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O AMIGO QUE DARWIN TINHA NO BRASIL
Cezar Zillig
Médico (Médico)
 

Em 30 de outubro de 1861 Fritz Müller escrevia aos pais na Alemanha: "um livro que me dá muito que pensar, é o livro de Darwin sobre a origem das espécies nos reinos animal e vegetal". Esta é a primeira menção que Fritz Müller faz sobre a "Origem das Espécies por meio da seleção natural" publicado por Charles Robert Darwin em 24 de novembro de 1859 em Londres. Este livro cardinal, veio alcançá-lo em seu auto imposto ostracismo, na acanhada Desterro (atual Florianópolis), Ilha de Santa Catarina, no litoral do Brasil Imperial. O livro fora enviado por seu amigo Max Schultze, professor de zoologia em Halle, Alemanha.

Fritz Müller imediatamente se convenceu da lógica dos postulados propostos pelo naturalista britânico e decidiu testar em campo a nova teoria. Desejava contribuir com fatos que confirmassem a engenhosa teoria, então ferozmente atacada, principalmente pela igreja e seguidores. Em abril de 1862 ele escrevia ao irmão em Lippstadt: "No último verão me ocupei quase que exclusivamente com crustáceos, mais propriamente com a história do desenvolvimento dos camarões e lagostins, que lança uma luz totalmente nova nas condições de parentesco dos crustáceos e sobre toda a morfologia dos artrópodes; espero que isto possa ser utilizado como importante meio de comprovação a favor dos ensinamentos de Darwin sobre a origem das espécies animais e vegetais. Elaborar a história do desenvolvimento dos animais a partir de larvas pescadas no mar, as quais percorrem uma longa série de formas, é um dos trabalhos mais sacrificados e que mais tempo consomem, mas também é de todos o mais atraente, emocionante e com freqüência, cheio de verdadeiro enredo romanesco, decepções, surpresas”.

Em 7 de setembro de 1863, Fritz Müller concluía um pequeno porém consistente livro, repleto de fatos novos e em consonância com as idéias propostas por Darwin.

"Für Darwin" (Pró Darwin) foi editado em Leipzig, Alemanha, em 1864. Não demorou para que o próprio Darwin viesse a tomar conhecimento deste precioso e inesperado colaborador que se manifestava de uma remota região da América do Sul.

Em 1864 Darwin foi acometido por uma severa enfermidade e esteve acamado durante oito meses, período em que sua dedicada esposa Emma, lhe fez a leitura do "Für Darwin".

A partir daí iniciou-se uma assídua troca de cartas entre os dois cientistas. A iniciativa partiu de Darwin endereçando sua primeira missiva em 10 de agosto de 1865.

A última carta que Darwin remeteu para Fritz Müller em Blumenau, foi datada em 4 de abril de 1882, quinze dias antes de sua morte. Sabe-se que Darwin escreveu 58 cartas a Fritz Müller, em 17 anos de troca de correspondência. Uma freqüência considerável, uma vez que em média, uma carta levava 45 dias a caminho.

“Fritz Müller Desterro”, é como ficou conhecido no cenário acadêmico do século XIX, o Dr. Johann Friedrich Theodor Müller. Nasceu em 31 de março de 1822 em Windischholzhausen, próximo à cidade de Erfurt, Alemanha.

Era filho e neto de ministros protestantes. Desde sua infância, sempre demonstrou grande atração pela história natural, no que era estimulado pelo pai. Doutorou-se em filosofia e fez o curso de medicina completo, embora não tenha colado grau por não concordar com a formulação do juramento que deveria proferir, de conteúdo religioso. Apesar de todo o trauma que causou à família, não vacilou em abjurar a fé cristã, uma vez que a mesma não mais condizia com suas convicções íntimas. Não suportaria viver com uma verdade nos lábios e outra no coração.

Em 1852, com trinta anos de idade, casado e com uma filhinha, emigrou para o Sul do Brasil. Com ele veio também um irmão mais novo, August, e esposa. Inicialmente fixou-se como um simples colono às margens do rio Itajaí-Açu, onde há dois anos o Dr. Blumenau, seu compatriota, iniciara um pólo de colonização alemã. Transcorridos cerca de quatro anos, Fritz Müller aceitou um convite para lecionar matemática no Liceu de Desterro, sede da província de Santa Catarina.

Saber que este cargo lhe propiciaria a oportunidade de empregar seu tempo livre para se dedicar à história natural, sua grande paixão, aliado ao fato de residir junto ao oceano, um inesgotável campo de pesquisas, foi determinante para sua decisão. Morou em Desterro por onze anos, de 1856 a 1867.

Foi por esta época que converteu-se em valoroso defensor da teoria da evolução das espécies pelo mecanismo da seleção natural. Com a publicação do livro “Für Darwin”, prestou enorme serviço à causa “darwinista” e conquistou a amizade de Charles Darwin com quem manteve correspondência constante.

Ernst Haeckel generalizou conceitos introduzidos por Fritz Müller no Für Darwin, elaborando a controversa Lei da Biogenética Fundamental. Passou a afirmar, de forma dogmática, que todas espécies animais em seu desenvolvimento larvar e embrionário recapitulam sucintamente as transformações percorridas pela sua ancestralidade ou seja, a ontogenia recapitularia a filogenia.

Retornando ao vale do Itajaí, Fritz Müller viveu na dupla condição de colono e cientista; excepcionalmente atuou como médico. Em outubro de 1876 Fritz Müller foi nomeado “Naturalista Viajante”, cargo que veio a perder em junho de 1891, dois anos após a queda do Imperador Pedro II, seu protetor.

Fritz Müller jamais retornou a Europa; permaneceu isolado e distante dos grandes centros científicos de então. O contacto que manteve com seus pares foi todo epistolar, raras vezes teve a oportunidade de se encontrar pessoalmente com outros cientistas em viajem pela região. Nos últimos anos de vida, teve o prazer de receber por mais de dois anos seu meio irmão, o Zoólogo Dr. Christian Gustav Wilhelm Müller. Wilhelm Müller posteriormente viria a ocupar a cátedra de zoologia da Universidade de Greifswald, Alemanha, por 28 anos.

Posteriormente teve ainda como hóspede seu sobrinho, o micologista Alfred Möller, que seria o responsável pela preservação da monumental obra de Fritz Müller, publicada em 5 volumes por ocasião da primeira grande guerra.

O ostracismo em que viveu Fritz Müller, demonstra a excelente formação que recebeu em seus dias de universitário, permitindo-lhe prosseguir ampliando seus conhecimentos autodidáticamente ao ponto de ombrear com os maiores vultos de sua área. Na obra de Alfred Möller, que abrange praticamente a totalidade do que Fritz Müller publicou, constam 248 artigos científicos tratando tanto de zoologia quanto de botânica.

Fritz Müller morreu em Blumenau em 21 de maio de 1897, aos 75 anos. Gozava de grande reputação no meio acadêmico internacional e nos últimos anos de vida recebeu homenagens e títulos relevantes, procedentes de diversos países. Foi Ernst Haeckel quem assumiu a solene missão de redigir-lhe o necrológio. No entanto, é a consideração, a importância e o respeito que Charles Darwin lhe concedeu o que melhor traduz a grandeza deste cientista que humildemente viveu entre nós.

Bibliografia:

- Möller, Alfred. “Fritz Müller – Werke, Briefe und Leben“. Jena, 1915-1921.
- Zillig, Cezar. “Dear Mr. Darwin: a intimidade da correspondência entre Fritz Müller e Charles Darwin”. Blumenau, 1997.
- Gould, Stephen Jay. “Ontogeny and Phylogeny”. Cambridge, 1977.

Cezar Zillig
Blumenau, Junho de 2006.

Palavras-chave: Darwin; Fritz Müller; origem das espécies.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006