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O HUMOR NA LITERATURA POPULAR ORAL E ESCRITA: UMA ABORDAGEM EM SEMIÓTICA DAS CULTURAS
Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista
Universidade Federal da Paraíba (UFPB)
 

Cascudo (1983:680) define cultura popular como o “saldo da sabedoria oral na memória coletiva”, considerando-a “uma camada terciária, anteposta aos conhecimentos escolares (...) que o povo a recebeu de seus antepassados pelo exercício de atos práticos e audição de regras de conduta religiosa”.

A cultura popular, manifestada em ritos e espetáculos, em obras literárias orais e escritas, cômicas ou sérias e no vocabulário familiar e simples apresenta, segundo Bakthin (1987:06), “como principal característica a liberdade de expressão, de qualquer dogmatismo”. Como exemplo disso, têm-se, na literatura popular, o discordância da gramática normativa vigente (que é uma lei oficial) e as impressões em tipografias elaboradas pelos próprios autores de forma artesanal, fugindo aos modelos impostos pela cultura oficial.

A Literatura Popular é um aspecto da cultura popular que engloba um número vasto de produções literárias, algumas vezes de autoria desconhecida e datando de época antiga da nossa língua, o que permite considerar sua tradicionalidade. O presente trabalho procura analisar textos literários populares de humor sob o ponto de vista da semiótica das culturas que, como o próprio nome indica, ressalta as significações culturais do texto.

Para Rastier (2002:246), no nível semiótico, a circunvizinhança do homem se caracteriza por quatro rupturas: a pessoal que opõe o par interlocutório eu e tu a uma terceira pessoa ausente da interlocução; a local que opõe o par aqui e aí a um terceiro termo lá ou (ali) igualmente ausente da enunciação; a temporal que opõe o agora, o recente, e o futuro próximo, (zona circunstante do presente da enunciação) ao passado e ao futuro (distantes, conhecidos indiretamente e muitas vezes lendários) e a modal que opõe o certo e o provável ao possível e real. Estas rupturas são gramaticais e constituem objeto de escolha incessante dos locutores, devendo todo enunciado ser situado pelo menos em uma dessas zonas. As homologias entre estas rupturas permitem distinguir três zonas: uma de coincidência (a zona identitária), uma de adjacência (a zona próxima) e uma de diversidade, a zona distante. Tomemos agora duas quadras populares que se podem situar numa zona de proximidade, de semelhança mas não de igualdade:

Tenho um Santo Antônio
Santo Antônio de pião,
Santa feme tem p´riquito,
Santo macho tem cunhão
Tenho um Santo Antônio
Santo Antônio de pião,
Santa feme usa saia,
Santo macho cinturão

A primeira versão consiste numa descrição real da masculinidade ou feminilidade do santo/santa. A santa (fêmea) possui órgãos sexuais femininos e o santo (macho), masculinos. Não se trata de pornografia. É realmente esta a diferença entre machos e fêmeas quer sejam santos ou pecadores e o popular compreendeu isso. A pornografia está muito mais ligada ao ridicularizar, ao rebaixamento do outro do que no uso do vocabulário simples.

A segunda tenta distinguir o santo pelo uso das roupas, porém se considerarmos o ditado popular não é o hábito que faz o monge, não é a saia ou o cinturão que servem para fazer esta distinção. Os escoceses, por exemplo, usam saias. Certamente, essa quadra é uma recriação da primeira, motivada por tabu, ou preconceito contra os órgãos sexuais.

Em ambos os casos, existe uma ruptura pessoal entre o eu do enunciador, na zona identitária, e o ele dos santos, na zona distal. O tempo e o lugar podem ser considerados numa zona de proximidade. Ao mencionar eu tenho, o locutor afirma que o santo está próximo dele. Esta proximidade se alarga, também, pelo fato de possuírem os santos órgãos sexuais como o enunciador (ele ou ela) e, ainda, de realizarem ações atuais no presente (o santo tem/usa e não tinha/usava). Portanto, o santo não é um ser distante, indiferente à pessoa do locutor que viveu num passado longínquo, mitológico e estranho, mas é real. Pôr um santo no céu, eliminar dele a sexualidade e deixá-lo num passado longínquo são tentativas de distanciá-lo do homem, de divinizá-lo. Servem para mostrar ao homem que ele não tem a capacidade que o santo tem, por isso, peca. No texto popular, pelo contrário, o enunciador se compara ao santo, desvincula-se do dogmatismo e crê no santo. É como se afirmasse: tenho um santo, ele está comigo, faz parte da minha vida e possui as coisas que possuo. Portanto, eu acredito nele e sou capaz de fazer as coisas que ele faz.

Em princípio, este é um assunto sério para o enunciador que o vê como uma verdade irrefutável. É o enunciatário que recebe a mensagem como humorística. O humor surge por três razões. Primeiramente, porque se trata de uma idéia contrária ao pensamento oficial vigente de que o santo é um ser diverso do homem, envolvido em uma áurea de misticismo. Em seguida, devido ao uso da linguagem popular. Se o enunciador tivesse mencionado vagina e testículos, certamente nossa compulsão para o riso teria diminuído. Rimos porque o modo de dizer não é o nosso, está distante do nosso, soa estranho para nós. E àquilo que não é reconhecidamente nosso, ou do nosso interesse, não damos a devida importância. Em terceiro lugar, liga um assunto biológico ao espiritual que, para muitos, parece um absurdo. Na verdade, a santidade não está no fato de não possuírem os santos órgãos sexuais, mas de terem, na vida, se destacado por um amor incondicional ao divino.

Bakthin (1987: 127/128) chamou realismo grotesco um tipo peculiar de imagem referente ao princípio material e corporal que caracteriza a cultura cômica popular e que, para o autor, é um fato positivo. O porta voz é o povo e o traço marcante é o rebaixamento de tudo o que elevado e espiritual para a terra e o corpo. Não aparece de forma egoísta, dissociado da vida humana e representa um fenômeno em estado de transformação como o próprio homem.

O santo referido nas duas quadras analisadas também é providencial. Trata-se de Santo Antônio, de origem portuguesa, mais próxima de nós e não francesa ou italiana. O santo é daqui e não daí, identifica-se comigo (o locutor) e não com outrem.

É o mesmo santo que aparecem em outras composições populares como as seguintes:
Santo Antônio pequenino
Amansador de burro bravo
Venha amansar minha sogra
Que é levada dos diabo

Santo Antônio engana a gente
Santo Antônio enganador
Santo Antônio engana a gente
Que dirá o pecador?

Nessas duas quadras, como nas anteriores o santo faz coisas humanas: cuidar de animais e enganar moças solteiras que não conseguem casamento. O santo aqui é igualado ao homem comum, até mesmo no pecado.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikahail. A Cultura Popular na Idade Média. Hucitec/UNB, Brasília, 1987.
BATISTA, Maria de Fátima de Mesquita et al. Estudos em Literaturas Popular. João Pessoa: Editora Universitária, 2004.
CASCUDO, Luís da Câmara. Civilização e cultura. Belo Horizonte : Itatiaia / São Paulo : Editora da Universidade de São Paulo, 1983.
PAIS, Cidmar Teodoro. Discursos Etno-Literários: Caracterização Semiótica. In Congresso Internacional de Literatura de Cordel. João Pessoa: Fundação Casa de José Américo, 2005
Sociossemiótica e semiótica da cultura. In Anais do IV Encontro Nacional da Anpoll. Recife: Anpoll, 1989: 795-800.

Palavras-chave: literatura; ; .
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006