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DIREITOS SEXUAIS E REPRODUTIVOS – A QUESTÃO DO ABORTO
Thomaz R. Gollop
Universidade de São Paulo (USP)
 

A instalação da Comissão Tripartite para a Revisão da Legislação Punitiva Que Trata da Interrupção Voluntária da Gravidez pela Secretaria Especial de Políticas para Mulheres da Presidência da República em abril de 2005 pela Ministra Nilcéa Freire teve um mérito indiscutível. Pela primeira vez na história do Brasil um órgão ligado ao poder executivo manifestava claramente disposição para colocar a questão do aborto em discussão e promover um debate reunindo representantes dos poderes executivo, legislativo e representantes da sociedade civil. O objetivo final era apresentar um projeto de lei que revisse o dispositivo legal vigente em nosso anacrônico Código Penal. Este só permite a interrupção da gravidez quando não há outro meio de salvar a vida da gestante ou quando a gravidez decorre de estupro.

Tivemos a honra de integrar a Comissão Tripartite ocupando a vaga destinada à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).

Devemos assinalar que a Comissão Tripartite funcionou de 1º de abril a 1º de agosto de 2005 quando foi apresentado o projeto de lei por ela elaborado e que consideramos interessante reproduzir neste texto, dado o fato que sua divulgação por órgãos de imprensa e seu acesso pela sociedade civil nos pareceu muito restrito.

Diz o projeto:
Art. 1º Toda mulher tem o direito à interrupção voluntária de sua gravidez, realizada por médico e condicionada ao consentimento livre e esclarecido da gestante, nos termos desta Lei.

Parágrafo único. No caso de gestante relativa ou absolutamente incapaz, o procedimento deverá ser consentido por seu representante legal.

Art. 2º Fica assegurada a interrupção voluntária da gravidez:
I-até doze semanas de gestação;
II-até vinte semanas de gestação, no caso de gravidez resultante de crime contra a liberdade sexual;
III-no caso de grave risco à vida ou à saúde integral da gestante
IV-no caso de diagnóstico fetal de malformação incompatível com a vida ou de doença grave e incurável.

Por uma questão de justiça devemos considerar que, para obter este resultado final, houve um empenho muito grande dos representantes do executivo (especialmente da área jurídica) e dos representantes da sociedade civil todos coordenados brilhantemente por Maria Laura Sales Pinheiro. Chamou-nos a atenção que os representantes do poder legislativo pouco participaram dos debates; ora estavam ausentes por completo e quando excepcionalmente estavam presentes vinham com posições pré-concebidas e estavam totalmente avessos a ouvir seminários ou debater em torno de posições diferentes das suas, majoritariamente conservadoras. Reconhecemos o mérito da Ministra Nilcéa Freire em ter instalado a Comissão e, depois de encerrado o seu trabalho, ter corajosamente encaminhado o projeto elaborado para a Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara dos Deputados, em plena crise na política nacional. Vivíamos a crise do “mensalão”, iniciada em maio de 2005, um mês depois do princípio dos trabalhos da Comissão Tripartite.

Sem desmerecer em absoluto todos aqueles que efetivamente trabalharam durante os três meses em que a Comissão se reuniu, desejamos focalizar dois pontos que mereceram nosso destaque na primeira reunião:
1) Qual seria a visibilidade que o trabalho e os debates na Comissão Tripartite teriam na mídia?
2) Como seria feita a interface com a população civil e que encaminhamento político teria o projeto da Comissão depois de concluído?

Parece-nos que não havia efetivamente uma resposta e à medida que a difícil conjuntura política de 2005 avançava menos provável parecia-nos um encaminhamento profícuo do projeto elaborado. Era evidente que não interessava aos integrantes da Comissão que mais projeto de lei fosse engavetado, entre os vários existentes no Congresso Nacional. Devemos assinalar aqui a importância de reconhecer que o texto acima enunciado representa, em sua estrutura, uma versão das mais modernas existentes no mundo.

O que falta então?

Em primeiro lugar a multiplicação de Simpósios como este realizado pela SBPC em Florianópolis em 2006. É fundamental que a questão da interrupção voluntária da gravidez seja amplamente discutida pela sociedade civil em entidades de classe tais como a Ordem dos Advogados do Brasil (em suas representações regionais e federal), Associação Brasileira de Imprensa, Sociedades de Especialidades Médicas, entidades representativas das mulheres, classes trabalhadoras, sindicatos etc.

É importante reconhecermos que há um enorme preconceito no que diz respeito ao trato da interrupção voluntária da gravidez. Muito poucos sabem que são realizadas mais de 1 milhão de interrupções clandestinas de gestações no País por ano, ao custo de 30 milhões de reais ao Sistema Único de Saúde em conseqüência de suas complicações, representando a quarta causa de mortalidade materna. Fala-se em preservação da vida mas deixa-se de observar que o abortamento clandestino afeta duramente, em suas conseqüências, as mulheres de classes sociais mais desfavorecidas. É imperioso reconhecer também que estas mulheres com freqüência não são organizadas em entidades de representação e não tem condições de fazer pressão sobre nossos parlamentares. Sim, e os nossos parlamentares?

Causou-nos surpresa o triste espetáculo que presenciamos junto com o Prof. Enio Candotti quando o projeto elaborado pela Comissão Tripartite foi discutido em audiência pública na Câmara Federal em outubro de 2005. Excetuados alguns deputados, merecendo destaque a Deputada Jandira Feghali, verificamos um grande desconhecimento de causa, falta de maturidade e grosseria. Não se trata obviamente de reconhecer apenas pessoas que se aliem a esta ou aquela corrente de pensamento. Pensamos antes que evoluímos pouco nas últimas décadas no trato desta questão e que falta-nos o hábito de discuti-la públicamente de forma esclarecida. Esta é uma tarefa que necessita ser feita urgentemente. Por mais meritória que seja a instalação de uma Comissão Tripartite pelo Governo Federal a reformulação da lei relativa à interrupção voluntária da gravidez necessita ser discutida pela sociedade civil e esta necessita de muita informação, organização e articulação políticas.

Por outro lado a mídia trata deste tema de maneira pontual quando há algum fato novo que chame a atenção. Um debate mais aprofundado não é habitualmente travado no Brasil.

Há ainda uma outra questão em aberto: A Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) relativa à Anencefalia cujo mérito está para ser julgado no Supremo Tribunal Federal (STF) desde outubro de 2004. Apenas para relembrar, o então Ministro Marco Aurélio Mello concedeu liminar em 1º de junho de 2004 que permitia a interrupção de gravidez em casos de anencefalia e esta vigiu até 20 de outubro de 2004, quando foi cassada. A partir de então a questão seria discutida em seu mérito através de audiência pública a ser pautada desde então. Seria, históricamente, a primeira audiência pública no STF. Aguarda-se o seu encaminhamento.

Vale assinalarmos que o Brasil é o único país do mundo no qual a anencefalia recebeu um destaque singular e destacado das outras malformações fetais graves. Apenas para ficar em um outro exemplo, a agenesia renal bilateral é igualmente grave e incompatível com a vida extra-uterina. Em tese neste último caso deveria ser facultado aos casais decidir livremente pela interrupção ou manutenção da gravidez, como aliás em muitas outras patologias fetais graves. A diferença está apenas no fato de que a anencefalia impressiona mais pela deformidade que provoca do que a agenesia renal bilateral que não é visível a olho nú.

Nosso olhar sobre a questão da evolução das reflexões sobre o abortamento no Brasil não é inteiramente desfavorável. Caminhamos em algumas áreas e é forçoso reconhecer que estamos à frente da maioria dos países da América Latina e do Caribe. Desde 1989, ano de instalação do primeiro Serviço de Aborto Legal do Hospital Jabaquara, SUS-São Paulo, foram instalados mais de 40 serviços similares no Brasil. Há dificuldades em estendermos este tipo de atendimento em algumas regiões do país e o funcionamento adequado destes serviços está, algumas vezes, mais na dependência do entendimento do abortamento previsto em lei que o prefeito de uma determinada cidade possui, deixando este de lado, algumas vezes, uma compreensão sob a óptica da saúde pública.

Por outro lado desde 1993, mais de 5.000 alvarás foram concedidos por juízes de primeira instância autorizando interrupções de gestações em casos de anomalias fetais incompatíveis com a vida. Este é um instrumento legal só existente em nosso país. É necessário entender-se que ele permite interromper uma gravidez desejada cuja evolução teve o infortúnio de receber um diagnóstico de anomalia incompatível com a vida.

Através do alvará permite-se retirar do casal o peso de estar cometendo um crime ao interromper a gravidez, permitindo-se a internação da paciente em hospital da rede pública ou privada com adequada assistência médica e psicológica; permite-se ainda o uso, nestes casos, do Sistema Único de Saúde ou da rede privada de seguro médico.

Olhando-se para a frente sabemos ser 2006 um ano eleitoral. Será fundamental colocarmos a questão da interrupção voluntária da gravidez na pauta dos debates políticos. Tradicionalmente esta questão é evitada pelos candidatos. Sua inclusão só será efetivada se houver pressão da sociedade. Vale lembrarmos que a Comissão Tripartite foi instalada por uma Secretaria do Governo Lula; o próprio Presidente Lula entretanto enviou uma carta à CNBB, no auge da crise do mensalão e por ocasião da conclusão dos trabalhos da Comissão Tripartite, fazendo uma defesa intransigente do direito à vida.

Permitimo-nos um comentário; poderemos estar cometendo até uma injustiça: a Comissão Tripartite foi criada para dar uma satisfação ao movimento de mulheres parte do qual é formada por setores progressistas da sociedade brasileira e que possivelmente ajudou a eleger e sustentar o Presidente Lula. Desde o seu princípio não havia, na nossa avaliação, uma estratégia clara em defesa de uma reformulação jurídica desta questão capitaneada por autoridades do governo federal. Lembramos que na França, apenas para ficar em um exemplo, a abertura legal relativa ao direito das mulheres optarem por manter ou interromper uma gravidez foi sustentada pela sociedade e pela então Ministra da Saúde. Nós poderemos chegar lá. Há entretanto um trabalho grande a ser feito com a população, precisamos discutir o assunto com órgãos de classe e precisamos de muito mais aliados na Câmara e no Senado Federais. O apoio da SBPC foi, e é, fundamental. Precisamos de dezenas de apoios semelhantes em sociedades com respeito e representatividade similares. Para tanto precisamos trabalhar muito ainda. Sem discussão com a sociedade e seus órgãos de classe, não há amadurecimento suficiente que permita discutir a interrupção voluntária de gravidez a nível legislativo.

A questão do aborto não deveria ser tratada de cima para baixo.

Finalmente a questão do aborto não é plebiscitária. Como vimos em relação ao desarmamento, um plebiscito pode ser manipulado. Antes de tudo ter filhos ou não te-los é relacionado ao direito individual; trata-se de uma questão de responsabilidade, afeto e projeto de vida. Não é uma questão de maioria. Cada um deve decidi-la de acordo com os seus valores éticos, religiosos e culturais.

Palavras-chave: direitos sexuais; direitos reprodutivos; aborto.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006