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A Interdisciplinaridade na prática: Sistemas de Inovação e os percalços da nova forma de produzir conhecimento
Mauro Roese
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
 

Em um contexto de globalização, a aplicação da Ciência ao processo produtivo ganha destaque. A inovação (de produtos e processos produtivos) deixa de ser uma característica de setores industriais de ponta e passa a ser condição de sobrevivência de todos setores, tornando-se barreira à entrada em qualquer atividade economica. Nesta situação, a diferenciação entre setores industriais não se dá mais entre inovadores ou não ( a superada classificação de setores industriais em tradicionais ou dinâmicos), mas sim entre setores que inovam com mais ou com menos intensidade.

Em termos macro-econômicos, pode-se dizer que ocorre o esgotamento do padrão de acumulação anterior, por alguns autores denominado “keynesiano-fordista”, baseado na produção e consumo em larga escala de bens padronizados. Este padrão de acumulação pressupunha um mercado que poderia ser expandido indefinidamente através de mecanismos de redistribuição de renda e de inclusão de novos consumidores. O padrão atual pressupõe, contrariamente, o acirramento da disputa pelos consumidores já incluídos no mercado e que os não incluídos continuem fora do mercado consumidor.

Sendo assim, a inovação tem como função primordial, além de aumentar a eficiência das empresas, criar novos produtos e tentar induzir os consumidores a trocar seus bens por outros mais modernos, ou inventar novas necessidades. A inovação freqüênte pressupõe que a tarefa produtiva não se limita a fazer o bem, mas também a criar novos artigos de consumo, novas formas de fazê-los e novos materiais.

Em uma palavra, os processos inovativo e produtivo fundem-se, mas não podemos nos esquecer que esta fusão ocorre no contexto da disseminação de uma lógica de mercado competitiva e excludente.

Por outro lado, a incorporação da inovação ao processo produtivo implica a necessidade de haver uma maior interação entre os que produzem conhecimento e os que produzem bens. Mais que interação, fusão e aproximação de práticas, ou seja a Ciência passa a influenciar o modus operandi dos técnicos das empresa e a ser influenciada, em seu modo de agir, pelo mercado. Isto que implica a incorporação de cientistas pelas empresas e a adoção de “práticas empresariais” pelas instituições produtoras de conhecimento. A manifestação concreta disso é o aumento do número de empresas com departamentos de P&D e de universidades com setores dedicados ao desenvolvimento de relações com o setor produtivo. (incubadoras, parques tecnológicos, escritórios de patentes e licenciamento).

Em vista disso, temos que admitir que o processo de produção de conhecimento em geral e em setores específicos da economia e sociedade não passou incólume por toda essa transformação. Setores da sociedade que antes não interagiam passam a ter de se adaptar a essa nova realidade, quem antes só produzia conhecimento acadêmico, sem nenhum tipo de preocupação com a aplicabilidade deste, seja na produção de bens e serviços, seja no desenvolvimento humano, passa a sofrer pressões no sentido de prestar contas à sociedade acerca da “relevância econômica e social” de sua atividade. A pesquisa básica e sem objetivos pragmáticos de curto prazo passa a sofrer pressões e ser vista com desconfiança. Isto implica em mudanças importantes na forma de gerir a produção de conhecimento – políticas públicas de educação, de Ciência e Tecnologia – e no “modo de produção de conhecimento”, mais especificamente na epistemologia da Ciência em geral.

Na esteira disso, ocorreram, nas duas últimas décadas, transformações significativas na organização da pesquisa acadêmica, do sistema de C&T e na política industrial. Uma transformação importante é o direcionamento das verbas e dos editais de fomento à C&T, através dos editais temáticos e da definição de áreas de pesquisa estratégicas. Em termos de política industrial ocorre a aproximação desta com a política de C&T. O estímulo à interação entre empresas e instituições voltadas à pesquisa e formação de recursos humanos, sobretudo universidades, é cada vez mais evidente.

Na literatura especializada (economia e sociologia da inovação), bem como entre policy makers, a noção de Sistemas de Inovação ganha destaque. A noção de Sistema de Inovação (SI) enfoca a interação entre atores sociais diferenciados com o objetivo comum de promover a inovação, estes atores seriam empresas, instituições de ensino e pesquisa e o Estado em um espaço determinado (país ou região). Um pressuposto da noção de SI é que interação será tanto mais intensa e produtiva quanto mais favorável for o ambiente institucional no qual ela ocorre.

Em termos de políticas diretamente voltadas ao setor produtivo, a OCDE, em um documento denominado National Innovation Systems de 1997, afirma que o foco das políticas industriais não deve mais ser as “falhas de mercado”, mas sim as “falhas da interação” (educação, informação, comunicação, transporte). Além do mais, essas políticas tendem a ser geridas pelos próprios atores envolvidos e no próprio local onde ocorrem as atividades de inovação e produção, englobando também aspectos ambientais. Sem dúvida nenhuma, o espetacular desenvolvimento da tecnologia da informação nas últimas décadas possibilitou a intensificação das interações entre atores econômicos e sociais. Estas interações vão naturalmente afetar produtores de bens e produtores de conhecimento e ocorrer em tempo real e em quantidade e intensidade inéditas. No aspecto da epistemologia do conhecimento científico, a produção de conhecimento acadêmico vive sob pressão no sentido da modificação nas formas de produção de conhecimento, as quais intensificam-se sobretudo a partir dos anos 90. É sobre isso que trata o livro de Michael Gibbons e outros The new production of knowledge (A nova forma de produzir conhecimento). Neste livro os autores vão tratar do que Gibbons vai de chamar de “modo 2” de produção de conhecimento, ou seja o conhecimento acadêmico que tende a ser produzido: 1) no contexto de sua aplicabilidade; 2) em uma perspectiva transdisciplinar; 3) em diversos tipos organizações heterogêneas e não apenas nas universidades; 3) com responsabilidade social; 4) submetido a mecanismos de controle de qualidade. O “modo 2” de produção de conhecimento contrapõe-se ao “modo 1”, ou modo tradicional que caracterizava-se por uma bem delimitada divisão do trabalho de produção de conhecimento, pela especialização e pela baixa interatividade entre as instituições dedicadas à produção de conhecimento e de bens.

Para Gibbons, a grande diferenciação entre o modo 1 e 2 de produção de conhecimento está na sua organização disciplinar. Enquanto o modo tradicional de produzir conhecimento baseava-se na especialização disciplinar, o novo modo baseia-se na diluição da disciplinaridade com a emergência aa produção de conhecimento por equipes interdisiciplinares, organizadas não por disciplinas, mas orientadas pela aplicação do conhecimento à solução de problemas. A formação de equipes multidisciplinares (com cientistas de formações heterogêneas) levaria à necessidade de dialogo e interação e tenderia a tornar obsoletas ou as antigas diferenciações disciplinares. Com o tempo o conhecimento tenderia a ser produzido em novas bases epistemológicas, indo na direção da chamada transdiciplinaridade. A formação do cientista se daria em função dos problemas a serem solucionados (aplicabilidade) e da demanda. O objetivo desta apresentação é discutir um pouco este modelo de análise das transformações no processo de produção de conhecimento. Nosso principal questionamento é acerca da possibilidade de se formar um cientista em bases não disciplinares. Será que a especialização, o desenvolvimento da disciplinaridade ao longo dos dois últimos séculos ocorreu gratuitamente, ou simplesmente atendendo interesses coorporativos de cientistas cada vez mais especializados? Ou a produção de conhecimento não pode prescindir de seu momento disciplinar, onde um cientista especializado se debruça sobre um problema à luz de teorias e métodos específicos de disciplinas? Será possível ser interdisciplinar sem referencias às disciplinas? Acreditamos que não, que a interdisciplinaridade é a capacidade de especialistas formados em tradições disciplinares heterogêneas trabalharem em conjunto, orientados por objetivos comuns. Isto não é, a nosso ver, um problema epistemológico, mas sim de gestão da produção de conhecimento e, sobretudo, de política industrial, de Ciência e Tecnologia. A transdisciplinaridade, que é a proposta de diluição progressiva da organização disciplinar de conhecimento, pode ser pensada em um nível mais aplicado da Ciência, mas não como base da produção de conhecimento em geral, muito menos como fator orientador da formação básica de futuros cientistas, sobretudo em nível de graduação.

Isto não implica em negar peremptoriamente as transformações recentes na forma de produzir conhecimento, mas questionar a amplitude e a natureza desse processo. Não negamos a importância da necessidade de estímulo à formação de equipes de pesquisa multidisciplinares orientadas pela solução de problemas, mas questionamos a possibilidade de formação de boas equipes sem elementos do tradicional conhecimento disciplinar na formação dos componentes destas equipes. Questionamos também um certo determinismo da demanda (ou mesmo que de forma velada, do mercado) presente na argumentação dos defensores da idéia do novo modo de produção de conhecimento. Mesmo sem acreditar na possibilidade de uma Ciência independente das pressões da economia, da política e da sociedade, no moldes merthonianos, nos parece problemática a tendência a reduzir a organização da Ciência à solução de problemas e a sua orientação à aplicabilidade. Não seria essa idéia um ponto de partida para a orientação da Ciência pelo mercado?

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006