IMPRIMIR VOLTAR
TERMINOLOGIA APLICADA: TEORIAS, PRÁTICAS E DESENVOLVIMENTO TÉCNICO-CIENTÍFICO
Maria Aparecida Barbosa
Universidade de São Paulo (USP)
 

0. Introdução

Este trabalho propõe-se a estudar as relações entre a interdisciplinaridade e a especificidade de objeto, campo e métodos de disciplinas que se ocupam da palavra. Em função de uma renovada tipologia dos universos de discurso, assinala a necessidade de consolidação de disciplinas como a Terminologia Aplicada; destaca, os processos de banalização, vulgarização, popularização de linguagens especializadas, enquanto importantes mecanismos de circulação e difusão do conhecimento; enfatiza a necessária adequação dos discursos a diferentes grupos de destinatários, a comunicação entre especialistas e não-especialistas, os distintos níveis de linguagem envolvidos e algumas decorrências transdisciplinares. Essas reflexões inserem-se numa pesquisa mais ampla que a Autora vem desenvolvendo, há algum tempo, com vistas à proposição e consolidação de duas subáreas do amplo domínio coberto pela Terminologia: a Etno-terminologia e a Terminologia Aplicada. Quanto à primeira, busca a delimitação das estruturas morfo-semântico-conceptuais de sua unidade padrão, o vocábulo/termo, uma das características do universo de discurso etno-literário. Essas reflexões tomam como ponto de partida a questão da tênue fronteira existente entre o termo técnico-científico e o vocábulo da língua geral e procuram mostrar que uma mesma unidade lexical pode assumir os valores e as funções, ou de termo ou de vocábulo, conforme o universo de discurso em que se inscrevem. Diferente é o estatuto das unidades lexicais dos discursos etno-literários, que subsumem as duas funções, nos mesmos universos de discurso e nos mesmos discursos-ocorrência. No que tange à Terminologia Aplicada, escopo principal deste trabalho, a pesquisa busca mostrar algumas de suas importantes tarefas: ensino de língua materna ou estrangeira; pedagogia de metalinguagens técnico-científicas, numa perspectiva mono e multilíngüe, processos de tradução automática; técnicas de documentação; tratamento da informação, dentre outras. Privilegiam-se, aqui, os mecanismos de transcodificação entre o texto técnico-científico e o texto banalizado, destacando-se a importância dos modelos epistemológicos e metodológicos de tratamento, compilação, recuperação e transmissão de metalinguagens.

1. Da Terminologia Aplicada

Como vimos em trabalho anterior (Barbosa e Pais, 2004), toda ciência ou tecnologia, seja, do ponto de vista epistemológico, seja do metodológico, seja, ainda, daquele da construção do seu saber metalingüístico, estabelece estreitas relações de cooperação - interdisciplinares, no nível das ciências básicas, ou no nível das ciências aplicadas, e de alimentação e realimentação entre estas e aquelas -, com outras ciências básicas, ciências aplicadas e/ou tecnologias. Esse processo de contribuição recíproca, entre tais disciplinas, não lhes retira, contudo, a especificidade do objeto de estudo, campo, métodos e técnicas e, até mesmo, de modelos e de metalinguagem. De fato, sustentando-se todas nesse relacionamento complexo e dinâmico de interdisciplinaridade, multidisciplinaridade, alimentação e realimentação, intra e inter-áreas do conhecimento humano, perseguem, efetivamente, objetivos comuns: a busca da verdade, a análise e descrição do seu objeto, a redução dos fatos a modelos, a construção do saber, o aprimoramento da qualidade de vida, a construção de um discurso metalingüístico específico.

Em determinados textos técnico-científicos, em determinadas áreas do conhecimento, prevalece o saber compartilhado; noutros textos e noutras áreas, predomina o saber exclusivo. No caso da Terminologia Aplicada, os dois saberes coexistem e articulam-se necessariamente.

É lícito dizer-se que a prática de uma ciência básica ou aplicada, a sua produtividade e crescimento demonstram a imperiosa necessidade de construção e permanente reconstrução de um vocabulário próprio, preciso e consensual, instrumento de análise e descrição, que não somente permite defini-las e circunscrevê-las, enquanto disciplinas, como também lhes proporciona a aplicação mais rigorosa, produtiva, eficaz dos princípios, métodos e técnicas. Uma ciência que não conseguisse autodefinir-se não teria identidade, não poderia delimitar nem o seu objeto de estudo nem os seus processos de atuação. Dessa forma, uma ciência ou tecnologia vão constituindo-se e delimitando-se como tais, no processo histórico de acumulação e transformação do conhecimento, à medida que, simultaneamente, se vão delimitando o seu objeto formal, os métodos e técnicas de análise e descrição desse mesmo objeto e à medida que, igualmente, se vai consolidando a sua metalinguagem. Noutras palavras, com a precisa definição dos seus termos, e somente assim, determinam-se claramente os fatos próprios ao seu universo, seus métodos e técnicas. É legítimo afirmar, pois, que a construção da ciência é indissociável da construção de sua metalinguagem. À proporção que se vai constituindo, consolida-se a ciência e sua identidade epistemológica.

Esses aspectos, dentre outros, mostram a importância das metalinguagens terminológicas na sociedade atual, para a ampliação do saber e do saber-fazer do indivíduo, não só sobre determinada ciência ou tecnologia, como também o seu saber sobre o mundo. Daí decorre a importância dos modelos epistemológicos e metodológicos de tratamento, compilação, recuperação, transmissão de metalinguagens e também os de ensino/aprendizagem de tais universos conceptuais e terminológicos. O vocabulário técnico-científico é instrumento imprescindível, para o recorte dos ‘fatos’ científicos, a armazenagem e recuperação desses dados, a comunicação mais intensa e eficiente entre especialistas, intra e entre áreas científicas, importante instrumento de pesquisa e de sustentação do arcabouço teórico da ciência ou tecnologia.

Aprender uma língua é aprender um modo de “pensar o mundo". O mesmo acontece com as metalinguagens técnico-científicas, seus recortes, seus sistemas de valores e designações que lhes correspondem. Assim, a metalinguagem técnico-científica de qualquer área do saber e/ou de suas aplicações constrói a sua ‘visão do mundo' específica, de tal forma que só é possível aprender uma ciência, quando se adquire a competência semiótico-lingüística do seu universo de discurso (Barbosa e Pais, 2004).

Tem-se aí o problema seríssimo do sujeito falante-ouvinte não iniciado, que deseja aprender uma nova ciência ou tecnologia. Por vezes, essa tarefa se mostra mais difícil que o aprendizado de outra língua natural. Ao assimilar uma metalinguagem técnico-científica, o pesquisador iniciante estará construindo o saber e o saber-fazer específicos daquela ciência e/ou tecnologia, que lhes possibilitam entender, rediscursar e realimentar não só os modelos científicos ou tecnológicos, como também a sua própria 'visão do mundo' anterior, num processo de amadurecimento intelectual e pessoal.

Quanto às implicações didático-pedagógicas, ressalte-se que o desenvolvimento da competência lexical do sujeito falante-ouvinte requer, dentre outros aspectos, que o mesmo adquira um número razoável de variantes diafásicas: parassinônimos pertencentes a universos de discurso diferentes. Daí decorrem: aumento do número de unidades memorizadas e disponíveis para atualização; maior rigor nas oposições semêmicas e maior precisão do enfoque semântico; maior habilidade na seleção das unidades léxicas, face à situação de enunciação e de discurso; maior habilidade na manipulação das relações de significação; maior habilidade na transposição de sentidos e no trânsito entre universos de discurso (metalinguagem e transcodificação).

O desenvolvimento de mecanismos que permitam estabelecer relações entre vocábulos da linguagem banalizada e termos técnico-científicos revela-se muito eficaz para a comunicação entre o leigo e o especialista e como instrumento, para o aluno, ou iniciante, de acesso a um novo universo de discurso, sem que este lhe pareça uma linguagem artificial e completamente desvinculada de seu saber anterior; além disso, mostra-se valioso instrumento de ampliação de seu vocabulário.

Outro aspecto importante do processo é o desenvolvimento de mecanismos de passagem de unidades do vocabulário passivo para o ativo, indicadora do grau de sua automatização, pelo aluno/iniciante, que não mais se restringe à enunciação de decodificação mas alcança, também, a de codificação. É um momento revelador do acesso a um saber técnico-científico e seu crescimento: o sujeito-falante já consegue discursar ou rediscursar a investigação e os modelos técnico-científicos.

Os processos de banalização, vulgarização, popularização revelam-se instrumentos eficazes da difusão e circulação do conhecimento e, por conseguinte, tem alto interesse para a Terminologia Aplicada.

2. Texto científico e não-científico: relações intertextuais

Dentre os mecanismos de transmissão, desenvolvimento e ampliação do inventário lexical, salientamos o que permite estabelecer relações entre os termos técnico-científicos e possíveis equivalentes seus no universo de discurso banal. Nesse contexto, o processo interdiscursivo de transcodificação refere-se à explicação de uma linguagem primeira - a técnico-científica/especializada - por uma linguagem segunda - a banalizada -, um texto ponte entre a metalinguagem especializada e a linguagem coloquial. A expressão linguagem banalizada pressupõe sempre um texto de partida, viabilizando a intercomunicação entre universo de discurso técnico-científico/especializado e a língua comum, seja do ponto de vista da enunciação de codificação, seja do da enunciação de decodificação.

Assim, a banalização é um processo de transcodificação que, a partir da linguagem técnico-científica, procura tornar compreensíveis aos não especialistas de uma área mas por ela interessados os significados e os valores específicos do universo de discurso em causa. Trata-se de uma metalinguagem mais acessível, que ainda remete para o universo de experiência técnico-científico. Já a vulgarização é o processo de passagem de um termo técnico-científico para a língua comum, com a perda de sua especificidade e desvinculação ao universo de discurso de origem. Por exemplo, o termo feedback foi introduzido pela biologia, referindo-se aos mecanismos de retroalimentação de uma célula, como resposta desta a um estímulo químico; banalizou-se, passando a ser utilizado em outras áreas, como as ciências humanas, com o significado de retroalimentação, em qualquer processo; enfim, vulgarizou-se, na língua comum, para expressar algo como a captação do efeito produzido, como o caso do ator que diz precisar sentir o feedback do público.

As metalinguagens técnico-científicas muitas vezes são construídas a partir da língua comum. Logo, para ensinar a um sujeito falante-ouvinte uma 'língua de especialidade', é necessário começar da língua comum e passar paulatinamente para a linguagem especializada; nesse processo, a linguagem banalizada funciona como instrumento eficaz de intermediação. Ao fazer essa intermediação, ela estabelece uma função - relação de dependência - entre os elementos do discurso transcodificador e os do transcodificado. O importante, pois, é o estabelecimento de uma relação de dependência entre o vocábulo e o termo e, o enriquecimento do vocabulário do sujeito falante-ouvinte e o ganho de precisão nos mecanismos de substituição automática dos vocábulos, na passagem de um universo de discurso a outro.

Esses reflexões, que foram feitas em trabalhos anteriores da Autora (Barbosa, 2004), serviram de base para amplicação do modelo aqui apresentado, no sentido de mostrar que não apenas o processo de banalização, mas a transcodificação do texto científico, para qualquer outro tipo de texto, de diferentes universos de discurso, aumenta as possibilidades de reinterpretação por parte do sujeito de decodificação.

Ressalte-se, aqui, a importância do conhecimento do maior número de formas equivalentes, no nível de unidades lexicais (micro-texto) e no nível de textos (macro-textos); em ambos os casos, essas formas equivalentes permitiriam ao sujeito do discurso uma maior adequação do texto aos contextos discursivos e uma melhor decodificação de conceitos na forma equivalente conhecida daquele sujeito.

3. Considerações finais

A complexa e multifacetada problemática do ensino do léxico se tem configurado como forte preocupação dos pesquisadores, no quadro das variadas e urgentes tarefas que se impõem à Lexicologia, à Lexicografia e à Terminologia. No mundo contemporâneo, o exame das práticas sêmio-lingüísticas dos enunciadores e dos enunciatários do discurso pedagógico permitem observar claramente que a questão do ensino do léxico não é considerada importante, é, até mesmo, freqüentemente esquecida ou desconhecida, no tocante aos modelos e aplicações, de que resulta, qualitativa e quantitativamente, um baixo rendimento, não só na matéria específica da língua materna, como também em todas as demais, eis que todas se realizam em linguagem.

Assim, desenvolveram-se pesquisas que permitissem a elaboração de modelo semiótico-lingüístico que contemplasse processos de aquisição e desenvolvimento da competência/desempenho lexicais, na comunicação utilitária e nos universos de discurso altamente específicos das sociedades heterogêneas, industriais e pós-industriais.

Esses aspectos, mostram a importância das metalinguagens terminológicas na sociedade atual, para a ampliação do saber e do saber-fazer do indivíduo, não só sobre determinada ciência ou tecnologia, como também o seu saber sobre o mundo. Daí decorre a importância dos modelos epistemológicos e metodológicos de tratamento, compilação, recuperação e transmissão de metalinguagens.

Nessas condições, o vocabulário técnico-científico é, ao lado de outras obras lexicográficas, um dos instrumentos imprescindíveis para o recorte dos ‘fatos’ científicos, para a armazenagem e recuperação desses dados, para a comunicação mais intensa e eficiente entre especialistas, no interior de uma área científica, e entre áreas científicas. Enfatize-se, aqui, o papel fundamental da Terminologia aplicada.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Maria Aparecida. A terminologia e o ensino da metalinguagem técnico-científica. In: Izquerdo, A.N. e Krieger, M. G. As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Vol. II. Campo Grande: Ed. UFMS, 2004, p. 311-325.
BARBOSA, Maria Aparecida e PAIS, Cidmar Teodoro. Terminologia aplicada: trajetórias transdisciplinares. Horizontes de lingüística aplicada. Brasília, UnB, vol. 3, n.º 1, p. 37-62, 2004.

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006