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TRÊS GRAMÁTICAS, TRÊS ÉPOCAS E A CONSTRUÇÃO DE UM SABER SOBRE A LÍNGUA
Glaucia Muniz Proença Lara
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)
 

Examinados do ponto de vista sócio-histórico, os livros didáticos convertem-se em fonte privilegiada para uma história do ensino e das disciplinas escolares, permitindo identificar ou recuperar saberes e competências considerados formadores, em determinado momento, das novas gerações; tendências metodológicas que regulam o ensino e a aprendizagem desses saberes em cada momento; enfim, a política cultural e social que impõe, numa dada época, uma certa escolarização do conhecimento, da ciência, das práticas culturais.

Colocando-se, pois, ao lado dos documentos oficiais de ação escolar (decretos, leis, programas etc), que marcam posições e direções decisivas quanto ao papel da escola na sociedade e, sobretudo, quanto ao estatuto da língua que se há de levar à escola – língua, tomada, via de regra, como um “objeto” uno, como uma norma “ideal” (padrão) em contraposição à norma “real” (corrente) –, os livros didáticos de português oferecem-se como objeto de investigação não apenas porque refletem as diretrizes em vigor numa dada sociedade, de uma dada época, mas também – e principalmente – porque, acompanhando a trajetória do ensino da língua materna na escola, permitem avaliar a constituição de uma memória que se tece ao longo do tempo, com o armazenamento de lembranças que vão ocupando lugares no traçado da história e que vão, assim, compondo a identidade do indivíduo, do grupo, da nação.

No presente trabalho, a expressão “livro didático” (ou “manual escolar”) designa aquele livro ou impresso empregado pela escola para o desenvolvimento de um processo de ensino ou de formação. Nessa definição, cabem, portanto, as gramáticas voltadas para o ensino da língua materna (as chamadas “gramáticas escolares” ou pedagógicas). Originalmente concebidas e empregadas como manuais didáticos (associadas, em geral, a uma antologia, davam suporte ao ensino de língua no cotidiano da escola), essas gramáticas tornaram-se, com o advento dos livros de ensino de língua materna modernos (décadas de 1960-1970), obras de referência, utilizadas como complemento para o ensino e para o aprendizado.

Com base nessas constatações, analisamos três livros didáticos, isto é, três gramáticas escolares de português, que foram publicadas ao longo de um século, a fim de apreender os saberes sobre a língua que cada uma delas constrói. Para a constituição do corpus, consideramos três marcos temporais: a) início do século XX até a década de 1930; b) meados do século XX (décadas de 1940-1960); c) final do século XX (décadas de 1970-1990). As gramáticas selecionadas para esses períodos foram, respectivamente: a) Grammatica expositiva – curso superior, de Eduardo Carlos Pereira (edição de 1926); b) Português prático, de José Marques da Cruz (edição de 1945); 3) Gramática: teoria e exercícios, de Maria Aparecida Paschoalin e Neuza Terezinha Spadotto (edição de 1996).

Tais gramáticas, tomadas como discurso, foram examinadas a partir de duas categorias tomadas de empréstimo à semiótica greimasiana: as modalidades e os valores, que participam dos contratos estabelecidos entre enunciador e enunciatário. Para a teoria semiótica, as relações contratuais entre enunciador e enunciatário são relações de comunicação e manipulação. Assim, o enunciador propõe, com base num fazer persuasivo, um contrato, um acordo ao enunciatário e este, através de um fazer interpretativo, aceita ou rejeita o contrato proposto.

Cabe, portanto, ao analista apreender os diferentes procedimentos persuasivos que levam o enunciatário a acreditar na verdade do discurso e dos valores em jogo, observando se eles são da ordem do inteligível (valores éticos), do sensível e/ou do sensorial (valores estéticos) e, ao mesmo tempo, examinando as relações afetivas e passionais (valores afetivos) que se estabelecem entre os participantes do contrato enunciativo.

Além dos valores, há que se considerar dois tipos de modalização: a modalização pelo ser (ou modalização de existência do objeto) e as modalizações pelo dever, querer, poder e saber ser ou fazer, que atribuem competência e existência ao sujeito. Assim, ao lado da modalização pelo fazer, que incide sobre a competência modal do sujeito de fazer, qualificando-o para a ação, encontra-se a modalização pelo ser, que dá existência modal ao sujeito de estado, modificando o estatuto dos objetos que estão em conjunção com ele e definindo estados passionais.

Os resultados obtidos em nossa análise mostraram que há, nas três obras, para além das diferenças (relacionadas sobretudo ao lapso temporal que as separa), uma mistura de normas, com predominância do discurso da boa e da má norma, de caráter prescritivo, que constrói uma imagem de língua heterogênea, mas com usos hierarquizados (uns são melhores – mais bonitos, corretos e elegantes – do que outros), o que pode ser explicado pela função principal (pedagógica) que essas gramáticas assumem. No entanto, ocorre, com certa freqüência, o deslizamento do discurso da boa (e da má) norma para o discurso da norma única (= norma culta, identificada à própria língua), construindo-se, então, uma imagem homogênea desse “objeto”. Em outras palavras: passa-se do “normativo” ao “normal”, ao “natural”.

Há, em suma, um saber mais ou menos estável sobre a língua, construído a partir de imagens e discursos que se imbricam, que se interpenetram, e que, evidentemente, interferem (negativamente) no ensino da língua na/pela escola.

Palavras-chave: gramática; livro didático; língua portuguesa.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006