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Debate contemporâneo sobre o aborto. As propostas feministas e os novos têrmos das narrativas biológicas, jurídicas e religiosas
Lia Zanotta Machado (UnB) e Miriam Pillar Grossi
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
 

A movimentação feminista brasileira pela legalização do aborto vem sendo retomada nos dois últimos anos com crescente intensidade, muito embora tenha vindo crescendo desde os últimos anos noventa. O resultado foi a criação da Comissão Tripartite  integrada por membros do Governo Federal, da Sociedade Civil e do Congresso Nacional e coordenada pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para Mulheres da Presidência da República (SPM/PR) , instituída com o objetivo de discutir, elaborar e encaminhar proposta de revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez, conforme a Portaria nº 4, de 06 de abril de 2005. Dois foram os eventos políticos que considero terem tido papeis imprescindíveis para a criação das condições necessárias para a constituição de uma comissão indicada pela Presidência da República para rever a legislação do aborto.

O primeiro foi a criação e constituição de uma rede de organizações não governamentais feministas em torno da idéia de retomar a proposta de legalização do aborto: a organização das Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, em abril de 2004. O segundo foi a realização das conferências municipais, estaduais e nacionais chamadas pela Secretaria de Políticas Públicas das Mulheres e pelo Conselho Nacional de Direitos das Mulheres (CNDM). Sua organização começou no ano de 2003, a realização das municipais e estaduais se deu no primeiro semestre de2004, culminando na Conferência Nacional, realizada em julho de 2004, com mais de 2000 mulheres, e mobilizando, no todo, cerca de 120.000 mulheres .

Mensagem das Jornadas revela a importância dada aos debates ocorridos nas Conferências; “Lutando contra o descaso e o desrespeito ao direito de decidir das mulheres, o feminismo criou as Jornadas Brasileiras pelo Direito ao Aborto Legal e Seguro, e convoca a mulheres e homens para que se solidarizem e participem da luta para que o governo federal encaminhe as recomendações da 1ª Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres (julho de 2004) que referendam a descriminação e a legalização do aborto”. Com certeza, foram as Jornadas também responsáveis por garantir a atenção e o voto nesta questão polêmica dentro do movimento ampliado de mulheres, pois o feminismo, no estrito senso, longe está de se constituir maioria. Das mais de 2000 mulheres presentes na Conferência Nacional, apenas duzentas se manifestaram contrárias. Das conferências estaduais, apenas uma , não aprovara a revisão da legislação punitiva do aborto.

Os anos de 2004 e 2005 foram também cenários de eventos relativos à questão do aborto que mobilizaram a imprensa e a opinião pública : as formas institucionais de realizar o aborto resultante de estupro, abolindo-se a obrigatoriedade da apresentação nos serviços de saúde do boletim de ocorrência policial e o debate no Supremo Tribunal Federal sobre a constitucionalidade do aborto ou antecipação do parto no caso de fetos anencéfalos.

Os movimentos feministas dos anos sessenta e setenta se constituem como movimentações que se auto-alimentam a nível internacional, mas sempre em torno e em resposta à singularidade dos diferentes contextos políticos nacionais. Comparar, ainda que rapidamente, o debate da época tanto na França como no Brasil, como o debate do momento atual brasileiro, além de exigir incursões nas diferenças de contextos culturais nacionais, exige ainda pensar as diferenças de contexto cultural nos dois momentos.

Nos seus inícios, o campo feminista francês dos anos setenta, se caracterizou, se caracterizou por uma movimentação unida que foi denominada Movimento de Liberação das Mulheres (MLF). Congregava diferentes grupos de reflexão sobre as experiências as mais íntimas e as mais cotidianas das mulheres, e buscava uma inovação estética nas formas de manifestação política. A busca da emancipação supunha o reconhecimento da opressão:“A qualquer lugar que te encontres, acabarás por reencontrar irmãs parecidas contigo, oprimidas e doentes desta opressão, que colocarão um dia seu problema em termos que lhe serão próprios, numa linguagem que passará pelo corpo e pela vida, lá onde se encontra a verdadeira expressão” ( Le Torchon Brüle, nº 0. “Pourquoi je suis dans la lutte des femmes”)

No dizer de Danièle Leger (1982),: “tudo se articula: o abortamento e a dupla jornada de trabalho, a violação sexual e a exclusão das mulheres da vida política, as dificuldades da inserção profissional, a falta de confiança em si e os problemas da contracepção”... Para Leger, a questão da liberação do corpo não ocupa um lugar exclusivo, mas, “se integra na pesquisa global da identidade das mulheres e das vias de sua emancipação”. As questões pessoais eram políticas. A questão da “liberação de seus corpos”, se articulava com todas as outras facetas da vida cotidiana percebidas como opressão e, incluía o “direito de decidir”.

A questão da legalização do aborto era o objetivo de um dos grupos de reflexão no MLF, e não a questão mais visível. Contudo, a proposição de um grupo de feministas diante da iminente criminalização de uma mulher por ter realizado o aborto, tem repercussões e ganha visibilidade pela publicação de um Manifesto pelo aborto no Le Monde em abril de 1971. As 343 mulheres que assinaram o Manifesto afirmaram: “Je declare avoir avorté”. (“eu declaro ter abortado”). E denunciaram que “um milhão de mulheres se fazem abortar cada ano em França.Elas o fazem em condições perigosas em condições perigosas em razão da clandestinidade às quais estão condenadas...Faz-se silêncio sobre estas mulheres”.

Embora neste discurso esteja fortemente presente a referência às práticas clandestinas, e, hoje, esta é a mola mestra do discurso pela legalização do aborto no Brasil, na França o mote mais forte do movimento foi a demanda pelo “direito de decidir”. E este mote, (junto com o da defesa das mulheres que abortavam em condições clandestinas) , obteve ressonância na opinião pública e entre os legisladores. A base da justificativa era: “Não se trata de legalizar um estado de fato, mas de obter o reconhecimento de nosso direto (...) para obter a liberdade mais elementar, aquela que os homens dispõem de pleno direito”. A legalização, não sem fortes resistências, foi aprovada em 1975.

No Brasil, a movimentação feminista nos anos setenta se articula com as lutas pela defesa dos direitos à cidadania e democracia. São grupos de reflexão que se unem sobre suas experiências cotidianas e que realizam encontros e congressos no Rio e São Paulo, procurando marcar duplamente sua luta própria e sua luta pela democracia, e marcar sua posição política de enfrentarem o regime autoritário.

Contudo, foi a denúncia do caso extremado do poder de vida e de morte dos homens sobre suas mulheres, a tônica capaz de repercutir entre uma grande maioria das feministas e alcançar a opinião pública e as elites políticas da época. A questão política que toma maior visibilidade no movimento é a questão do assassinato de mulheres. As palavras de ordem, iniciais, referentes à violência se deram em 1979 em torno da denúncia dos homicídios cometidos por maridos contra suas esposas. Menos que a reivindicação pela liberdade sexual, lutava-se pelo direito à sobrevivência. Assim, a possibilidade de repercussão no Brasil das demandas feministas contra a violência, se fazia em nome do direito à vida das mulheres.... Nos atuais embates feministas no Brasil pelo direito à legalização do aborto e ponderação das condições de direito ao aborto, não é o direito de decidir que consegue alcançar repercussão. É novamente, somente a defesa da sobrevivência e da vida das mulheres que logra alcançar repercussão. São especialmente a denúncia das mortes e da alta morbidade das mulheres que realizam o aborto em situação clandestina e insegura que alcançam repercussão favorável na opinião pública. Neste diálogo de enfrentamentos é a referência às questões de saúde pública que parecem as mais legitimadas. Dificilmente o direito de decidir alcança repercussão positiva e favorável.

As questões em torno à defesa da vida, já aparecem nos anos setenta, mas de forma ainda não cristalizada. A resposta francesa do Conselho Constitucional em 1975 é que “Ora, não existe equivalência entre o direito não apenas à vida, mas também à saúde de quem já é pessoa, como a mãe, e a salvaguarda do embrião, que pessoa ainda deve tornar-se”. (ver FAVOREAU, Louis; PHIPLIP, Löic,1999 e Sarmento , 2005).

Cada vez mais, os atuais contextos dos embates entre os movimentos pró-vida e os movimentos pela legalização do aborto produzem dificuldades para o amplo reconhecimento da diferença de direito à vida da pessoa e do direito à vida do embrião que não é pessoa.

A pedido do Ministério de Saúde, o juiz de Direito José Rodrigues Torres, (Torres, 2005) exara um documento com seu parecer favorável à dispensa do Boletim de Ocorrência para o caso da gravidez decorrente de estupro :

“Assim, à evidência, o direito à vida não exige proteção incondicional e absoluta, pois, dês que haja motivação legal e jurídica, especialmente com embasamento antropológico e fundamentação no princípio da dignidade humana, ou seja, dês que não seja decorrente de um procedimento arbitrário, a assistência médica para o abortamento é perfeitamente admissível e, por isso, é garantida como um direito da mulher nas hipóteses legais referidas.

Aliás, se a proteção do direito à vida fosse absoluto e não comportasse nenhuma restrição infraconstitucional, seria inadmissível o reconhecimento da legítima defesa ou do estado de necessidade em casos de homicídio, como já afirmou o Ministro Nelson Hungria, um dos mais respeitados penalistas brasileiros, quando sustentou, em 1.940, a admissibilidade jurídica das hipóteses de abortamento legal”.

Esta forma de configurar a defesa dos argumentos pelos direitos das mulheres de interromperem a gravidez resultante do estupro, permite também sustentar a proposta de livre decisão da mulher até as doze semanas contida no ante-projeto de lei proposto peal Comissão Tripartite e ora na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara de Deputados. Contrária a esta posição, é a movimentação em torno à posição da defesa da vida em abstrato que substancializa e absolutiza as condições de sua defesa.

Os Direitos das mulheres e o “DNA da alma”. O encantamento da pessoa-embrião parece ser o fantasma dos mais recônditos pavores imemoriais de jamais ter nascido. O atual avanço das ciências biológicas e genéticas introduziu uma cultura tecnológica e biologizante onde a descoberta do DNA único parece tornar-se o correspondente da idéia de pessoa. As imagens ecográfica e ultrassonográfica do embrião/feto, e a visibilidade e materialidade dos embriões congelados, ainda que materialmente tão distantes da imagem dos nascituros, das crianças ou dos adultos são índices do que virá. O índice do que poderá vir a ser é metaforizado : a imagem do embrião-feto da ecografia é colocada na moldura como se fotografia fosse. Mas antes mesmo de poderem vir a ser ecografadas, as primeiras células de vida já são, porque estão singularizadas pelo seu DNA. Guardam o mistério de poderem vir a ser e não serem ainda. Daí sua magia-mistério. O índice é fundamentalmente biológico..

A discursividade das ciências biológicas e genéticas, restituem o imaginário humano em torno dos mitos de origem. Agora, com a descoberta do DNA, ou pelo menos, com a sua introdução plena na vida cotidiana, a natureza se encanta. Há mistérios escondidos sobre as nossas próprias origens naturais que não nos são disponíveis ao nosso olhar e à nossa acuidade visual. A descoberta do DNA reencanta a corporeidade porque lhe atribui um mistério. O DNA permite ter a garantia de “ver” o invisível. O DNA é tão invisível quanto a alma. Pode substituí-la na sua capacidade de encantamento. E na sua capacidade encantada de produzir uma nova vida par além de qualquer regra da natureza. Ela é reinventada. Artefato da vida humana. Artifício encantador do poder humano.

A força e o valor dado à singularidade do indivíduo/pessoa na contemporaneidade, fazem com que se articulem as idéias de longa duração sobre “a alma que reflete o âmago da singularidade do indivíduo” e as novíssimas idéias de que o DNA passe a ser o representante material da singularidade individual. Tudo se espera do DNA: das semelhanças físicas com seus genitores, às profundezas do seu temperamento. É como se a alma se naturalizasse finalmente. Como se encontrasse seu lugar na materialidade do DNA. O discurso dos grupos religiosos conservadores defensores dos valores familiares tradicionais, não precisa recorrer apenas a valores religiosos. A categoria de pessoa é refundada na concepção biológico-genética. Os discursos jurídicos incorporam a questão como uma verdade, a que devem responder, mas é diante dela, como verdade, que se pronunciam. Esta verdade cria múltiplos bens jurídicos com conflitos e colisão de interesses, que devem ser ponderados. Há, pelos grupos conservadores uma posição de defesa intransigente pelo controle social da reprodução e dos corpos das mulheres, buscando tornar esta questão intocável. Para isso se reapropriam das narrativas das ciências biológico-genéticas e das discursividades jurídicas produzindo um discurso encantatório da “pessoa-embrião” e da “pessoa-primeira célula”, contra os direitos das mulheres. A defesa da vida não é uma defesa real da alteridade, mas se marca pela defesa especular de imaginar que sua própria imagem, seu rosto, não pudesse ter sido traçado se as mulheres tivessem interrompido suas gravidezes...E os direitos das mulheres à vida e ao direito de decidir continuam desrespeitados.

Palavras-chave: gravidez; aborto; .
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006