64ª Reunião Anual da SBPC |
H. Artes, Letras e Lingüística - 3. Literatura - 6. Literatura |
JOÃO VÊNCIO, O NARRADOR TRANSCULTURADO |
Wellington Marçal de Carvalho 1 Maria Nazareth Soares Fonseca 2 |
1. Mestrando em Letras / Literaturas de Língua Portuguesa – PUC Minas – Bolsista CAPES / PROSUP-II 2. Profa. Dra./Orientadora – Programa de Pós-Graduação em Letras – PUC Minas |
INTRODUÇÃO: |
Três operações fundamentais ocorrem nas narrativas consideradas transculturadoras: o uso da língua, a estruturação literária e a cosmovisão. Em João Vêncio, elas estão presentes: i) uso da língua: Luandino não tenta imitar a fala regional, de dicção mussequeira. Ao sentir-se parte dela, procura elaborá-la com finalidades artísticas, investigando as possibilidades múltiplas que a língua proporciona para a construção da língua efetivamente literária; ii) estruturação literária: dividendo artístico que produziu a volta a estruturas literárias pertencentes a tradições orais [ou, às fontes da narrativa oral]; e iii) cosmovisão (como mecanismo que engendra significados): é o espaço onde se consolidam os valores e as ideologias e funciona como reduto da resistência contra as influências homogenizadoras da modernização de origem estrangeira. A mediação alcançada pelos narradores transculturadores foi resultado de séculos de contato e negociação cultural que gerou um paulatino acrioulamento, ou assimilação, das expressões culturais européias e sua hibridação ao longo da história. A produção literária, oriunda dessa ambiência culturalmente plástica, integradora de novas estruturas formais sem recusa das próprias tradições fundamenta a constituição da literatura de transculturação. |
METODOLOGIA: |
O conceito de ‘transculturação’ de Fernando Ortiz foi tomado, como possibilidade interpretativa, a partir da reflexão que explora as várias feições do movimento que Lívia de Freitas Reis, no texto Transculturação e transculturação narrativa, se dedica, exaustivamente, a iluminar essa robusta ferramenta de explicação fenomenológica. Este conceito foi, posteriormente, transposto do aparato antropológico/cultural para considerações de obras literárias por Angel Rama. De acordo com Reis, a forma com que Ortiz analisa o processo civilizatório cubano, com suas sucessivas ondas migratórias de origens e culturas diversas, seus consequentes des/encontros, choques, disputas, aplastamento racial, desarraigamento cultural e geográfico, para alcançar, enfim, a dolorosa convivência e posterior interpenetração cultural, muito faz lembrar a urdidura narrativa construída por Luandino em João Vêncio: os seus amores e, por conseguinte, a própria história de constituição da nação angolana. O conceito de transculturação literária empresta espessura histórica e ajuda a compreender e explicar a marca que distingue os povos americanos de outros povos do planeta e, por que não dizer, é um operador conceitual válido para se pensar, também, a angolanidade. |
RESULTADOS: |
Entre os diferentes agrupamentos e comunidades de ascendência predominantemente africana, cujas atividades estavam intimamente ligadas à manutenção e à expansão do poder português no interior, que falavam português e se identificavam como cristãos; um dos mais afamados eram os “ambakistas”, que surgiram no interior a leste de Luanda. Por muito tempo foram empregados pela administração portuguesa para fazerem a intermediação entre ela e os angolanos, funcionando como tradutores e, muitas vezes, como informantes. Pode-se observar a partir de então o ambaquismo literário como uma tentativa de escrever num português que o ‘português’ de Portugal não conseguira compreender. É o que se vai encontrar em João Vêncio: os seus amores, que apresenta, logo após o título, a explicação: ‘uma tentativa de ambaquismo literário a partir do calão, gíria e termos chulos.’ O comentário pode indicar que o escritor vale-se, no romance, da tradição dos habitantes de Ambácar os quais tinham enorme facilidade de aprender o português. A narração transculturada de Vêncio é um amplo espectro no qual se entretecem uma incomensurável gama de misturas, deslocamentos e, porque não, migrações de culturas, imbricamentos espaciais, tudo ocorrendo sempre de forma tensa, numa explícita subversão estética. |
CONCLUSÃO: |
As pessoas/povos da diáspora levam a capacidade de recuperar as coisas através da memória. A língua também se desloca e vai recebendo influências por todos os lugares por aonde vai transitando. É no espaço da língua que essas misturas/miscigenações/hibridações acontecem, ao mesmo tempo. A literatura é um espaço de encenação dessa língua rasurada/misturada. A língua oficial de vários espaços africanos, sendo a mesma do colonizador ela é outra. Ela é modificada pelos costumes do lugar de recepção. Portanto, é lúcido considerar o narrador João Vêncio como transculturado. A linguagem utilizada foi submetida a um labor estético de tamanho rigor ao lançar mão, sobretudo, da experiência ambaquista no trato com a língua do colonizador. No campo da estruturação literária, Vêncio como espécime singular de griot, exímio contador de estórias e, por meio do encadeamento das mesmas, articula a seu gosto o teor do seu discurso para alcançar e manter, a todo custo, a simpatia e empatia do seu interlocutor. Por fim, ao operar a cosmovisão, faz exitosa a tentativa de ambaquismo literário, advertida no subtítulo da obra, pois, nesse artifício se consubstancia a resistência ao poder homogenizador de modernização estrangeira, dessa feita, no campo da língua portuguesa, visceralmente transgredida. |
Palavras-chave: Ficção angolana – crítica e interpretação, Transculturação narrativa, Ambaquismo literário. |