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Dimensão pública da informação e conhecimento na contemporaneidade
Maria de Fátima Tálamo
Universidade de São Paulo (USP)
 

Para além das abordagens do campo da Ciência da Informação que instituem suas origens e desenvolvimento fortemente associados às tecnologias, é possível identificar traços vinculados ao seu caráter social aplicado que , embora constantes, não se expressam de forma contundente, fixando-se, não raro, apenas como pressuposições. Uma possível estratégia para reconhecê-los consiste em abordar os vértices usualmente referenciados nos estudos da origem do campo sob a ótica da ordem discursiva. Considerando que a noção de ordem do discurso contempla séries produzidas por uma comunidade que propiciam a contextualização social de suas temáticas, identificar-se-ão nas propostas de alguns pensadores do campo os componentes associados à relação informação/conhecimento. Indagar-se-á também, na seqüência, a dimensão em que se inscreve semelhante articulação, individual ou pública. A motivação para empreender tal trajetória associa-se à conviccção de que a questão multifacetada da informação, tal como hoje se apresenta, resulta de longo processo de estruturação que corresponde à seleção deliberada de determinados elementos ou traços e a consequente exclusão de outros. Estes, os traços excluídos, compõem resíduos – traços não integrados ao objeto – estrutura - mas que permanecem, às vezes como subentendidos, a espera de um momento oportuno de manifestação, quando então, contribuam para um avanço da compreensão da experiência de construção do campo, superando-se o que Morin chama de fratura do conhecimento.Após ter defendido a importância de o Parlamento francês coroar com “ esplendor” a política desenvolvido entregando ao “ grande público” belas bibliotecas, Gabriel Naudé, em 1627, apresenta o seu projeto intitulado "Advis pour dresser une bibliothèque" em que descreve sua concepção de biblioteca. No bojo da diferenciação social do mundo do saber que se desenvolvia no século XVII, a idéia de uma biblioteca, fosse ela privada ou não, aberta ao público, evidenciava a função dos livros e de sua forma de disponibilização e acesso na alteração da própria concepção de conhecimento. Não só a multiplicação dos livros mas também a mudança na organização das universidades devem ter contribuído para que Naudé associasse o caráter público – manifesto- da biblioteca ao progresso. Para isso imaginava que, naquela época de mudança, o acervo da biblioteca deveria contemplar as diferentes correntes de pensamento, garantindo-se nele a presença de todos os autores. Os limites da biblioteca universal seriam neutralizados pelos catálogos, cuja presença garantiria superar a idéia de seleção – fosse ela ditada por preceitos ideológicos ou limitações físicas. De fato essa biblioteca pública e universal implica uma ampliação das fronteiras do conhecimento impulsionada por uma “biblioteca sem paredes” e apresenta pontos comuns com outras manifestações que a sucederam , ampliando as idéias já nela instaladas.. É o caso, por exemplo dO Manifesto da Unesco para Bibliotecas Públicas, que no final do século XX proclama que os valores humanos fundamentais, tais como liberdade, prosperidade e desenvolvimento da sociedade e dos indivíduos dependem para sua obtenção do acesso ao conhecimento, cultura e informação.

No final do século XIX, Dewey lança as bases da biblioteconomia moderna, fortemente associada à importância da contribuição essencial das bibliotecas à educação. No conjunto , tais contribuições estabeleceram todas as condições exigidas para caracterizar uma área de especialidade: a coleção, sua organização e os processos de referência, consubstanciados nos serviços, especialmente os específicos, ou segmentados, para mulheres e crianças, e a institucionalização da profissão obtida por duas vias: o ensino e as associações profissionais. È a idéia de serviço que supõe, de um lado, um profissional com formação específica e, de outro, ferramentas para subsidiar essa ação profissional, que amplia os modos de intervenção da biblioteca. Tudo se passa como se a qualidade da ação – consubstanciada na idéia de coleção como resposta possível às necessidades informacionais da coletividade- funcionasse como antídoto da impossibilidade da reunião universal dos registros. No seu conjunto, as proposições de Dewey, especialmente o setor de referência e a atuação social e segmentada da biblioteca , inclusive com as bibliotecas móveis para a zona rural, evidenciam que a dimensão pública da biblioteca se prevalece se um serviço, deliberado e planejado.

Na Bélgica, no final do século XIX e início do XX, Paul Otlet e Henri Lafontaine fundam a Documentação a partir da paixão pela bibliografia, associada a convicções pacifistas. Embora o projeto contasse com pretensões universais, já que em 1895 propõe-se a elaboração do Répertoire Bibliographique Universel (RBU), com o objetivo de repertoriar todas as obras publicadas desde a invenção da imprensa, a idéia mais rica consistia sem dúvida na possibilidade do re-uso dos conteúdos dos registros como jamais fora proposto de forma consolidada. Para classificar – e relacionar - os conteúdos do RBU, cria-se em 1905 a Classificação Decimal Universal, associando à organização dos documentos a função de proporcionar o acesso aos conteúdos dos mesmos, enfatizando nestes sua dimensão informacional. A ênfase está efetivamente no acesso à informação e não exatamente na sua utilidade.

Na cronologia proposta é possível identificar que paulatinamente desenvolve-se a idéia de que uma das ênfases das propostas relativas às concepções de informação recai sobre a possibilidade de acesso a ela condicionada ao seu re-uso, matéria fundamental para geração do conhecimento, realizando-se a articulação operacional entre ambas as formas imateriais. Afirma-se, portanto, o valor intrínseco da informação, o que confere sem dúvida atualidade aos oito princípios da Documentação propostos por Otlet: “os objetivos da documentação organizada consistem em poder oferecer sobre todo tipo de fato e de conhecimento informações documentadas 1. universais quanto ao seu objeto; 2. confiáveis e verdadeiras; 3. completas; 4. rápidas; 5. atualizadas; 6. fáceis de obter; 7. anteriormente reunidas e prontas para serem comunicadas; 8. colocadas à disposição do maior número de pessoas”.

Um século antes das propostas de Dewey e Otlet, inicia-se a construção da noção de cultura do espaço público. Embora a articulação público/privado já fosse observada desde a Antiguidade, é no século XVIII que a cultura do espaço público se desenvolve e encontra seu apogeu no século XIX intimamente relacionada com a composição da cidade e com as oposições entre o eu e o nós, entre o particular ( privado) e o comum ( coletivo) . Segundo Sennet,” a geografia das capitais servia aos cidadãos como meio para pensarem sobre a natureza e cultura, identificando o natural com o privado e a cultura com o público”. A informação entendida como ordem dos documentos, como serviço segmentado, como referência – supondo-se sempre a reciprocidade entre as formas físicas e dos conteúdos- inscreve-se diretamente no universo da cultura, pertencendo portanto ao domínio público. As tecnologias, embora tenham alterado de forma significativa o espaço público substituindo o território pelo deslocamento midiático não altera substancialmente a dimensão pública da informação, qual seja a de meio para interpretar o mundo, sendo o conhecimento o resultado dessa mesma interpretação. De fato, a informação promove a mediação entre o eu e o outro: que se pense, por exemplo, na relação de alteridade instituída na seleção feita a partir de resultados de uma busca em uma base textual. O conhecimento então evolui por mediações, pela tensão entre o sujeito e as coisas representadas propiciada pela dimensão pública, qual seja cultural, da informação . Essa mesma percepção, sob outro ângulo, apresenta a informação como a conexão que faz o mundo passível de ser conhecido. A idéia de conexão, por sua vez, induz um outro entendimento da idéia de representação documentária. No seu cerne não se encontra uma mera relação de substituição: ao invés de X tem-se uma síntese normalizada de X. A representação como mediação institui na substituição a conexão que vai necessariamente para além da síntese e da recuperação e supõe o uso interpretativo. A informação como representação, elemento da cultura pública, media os processos cognoscentes e não se propõe nem como algo objetivável de forma isolada nem como direito exclusivo do enunciador . Tem-se então a concepção produtiva, qual seja interpretativa, da cultura. Sob a ótica do consumo, tanto a informação quanto o conhecimento se transformam em mercadoria e apenas designam os saberes práticos e tecnológicos passíveis de mensuração em termos de valor agregado. Nesse caso, ambos –informação e conhecimento – encontram-se dissociados da dimensão pública que os constituíam como construções.

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006