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Quando a escala molecular é importante para a mecânica dos fluidos
Paulo César Philippi
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
 

Em função de sua grande ocorrência em processos naturais, os gases e os líquidos, especialmente a água e o vapor d' água, atraíram desde muito cedo a curiosidade do homem, mas a mecânica dos fluidos só ganhou uma estrutura formal, como uma disciplina do conhecimento, com os trabalhos de Bernoulli, publicados em 1738 (Hydrodynamica, de Daniel Bernoulli).

Presentemente, o estudo da mecânica dos fluidos possui como suporte conceitual um conjunto aberto de equações de balanço para os momentos macroscópicos. Este conjunto pode ser fechado para os primeiros momentos (e.g., massa, quantidade de movimento e energia) em determinadas situações e mediante a introdução de relações empíricas e/ou de hipóteses heurísticas sobre as relações entre os fluxos e as forças que os produziram. Este é o caso para os fluidos newtonianos, quando o escoamento se realiza em baixos números de Reynolds. Quando o número de Reynolds aumenta, ainda que o desenvolvimento dos computadores tenha produzido um grande avanço no conhecimento dos fenômenos de transição (Surmas, Santos e Philippi, 2003, 2004) e possibilitado o estabelecimento de modelos de turbulência em larga escala, os altos níveis de organização espacial que caracterizam os escoamentos turbulentos exigem, aparentemente, uma descrição com um número significativamente maior de momentos estatísticos, constituindo, ainda, uma fronteira aberta do conhecimento.

O objeto da presente apresentação situa-se, todavia, num outro extremo, quando o número de Reynolds é muito baixo e quando o escoamento dos fluidos e de suas misturas ocorre em escalas micrométricas e é afetado por fenômenos físicos que se desenvolvem na escala molecular.

Como a turbulência, problemas nessas escalas constituem, ainda que em outro extremo, uma fronteira também aberta do conhecimento, exigindo o desenvolvimento de métodos específicos de análise e são objeto de uma nova disciplina que vem recebendo diferentes denominações (Microhydrodynamics nos Estados Unidos e Microfluidique na França), mas que denominaremos, aqui, de Microfluidodinâmica, com alguma liberdade, consentida pelo seu caráter embrionário no Brasil.

Este é o caso dos fenômenos de capilaridade em meios porosos, quando a dinâmica de avanço da interface é afetada pelo processo de interação entre o líquido e a superfície sólida. A solução deste problema com base nas equações clássicas da mecânica dos fluidos, no regime de Stokes, defronta-se com uma singularidade de velocidade na linha tríplice, que é a linha comum às 3 fases, impossibilitando o conhecimento da posição da interface em diferentes instantes e os efeitos daí, decorrentes, em termos de bloqueio de fases, de grande importância para o processo de extração do petróleo por injeção de água. Dentro desta mesma linha, a presença de substâncias tensoativas em óleos de alta densidade (óleos pesados) reduz a tensão interfacial água-óleo, possibilitando a formação de emulsões, reduzindo drasticamente a eficiência de recuperação e aumentando os custos de explotação. No Brasil, estes óleos contribuem com cerca de 26% das reservas conhecidas, com uma perspectiva, a médio prazo, de que venham a constituir 40% de nossas reservas. O processo de interação fluido-fluido aliados aos efeitos dinâmicos associados ao deslocamento da interface fluídica podem fazer com que esta interface fique instável e se rompa, possibilitando a formação de gotículas de água em óleo, cuja distribuição e vida média é condicionada por processos de coalescência.

Este também é o caso do escoamento dos fluidos através das membranas celulares, cujo desenvolvimento está a exigir um enfoque interdisciplinar com o aporte de físicos e engenheiros aos conhecimentos da biologia, do processo de impressão sobre papel com jatos de tinta, do processo de restauração de obras de arte, especialmente de aquarelas, do processo de fabricação de inseticidas, que exigem alta molhabilidade, do processo de fabricação de forno auto-limpantes, com revestimentos não-molhantes, do desenvolvimento das tintas e dos vernizes, do desenvolvimento dos processos de catálise, de grande importância para a indústria química e dos microtubos de calor.

Ainda que sobre horizontes bastante diversos e ainda que, em função de sua grande importância tenham recebido descrições que satisfazem a necessidade de desenvolvimento das tecnologias que o mercado demanda, todos esses fenômenos têm uma característica comum: sua correta compreensão exige o aporte de conhecimentos da escala molecular.

As moléculas de um fluido estão sujeitas às forças intermoleculares de natureza, essencialmente, eletrostática. Moléculas polares, com dipolos permanentes, se atraem com forças polares ou de Keesom. Pontes de hidrogênio intensificam essas forças polares e são responsáveis pela alta tensão superficial da água. Moléculas simétricas, não polares, como é o caso dos hidrocarbonetos, se atraem com forças de London, também chamadas de forças de dispersão, pois decorrentes da ação entre dipolos temporários, resultantes da dispersão, em alta freqüência, do centro geométrico das nuvens eletrônicas que envolvem as moléculas. Forças de indução, ou de Debye, estão associadas aos efeitos de indução eletrostática produzida por dipolos (permanentes ou temporários).

Quando um líquido é colocado em contato com um outro, a tensão interfacial entre os fluidos fica reduzida, em função das forças de atração entre as moléculas do primeiro fluido com as do segundo. Essas forças tendem a misturar os dois líquidos e quando isso não ocorre (como é o caso para os fluidos imiscíveis), isso significa que as forças entre moléculas idênticas em cada fluido predominam sobre elas. Desse modo, hidrocarbonetos não se misturam com a água, mas a água e o álcool (ambas as moléculas são dipolos permanentes) são miscíveis.

Da mesma forma, quando uma gota de um líquido é colocada na proximidade de uma outra do mesmo líquido, o efeito coletivo dessas forças intermoleculares está na origem do processo de coalescência.

Todos esses fenômenos têm sido objeto de estudo, na solução de problemas que se desenvolvem em escalas nanométricas.

A questão que se coloca é como traduzir esses efeitos para escalas que são 1000 vezes maiores, que são as escalas macroscópicas de interesse, considerando que, por sua natureza multiescala, esses fenômenos não admitem uma escala de homogeneização e requerem para a sua descrição macroscópica uma capacidade computacional muito além da disponível, presentemente.

O objetivo deste trabalho é o de apresentar um método baseado em modelos discretos da equação de Boltzmann, de desenvolvimento bastante recente, posterior a 1990 e que se caracteriza por ser um método mesoscópico, possibilitando o estabelecimento de uma ponte conceitual entre o domínio molecular e o domínio macroscópico.

Assim como Bernouilli, Boltzmann (1868) considerou os fluidos como um sistema mecânico de partículas, com o objetivo de -através da premissa do caos molecular - demonstrar a irreversibilidade, característica mãe dos sistemas termodinâmicos clássicos. Inicialmente desenvolvido para gases rarefeitos, a equação de Boltzmann, recebeu diversas contribuições, ao longo dos últimos 150 anos, pela, e.g., inclusão de efeitos eletromagnéticos no estudo de plasmas e dos efeitos de exclusão por volume e de forças intermoleculares, no estudo da cinética dos líquidos, tendo sido o modelo básico para a compreensão dos processos de transferência de energia em sólidos (teoria dos fonons). Os modelos de rede de Boltzmann (lattice-Boltzmann) são formas discretas da equação de Boltzmann, quando, além do espaço físico, o espaço de velocidades é também discretizado num conjunto finito de velocidades, com a peculiaridade de que, a cada passo de tempo, as partículas em cada sítio serem transportadas, apenas, para os seus primeiros vizinhos. O número de primeiros vizinhos de cada sítio está associado às disponibilidades computacionais, à precisão que se requer e à ordem do maior momento cinético cujo comportamento se deseja descrever (Philippi et al. 2006).

O processo de interação entre um fluido e as superfícies sólidas que o limitam é descrito através de leis de reflexão que procuram reproduzir o processo de interação de suas moléculas com o sólido.

Misturas e fluidos imiscíveis são modelados considerando-se diferentes espécies de partículas e as forças de interação intermolecular são descritas usando-se mediadores de campo, que é um conceito introduzido na teoria eletromagnética para a descrição quântica de campos.

Apresenta-se alguns resultados obtidos na modelagem e simulação do fenômeno da capilaridade (Santos, Wolf e Philippi, 2005), fluidos imiscíveis (Santos e Philippi, 2002, Santos et al., 2002), misturas (Facin, Philippi e Santos, 2003, 2004; Ortiz, Santos e Philippi, 2006), física da interface fluido-fluido (Santos, Facin e Philippi, 2003), processos de ruptura de interfaces (Wolf, Santos e Philippi, 2006), espalhamento de gotas sobre superfícies sólidas e coalescência (Schramm et al., 2005), modelos para líquidos (Ortiz, Santos e Philippi, 2006) e modelos térmicos (Philippi et al., 2006a e 2006b; Hegele et al. , 2006).

Referências

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Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006