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Aspectos históricos, ecológicos, cromossômicos e evolutivos da colonização de drosofilídeos em um ambiente urbano
Victor Hugo Valiati
Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS)
 

Os estudos de populações de espécies invasoras representam oportunidade singular para o entendimento de como os invasores reagem às novas condições bióticas e abióticas, bem como da resposta das espécies nativas à invasão. O potencial de colonização das espécies invasoras pode ser avaliado através do estudo dos padrões geográficos da invasão, tais como os limites da expansão e as possíveis conseqüências econômicas, sociais e biológicas advindas da entrada da nova espécie no novo ambiente. Espécies invasoras classificadas como peste em lavouras, causadoras de prejuízos elevados, determinam alterações econômicas e sociais que objetivam a superação dos danos por elas causados. Ecologicamente, a introdução de uma nova espécie em um novo ambiente pode trazer conseqüências sérias para a estabilidade das comunidades nativas. Os invasores podem alterar as interações de competição e reduzir o tamanho das populações nativas na comunidade, levando, em determinadas situações, alguma espécie à extinção. Outro aspecto importante no estudo de populações de espécies invasoras é a avaliação da diversidade genética dessas populações, uma vez que este fator poderá indicar o quão bem adaptada está a nova espécie ao seu novo ambiente.

Embora altamente importantes, os estudos da biologia de espécies invasoras, tanto dentro dos limites de sua área de distribuição nativa quanto no ambiente por ela invadido, são escassos. Em muitos casos, forças externas à biologia da espécie invasora, tais como, ausência de predadores, de bons competidores e parasitas, ou características do habitat invadido, são consideradas como causas primárias para o sucesso da invasão.

A presença de inimigos naturais pode impedir invasões ou reduzir a taxa de dispersão da espécie invasora. Os inimigos naturais somente representam uma ameaça se forem capazes de expandir sua dieta alimentar, incluindo nela o invasor. Sendo assim, os efeitos depressivos dos inimigos naturais para com o invasor dependem do número de espécies inimigas, de sua densidade populacional, de sua preferência alimentar e do número total de espécies presa residentes no local invadido, que são de maior preferência do predador do que a espécie invasora. Do ponto de vista evolutivo, as pressões seletivas impostas às populações de espécies endêmicas, pelo aparecimento de uma espécie competidora ou predadora, pode acarretar modificações nos organismos que habitam o novo território, como alteração de sua tolerância a novos estresses ambientais e das suas interações com os componentes das taxocenoses locais.

Espécies que são generalistas quanto à utilização de recursos tróficos e quanto à sua tolerância a condições climáticas variáveis são boas candidatas a invasoras de novos territórios, o que muitas vezes tem sido observado ocorrer em locais distantes de seus centros de origem. A capacidade de invasão dessas espécies a novos ambientes, entretanto, está condicionada ao aspecto “versatilidade ecológica”, expressa como ajuste aos sítios de criação de pré-adultos e de alimentação dos adultos.

Nos últimos anos a utilização de drosofilídeos para estudos biológicos das espécies invasoras tem recebido especial destaque. A alta capacidade de dispersão da maioria das espécies desses insetos, encontradas desde ambientes de mata nativa até ambientes altamente urbanizados, além da preferência alimentar por frutos e outros materiais vegetais em decomposição, e, o pequeno tamanho das moscas acrescido do excelente conhecimento taxonômico do gênero Drosophila, faz desses organismos bons modelos para estudos ecológicos e evolutivos. Alguns casos bastante interessantes de invasões biológicas bem sucedidas entre drosophilídeos têm sido registrados, como por exemplo, a espécie paleártica Drosophila subobscura no Chile e a espécie asiática D. malerkotliana nos anos 70 no Brasil.

Nas últimas décadas as comunidades de drosofilídeos na região Sul do Brasil têm sido estudadas em seus aspectos ecológicos, genéticos, comportamentais e evolutivos, visando compreender a sua estruturação em ambientes tão diversos como matas e áreas urbanizadas. A interação entre espécies nativas e exóticas e entre espécies residentes e invasoras também vêm sendo acompanhada, assim como a utilização dessas espécies em diferentes recursos tróficos. No estudo de ecologia de populações, as áreas urbanas representam a oportunidade de avaliar um local completamente diferenciado do ambiente de mata. Isto porque o processo de urbanização faz com que os organismos sejam expostos a novos fatores ecológicos e ambientais. Entre esses fatores estaria a perda de áreas verdes e a poluição, resultante da atividade industrial do homem, que altera significativamente o ambiente, diminuindo a qualidade do ar, da água, dos recursos naturais e também a composição das espécies. Portanto, a partir das alterações ambientais resultantes da ação antrópica, durante os processos de urbanização, são criados novos ecossistemas. Outra conseqüência importante da urbanização é a potencial eliminação de espécies nativas e a introdução de espécies exóticas.

Poucos são os trabalhos com artrópodes no ambiente urbano se excluídos aqueles direcionados para o controle de pestes ou epidemias. Embora os drosofilídeos sejam favoráveis para esse tipo de estudo, pouco se conhece sobre o modo como esses organismos são afetados pela urbanização. Objetivando contribuir para o entendimento da adaptação de espécies de Drosophila aos diferentes gradientes ambientais, estudam-se há mais de vinte anos, as espécies crípticas D. willistoni e D. paulistorum. Tais estudos visam compreender os impactos da urbanização sobre a biodiversidade de espécies nativas, utilizando como ambiente de estudo a cidade de Porto Alegre. Dentro desse contexto, o uso de marcadores ecológicos e cromossômicos em populações urbanas destas espécies tem revelado profundas modificações impostas pela urbanização sobre elas.

O subgrupo da D. willistoni apresenta distribuição essencialmente Neotropical sendo composto de seis espécies crípticas: D. willistoni, D. paulistorum, D. equinoxialis, D. tropicalis, D. insularis e D. pavlovskiana. Dentre elas, a D. willistoni é a de mais ampla distribuição geográfica, estendendo-se desde a Flórida até o norte da Argentina e D. paulistorum, segunda em extensão geográfica, ocupando a maior parte da distribuição de D. willistoni. Drosophila paulistorum é uma superespécie constituída de seis raças ou semi-espécies, sendo a semi-espécie Andino-Brasileira a única encontrada em Porto Alegre e que ocorre em simpatria com D. willistoni. Embora D. paulistorum fosse considerada como ausente em locais perturbados pelo homem a ocorrência dessa espécie em Porto Alegre a partir do ano de 1985 sugeriu seu potencial de colonização, abrindo um leque de possibilidades de estudos evolutivos com essas populações. A cidade de Porto Alegre está localizada no extremo sul da distribuição geográfica de D. paulistorum, o que, associado com as peculiaridades de áreas urbanas, permite caracterizá-lo como um ambiente marginal tanto do ponto de vista geográfico como ecológico para a espécie.

Para traçar os aspectos históricos da colonização de D. willistoni e D. paulistorum no ambiente urbano de Porto Alegre, considerou-se os registros numéricos e de freqüências das duas espécies desde 1986, logo após o primeiro registro de D. paulistorum na cidade. Foram avaliados também os níveis de variação genética em relação aos arranjos cromossômicos das populações dessas espécies.

Os subgrupos mais representativos nas assembléias de drosofilídeos da área urbana, entre os anos de 1986 e 2004, foram os da D. melanogaster (representado principalmente pela espécie D. simulans, com mais de 90%), os da D. willistoni (D. willistoni e D. paulistorum, com alternância de freqüências) e, mais recentemente, a espécie invasora Z. indianus, que juntos, representam mais de 80% das populações estudadas.

Dentre os principais resultados desses estudos consta a atual diminuição do potencial colonizador de D. paulistorum em Porto Alegre, evidenciada por uma queda da freqüência dessa espécie nos últimos anos. Além de demonstrar preferência pela ocupação de áreas menos urbanizadas, D. paulistorum apresentou grande alterações em seus registros de freqüência na cidade. Nas décadas de 80 e 90 chegou a representar mais de 10% dos indivíduos coletados, diminuindo para um pouco mais de 1% em 2004. A expressiva redução do tamanho populacional de D. paulistorum nos últimos anos também é refletida em termos de polimorfismo para inversões cromossômicas. Na década de 1980 e 90, o número de inversões cromossômicas detectadas nas populações dessa espécie foi de 18 e 23 inversões heterozigotas, respectivamente, sendo somente seis delas em comum entre os estudos. A análise atual (2004), do polimorfismo cromossômico, revelou a existência de apenas três inversões cromossômicas em heterozigose. Em relação à utilização de recursos alimentares, os estudos realizados nos anos de 1980 e 1990, revelavam uma clara preferência de D. paulistorum por frutos exóticos como sítios de ovoposição e alimentação, enquanto sua críptica D. willistoni apresentava preferência por frutos nativos, sugerindo uma estratégia que evitaria a competição entre as duas espécies. As coletas de drosofilídeos realizadas nos últimos anos revelaram uma alteração desse quadro. Drosophila paulistorum continuou sendo encontrada preferencialmente em frutos exóticos, no entanto, D. willistoni passou a ser encontrada compartilhando esses recursos, muitas vezes superando D. paulistorum em freqüência, o que em estudos prévios não era observado. Tal fato pode sugerir que atualmente estaria ocorrendo uma provável competição entre as duas espécies.

O acompanhamento sistemático da composição das assembléias de Drosophilidae na área urbana de Porto Alegre, ao longo do tempo, propiciou a detecção no ano 2000 da mosca invasora, Zaprionus indianus. Desde seu primeiro registro na América do sul em 1999, Z. indianus, tem se tornado um dos drosofilídeos mais abundantes em muitos locais em determinados períodos. Sua eficiência como espécie invasora tem levantado grandes preocupações ecológicas, uma vez que essa mosca parece representar uma ameaça ao equilíbrio das assembléias de drosofilídeos neotropicais, que incluem muitas espécies endêmicas. A chegada de Z. indianus na cidade de Porto Alegre, parece, até o momento, estar promovendo ajustes nas estratégias de sobrevivência das espécies residentes, pelo menos em certos períodos quando a freqüência das populações da invasora aumenta significativamente, chegando a atingir mais de 80% dos indivíduos coletados. Isto ocorre preferencialmente nos meses mais quentes do ano, o que foi demonstrado pelos estudos que indicam que Z. indianus apresenta limitações para as médias de temperaturas mínimas, estando em baixíssima freqüência, ou até ausente nos meses mais frios do ano.

Um destes ajustes provocados por Z. indianus, pode ter sido o deslocamento de D. willistoni para os frutos exóticos, anteriormente ocupados preferencialmente pela D. paulistorum. O deslocamento de D. willistoni para frutos exóticos estaria condicionado à pressão exercida pela Z. indianus na utilização dos recursos disponíveis, uma vez que, dos 14 recursos tróficos avaliados em 2004, a espécie somente não foi encontrada em um deles. Como já salientado, a sobreposição de D. willistoni e D. paulistorum em frutos exóticos causaria uma provável competição entre os dois drosofilídeos e, em conseqüência, explicaria a diminuição das freqüências observadas de D. paulistorum nos últimos anos. Assim, a baixa freqüência de D. paulistorum em 2004 pode estar associada a vários fatores como: a influência indireta da presença de Z. indianus, uma interação direta (ou competição) com a D. willistoni e, ao crescimento de Porto Alegre desde a década de 80, o que alteraria os níveis de urbanização desde sua primeira classificação. Deste modo, uma nova avaliação dos níveis de urbanização de Porto Alegre deve ser realizada para futuros estudos interessados em investigar sua real influência na distribuição de espécies de drosofilídeos nesse ambiente.

Conclusivamente, deve ser salientado que o monitoramento em longo prazo das comunidades de drosofilídeos é fundamental para o acompanhamento das variações temporais nas freqüências destes insetos, podendo fornecer dados de como algumas populações são notavelmente estáveis e outras flutuam amplamente, sendo que algumas espécies podem desaparecer de alguns locais ou serem deslocadas, enquanto outras, que eram inicialmente raras ou ausentes, tornam-se abundantes. No caso das espécies do subgrupo da D. willistoni verificou-se que nas últimas décadas D. willistoni foi mais freqüente nos anos 80 enquanto, D. paulistorum foi bem mais freqüente nos anos 90 e, recentemente, 2004, D. willistoni voltou a ser a espécie mais freqüente. Se esta tendência de alternância da representatividade de D. willistoni e D. paulistorum dentro do subgrupo da D. willistoni é cíclica ou se D. paulistorum está definitivamente reduzindo sua representatividade, é questão que só poderá ser respondida com o contínuo acompanhamento dessas assembléias de drosofilídeos.

Palavras-chave: drosofilídeos; ; .
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006