; contrariado, ele deixa “panema”
sua vítima. E, em condição “panema”,
o caboclo e o indígena ficam com a vista embaçada,
nada dá certo; falta-lhes caça; eles não
enxergam os animais; perdem-se na mata...
Estaríamos então “panemas”?
Estaríamos perturbados pelos espíritos da
floresta, ofendidos por transgredirmos as normas da boa
conduta, por tratamos dela sem dar-lhe ouvidos? Desconfio
que este é o caminho que devemos trilhar; devemos
ouvir os “curupiras” e contar a eles o que sabemos.
Assim procedendo, possivelmente daqui a
25 anos não deveremos perguntar por que eles nos
abandonaram.
Belém 08.07.2007