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Conhecimentos e complexidade: diálogos integradores
Maíra Baumgarten
Fundação Universidade do Rio Grande (FURG)
 

O ímpeto de conhecer relaciona-se ao impulso para descobrir, desvelar obscuridades, revelar pequenos instantâneos da vida ou grandes painéis da natureza e das sociedades. Miudezas do cotidiano dos seres ou a imensidão espaço-temporal do universo e toda a problemática que medeia esses dois pólos são o objeto dessa busca que está intimamente ligada às pequenas e grandes necessidades humanas e aos nossos desejos de satisfazer carências (Baumgarten, 2006).

O paradigma da ciência moderna, assentado na razão, na divisão/análise e na máxima “conhecer para controlar” reduziu os problemas e suas respostas a modelos para a ação transformadora sobre a natureza e controladora da sociedade, produzindo conhecimentos disciplinares e com alto nível de especialização. Separar e reduzir têm sido máximas do paradigma moderno.

Entretanto natureza e sociedade nunca deixaram de ser complexas e o mundo atual é a expressão desta complexidade – os problemas que se nos apresentam são multidimensionais e as contradições se avolumam. O ser humano – alienado por suas próprias mãos – da natureza (que não deixa por isso de integrar), passou a ameaçá-la de forma perigosa para sua própria espécie e todas as outras. Os laços de solidariedade humana se fragilizam, desfazem e contradições irredutíveis emergem no cotidiano natural e social.

Como conhecer e como agir nessa realidade? Como perceber as tantas bifurcações que o devir contém, seus feixes de possibilidades? Como escolher caminhos? A perspectiva da complexidade tem sido apontada como alternativa para lidar com as incertezas do mundo contemporâneo.

Mas o que é complexidade? Quais os significados do conceito? Que debates estão nele contidos? Um conhecimento que envolve problemas e diálogos multi, inter, transdisciplinários? Um conhecimento complexo ou uma sociedade e uma natureza complexas, que lançam o desafio do desenvolvimento de modos de conhecer que trilhem as sendas da complexidade sem perder de vista suas limitações? Quais as reais mudanças nas formas de conhecer? Quais as permanências? O conhecimento hoje produzido pela coletividade científica é complexo?

A complexidade vem sendo apresentada por alguns, como a expressão de um novo "espírito epistemológico" que estaria a mudar a nossa imagem mecanicista da natureza, a nossa relação com ela e, mesmo, o modo de fazer ciência, numa aproximação mais qualitativa, menos agressiva e mais humana. Assimilando o espírito da complexidade, as ciências estariam abertas a uma consciência dos seus limites fundamentais, superando o reducionismo tradicional, reconhecendo a autonomia e as inter-relações entre os diferentes níveis da realidade, a simbiose entre a ordem e a desordem, as regularidades e o aleatório. Por outro lado, alguns autores têm problematizado esta perspectiva, apontando para o risco de que a reflexão que acompanha o confronto recente envolvido na idéia de complexidade leve a transformar em “obstáculo epistemológico” a própria idéia de complexidade ao mascarar a face real da tecnociência (Jorge, 2006). Maria Manuel Jorge afirma que ao contemplar a face visível da ciência contemporânea o que vê é “...um conjunto de práticas físicas, operatórias, marcadas pelos tiques tradicionais do mecanismo e de sua atitude calculatória, mesmo quando o objeto de estudo e de manipulação são os fenômenos complexos, de tipo caótico ou de ordem emergente” (Jorge, 2006, p. 26).

A ciência vem mantendo seus ideais baconianos de domínio preditivo e a tecnociência atual é um sistema de ações eficientes, baseadas em conhecimento científico (Echeverria, 2003). Essas ações se orientam tanto para a natureza quanto para a sociedade, visando transformar o mundo, para além de descrever, predizer, explicar. Entretanto parece ser exatamente no plano operacional, de nossa ação técnica sobre o mundo que as certezas cada vez menos se justificam. A imprevisibilidade dos efeitos da intervenção na natureza (matéria, vida) e na sociedade transparece a partir das perspectivas mais amplas da teoria quântica, da auto-organização e da adoção da idéia de contingência em análises sociais. Nesse contexto a noção da complexidade pode ser vista como um princípio regulador da razão técnica.

O impacto crescente da globalização e as características lucrativas das dinâmicas da tecnociência se traduzem na produção de conhecimentos apropriáveis pelo setor produtivo, de forma a aumentar a competitividade das empresas. Essas tecnologias, que podemos denominar convencionais, são, em geral, poupadoras de mão-de-obra, ambientalmente insustentáveis, intensivas em insumos sintéticos. São, também, monopolizadas por grandes empresas e por centros capitalistas que possuem padrões orientados ao mercado de alta renda. A discussão sobre sustentabilidade e suas relações com a produção de conhecimentos vem se impondo como central na sociedade planetária, notadamente em países da semi-periferia mundial como o Brasil. Esse debate remete à relação entre produção de ciência, tecnologia, inovação e necessidades sociais. Uma importante alternativa a tecnociência está em relacionar os conceitos de tecnologia e de inovação com a idéia de necessidade (carências humanas) e de potencialidades locais, buscando suas possibilidades para a inclusão social através de redes para a inovação social, articulando pesquisadores e outros atores relacionados à produção de conhecimentos com as coletividades locais.

Da crítica da ciência moderna surgem ou ressurgem sempre perspectivas não-lineares, que procuram considerar novas conexões e/ou saberes entre consciência e existência, entre sujeito e objeto, entre homem e natureza, entre sociedade e conhecimento. Ao incluir diferentes pontos de vista, este debate, marcado por antagonismos e tensões, pode, talvez, contribuir para um diálogo que deságüe em um outro conhecimento mais atento para com a complexidade do real. Como afirma Virgínio “ ... em função do desafio da construção de interdependência e reciprocidade dos saberes presentes na sociedade, precisamos (...) de uma imaginação científica que inclua em suas teorias, métodos e procedimentos o problema (...) de enriquecimento do conhecimento científico por outras formas de conhecimento” (2006, p. 128). Do imenso debate, que congrega teses, diálogos, práticas e apresenta complementaridades em diferentes perspectivas resultam conhecimentos diversos e coloca-se a necessidade de religar saberes em práticas interdisciplinares/transdisciplinares. Há todo um campo de práticas interdisciplinares que são utilizadas na investigação científica hoje em dia. Como afirma Olga Pombo (2006, p.225) “... a interdisciplinaridade existe, sobretudo, como prática. Ela traduz-se na realização de diferentes tipos de experiências interdisciplinares de investigação (...) em universidades, laboratórios (...) na experimentação e institucionalização de novos sistemas de organização, programas interdepartamentais, redes e grupos inter-universitários (...) na criação de diversos institutos e centros de investigação interdisciplinar que, em alguns casos, se constituem (...) como um pólo organizador de novas ciências....”

Instâncias físicas e virtuais de trocas, reintegração de saberes, contrabandos inter campos e disciplinas vêm buscando sendas para a construção de um conhecimento que dê conta da complexidade do mundo real. Perseguem-se maneiras para escapar do conflito generalista/especialista, do movimento pendular entre as disciplinas, os recortes, a hiperespecialização de um lado e o holismo que reduz tudo ao todo do outro lado, ou o generalista que ao alargar e unificar o conhecimento não conhece profundamente. Uma nova prática científica fundada em um tipo de simbiose entre essas duas espécies de cientistas, mas principalmente fundada na idéia de tradução, de integração de saberes.

Essa nova prática encontra sua expressão no conceito de tecnologia social, que contém a idéia de intervenção da ciência e tecnologia no sentido de resolver problemas sociais a partir da identificação de carências e potencialidades locais e com o concurso das coletividades atingidas, estabelecendo-se mediações entre coletividades científicas e sociedade que viabilizem a geração de conhecimentos apropriáveis para a busca da sustentabilidade social e econômica.

As atividades de difusão e popularização da ciência e as redes que envolvem pesquisadores e demais atores relacionados à produção de conhecimento podem ajudar no aprofundamento das relações entre coletividade científica e sociedade. Um elemento fundamental para a sustentabilidade econômica e social do país parece repousar na articulação entre produção de conhecimento, seu locus privilegiado – a universidade – e a inovação social que promove inclusão.

Referências:

BAUMGARTEN, M. Sociedade e Conhecimento: ordem, caos e complexidade. In: Sociologias, ano 8, n. 15. Porto Alegre, PPGS/UFRGS, 2006.
ECHEVERRÍA, Javier (2003). Introdução à Metodologia da Ciência. Coimbra: Almedina
JORGE, M. O impacto epistemológico das investigações sobre ‘complexidade’. In: Sociologias, ano 8, n. 15. Porto Alegre, PPGS/UFRGS, 2006.
POMBO, O. Práticas interdisciplinares. In: Sociologias, ano 8, n. 15. Porto Alegre, PPGS/UFRGS, 2006.
VIRGÍNIO, A. Conhecimento e Sociedade:diálogos impertinentes. In: Sociologias, ano 8, n. 15. Porto Alegre, PPGS/UFRGS, 2006.

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006