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Semeando interdisciplinaridade em Engenharia Biomédica: no coração do problema
José Wilson Magalhães Bassani
Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP)
 

Laboratório de Pesquisa Cardiovascular - LPCv - Centro de Engenharia Biomédica e Departamento de Engenharia Biomédica - UNICAMP

A interdisciplinaridade tem sido motivo de muitos estudos. O termo vem, cada vez mais, surgindo nas falas de todos que pretendem associar ao trabalho que requer equipes de áreas diferentes o “sabor” da novidade, ou do que é atualmente imprescindível, moderno e até inevitável. O trabalho interdisciplinar, contudo, não qualifica necessariamente seus autores como indivíduos que atuem de modo interdisciplinar. A Engenharia Biomédica, por exemplo, que se destaca como área na qual são freqüentes as interações interdisciplinares, não pode cometer o erro de caracterizar o seu profissional como resultado de alguma operação de união ou adição de médicos e engenheiros. Exemplos concretos de trabalhos e atitudes interdisciplinares podem ajudar a revisão deste conceito.

Um pesquisador que trabalha na área de ultra-som é contatado por um pesquisador da área médica ou biológica, que propõe a construção de um transdutor para medição da fração de ejeção em ratos. A solicitação é relevante, eventualmente até com possibilidade de produção de um protótipo brasileiro, e motiva a equipe de ultra-som que, após intenso trabalho com a equipe solicitante, apresenta a solução a ser testada pela equipe da área médica. O trabalho é certamente interdisciplinar e o seu valor, decorrente da sua especificação e aplicação, não está em discussão. É claro que para o desenvolvimento os projetistas se envolveram com a questão, leram sobre o assunto, conversaram com os pesquisadores e ao final (em maior ou menor grau) passaram a saber mais sobre o assunto. Terminado o projeto, a equipe voltará aos seus outros trabalhos e ninguém, após algum tempo, saberá mais o que significa fração de ejeção. Talvez seja até difícil se lembrar se o trabalho era para aplicação em "ratinhos" ou camundongos. De modo similar, a equipe médica provavelmente irá se esquecer da importante modificação do campo ultra-sônico projetada durante o desenvolvimento.

O ponto a se realçar é que esta narrativa não incluiu nenhuma equipe interdisciplinar ( sem a equipe multidisciplinar, o melhor do desenvolvimento não fica em lugar nenhum!) ou sequer um pesquisador que pense e atue de modo interdisciplinar. Não há, neste caso, o pesquisador da Engenharia Biomédica que trabalhe com ultra-som e sistema cardiovascular. Este pesquisador teria interesse em obter dados da fração de ejeção de ratos submetidos a algum procedimento que é de seu interesse. Este é o pesquisador que iria realçar o porquê da transformação do campo ultra-sônico para melhorar a identificação de tecidos biológicos e, conseqüentemente, da medição da fração de ejeção no trabalho de aplicação.

Posteriormente, este pesquisador organizaria experimentos para realçar em aplicação de seu interesse o novo desenvolvimento de sua equipe. Há diferenças entre um trabalho interdisciplinar, realizado por equipes de áreas diferentes, e a atuação interdisciplinar de pesquisadores e equipes. É evidente que o primeiro caso cresce mais rapidamente e existe em maior número em todos os países. O segundo requer um profissional diferente dos demais para ocupar lacunas que não podem ser ocupadas por outro tipo de profissional. Áreas e equipes multidisciplinares são amplamente desejáveis e para isto é preciso deixar que os pesquisadores façam imersão de uma em outra área (que se diferenciem). A Engenharia Biomédica, é um exemplo em evolução e não pode deixar que seja definida como soma de Medicina (ou Biologia) com Engenharia!

Esta reflexão deve permear não apenas o trabalho, mas também, fundamentalmente, a formação do engenheiro biomédico. O currículo dos cursos de EB não pode ser montado e ensinado pela união de pesquisadores de diversas áreas. É preciso que reais engenheiros biomédicos ensinem parte substancial das disciplinas. Esta é uma das razões pelas quais EB é ensinada em nível de pós-graduação (e não graduação) nos países que conseguiram criar e manter bons cursos de mestrado e doutoramento.

Todas as áreas sofrem mudanças com o tempo. Nada deve ser estanque, e é saudável imaginar a coexistência de pontos de vista diferentes dentro das diversas áreas. A prova disso é a existência das chamadas sub-áreas (mas há que se pensar sobre a pulverização da área em micro-áreas, para aqueles que não se sentem muito confortáveis). Na minha opinião, se não houver imersão dos profissionais de EB em problemas que os caracterizem como interdisciplinares, não há razão para que se considere, por definição, a EB como interdisciplinar. Qualquer indivíduo, de qualquer área, pode realizar um trabalho em outra área e produzir um excelente trabalho interdisciplinar! Quando isso ocorre entre engenheiros e médicos, não necessariamente se deve caracterizá-lo como de EB. Diga-se de passagem a EB ocupa uma posição privilegiada hoje para a discussão sobre este assunto, já que, diferentemente do que acontece em muitas outras áreas que buscam a interdisciplinaridade, a EB exercita há muitos anos esta atividade com acertos e erros que não podem ser menosprezados.

Apresento a seguir um caso típico de trabalho interdisciplinar em EB, realizado por equipe interdisciplinar. Criamos na UNICAMP o chamado Laboratório de Pesquisa Cardiovascular – LPCv, localizado no Centro de Engenharia Biomédica (CEB) e gerido por pesquisadores do CEB e do Departamento de Engenharia Biomédica da Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (FEEC). A equipe, constituída há mais de 20 anos, se preocupa em entender o comportamento elétrico-mecânico do coração estudando de modo específico a interação do campo elétrico com as células do coração e os aspectos celulares e moleculares do processo que liga a excitação elétrica à contração muscular (o chamado acoplamento excitação-contração). Desenvolvemos vários métodos e técnicas para estudar preparações biológicas com músculo isolado e células individuais. Dentre estas técnicas, várias estão voltadas ao entendimento da variação intracelular da concentração do íon Ca2+, que antecede, dispara e controla a atividade contrátil cardíaca. A relevância do nosso estudo pode ser imaginada, pelo leitor não especializado como sendo alta por duas razões: 1) há instrumentos importantes que submetem o coração a campos elétricos, por vezes de alta intensidade, como terapias únicas. São os casos dos marcapassos, cardioversores e desfibriladores. É preciso entender melhor a interação das células com os campos elétricos para otimizar estes equipamentos, que por um lado salvam a vida de milhares de indivíduos, e por outro lesam o coração e deprimem a atividade bombeadora do órgão, em especial no caso do desfibrilador; 2) O entendimento e quantificação dos diversos processos de transporte de Ca2+ no coração é fundamental para o desenvolvimento de novos medicamentos para tratamento de doenças como as arritmias e a insuficiência cardíaca. Neste particular já desenvolvemos um método experimental e um modelo matemático que possibilitam descrever quantitativamente a participação relativa dos transportadores de Ca2+ no relaxamento do coração de mamíferos.

Como parte de projeto temático junto à FAPESP, nos propusemos a determinar a participação relativa dos transportadores de Ca2+ na contração ao longo do desenvolvimento pós-natal de ratos. A equipe, que era constituída por uma bióloga, um físico, dois engenheiros, um tecnólogo em saúde e um cientista da computação, se apressou em construir um equipamento para medir as variações intracelulares de Ca2+ em células isoladas de animais de várias idades (do dia do nascimento até a idade adulta). Construída a instrumentação, que é bastante complexa, envolvendo óptica, mecânica, eletrônica, química e processamento de sinais, o trabalho de isolamento dos diversos tipos de células, também concluído, seria intensificado para produção diária da matéria prima, ou seja, as células nas quais seriam medidos transientes de Ca2+. A idéia era aplicar as técnicas desenvolvidas anteriormente para caracterizar quais transportadores de Ca2+ seriam mais ativos (se fosse o caso) nas diferentes fases da vida pós-natal. Apenas para dar uma idéia da importância deste tipo de abordagem, além do conhecimento da fisiologia do desenvolvimento, nossa idéia era que se um dado transportador A fosse mais ativo que um transportador B na idade adulto e se esta diferença de atividade fosse alterada (e.g. de A = 60% de B para A = 30% de B), a informação teria grande valor no desenvolvimento futuro de medicamentos e no alerta quanto ao uso de medicamentos existentes para indivíduos ainda imaturos. A razão é que o alvo para muitos tratamentos de doenças cardíacas é a dinâmica do Ca2+ celular. Por exemplo, no rato adulto o transportador de membrana chamado de troca Na/Ca contribui com cerca de 7% do transporte. Se um medicamento que afeta este transportador fosse administrado a animais desta espécie, o efeito não seria tão marcante quanto é no homem, cuja participação deste mesmo transportador é certamente mais de 3 vezes maior. Mas e nos animais mais jovens? Assim como nos humanos neonatos, não sabíamos nada quantitativamente.

Iniciamos os experimentos para medição de Ca2+ em animais neonatos e o ponto inesperado foi assustador. Não éramos capazes de, por meio de estimulação elétrica, induzir a atividade contrátil nas células dos animais neonatos, como fazíamos há mais de 15 anos em tecido e células isolados de animais adultos. Nenhum membro da equipe sabia a natureza do problema. Todos os recursos de estimulação foram tentados (alta corrente, alta tensão, estimuladores nacionais e importados), mas nada funcionou. Todos os aspectos imagináveis do processo de isolamento e perfusão das células foram testados e não conseguimos efeito. O projeto teria que ser abandonado, não fossem os pesquisadores realmente multidisciplinares. O nosso maior interesse era a célula cardíaca que estava disponível. Era preciso encontrar o caminho para a estimulação. Estariam as células mortas? Fizemos dois testes, além da observação das características morfológicas que eram todas favoráveis, primeiro a observação por longos períodos das células sob perfusão. Esta observação nos revelou que as células exibiam esporadicamente contrações espontâneas e portanto estavam vivas e tinham capacidade para se contrair. O outro teste foi baseado no conhecimento da ação do composto cafeína. A cafeína, apresentada em alta concentração e de modo rápido às células cardíacas, provoca uma contratura. Neste caso, o composto atravessa a membrana celular e dentro da célula causa a liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático (organela que armazena a maior parte do Ca2+ usado para a contração). Esta liberação causa uma grande variação da concentração intracelular do íon e, por conseqüência, uma intensa contratura. As células respondiam a cafeína. O problema parecia mesmo ser a estimulação elétrica. Decidimos que a potência estimulatória seria aumentada para valores muito além dos encontrados nos estimuladores elétricos nacionais e importados. Um dos alunos construiu um estimulador para teste e ao atingirmos uma potência cerca de 25 vezes maior que a necessária para estimular as células dos animais adultos. O resultado enfim apareceu! Com a possibilidade de estimular adequadamente as células cumprimos nossa meta de estudar o transporte de Ca2+ ao longo do desenvolvimento pós-natal em ratos e revelamos que a participação relativa dos transportadores de Ca2+ é significativamente diferente entre os animais muito jovens e neonatos e os adultos. Curiosamente, a troca Na/Ca participa com 28% do transporte no neonato, ou seja 4 vezes mais que no adulto. Moral da história: o neonato não é miniatura de adulto sob este ponto de vista. Se utilizarmos no neonato um medicamento desenvolvido para adultos que bloqueie a troca Na/Ca, após o ajuste da dosagem por peso, estaremos errando 4 vezes! Como lucro, levantamos uma importante questão, a importância da geometria e dimensões celulares sobre a efetividade do campo elétrico em causar excitação elétrica. Esta questão é até hoje, mais de 5 anos depois, é tema de estudo dentro do LPCv sob o ponto de vista eletromagnético, biofísico e eletrofisiológico.

Voltando à questão da interdisciplinaridade. A equipe muda a cada ano pela entrada e saída de estudantes das mais diversas áreas. Contudo, os pesquisadores do LPCv continuam estudar transporte e regulação de Ca2+ e estimulação elétrica, agora com o acréscimo dos problemas envolvidos no uso de campos elétricos de alta intensidade (o conhecimento foi absorvido e vem sendo modificado!). Tudo isto requer grande esforço e a existência de uma equipe de base! Não se pode inovar “por encomenda”. A interdisciplinaridade precisa ser realmente semeada (e não lançada ao acaso) e isto requer muitos cuidados para que a semente germine!

Palavras-chave: engenharia biomédica; ; .
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006