IMPRIMIR VOLTAR
O Papel da Lingüística na Educação Indígena
Luciana Storto
Universidade de São Paulo (USP)
 

Departamento de Lingüística, Universidade de São Paulo

As iniciativas tomadas nas últimas décadas por órgãos governamentais e não-governamentais na área de educação indígena criaram uma demanda por projetos pedagógicos para escolas bilingües. A educação indígena específica e diferenciada, que na área de línguas certamente pressupõe a valorização da língua indígena ao lado do português, tem sido debatida exaustivamente pelas partes envolvidas em cursos de formação de professores e em projetos de elaboração de material didático na língua materna. Pretendo fornecer subsídios para este debate apontando para questões que frequentemente são deixadas de lado, talvez por serem técnicas demais. Trata-se de explicitar o papel importante que a disciplina da lingüística pode vir a ter nestes projetos pedagógicos, auxiliando os agentes da educação indígena na comparação entre o português e a sua língua nativa.

O contexto lingüístico mais comum das escolas indígenas brasilieras é o bilingüismo língua indígena-português (ou o multilingüismo português-várias línguas indígenas), sendo que a língua indígena costuma ser a primeira à que a criança tem acesso (ou seja, a sua língua materna), utilizada em casa e nas aldeias para a comunicação com a comunidade. O português aparece como a língua majoritária da sociedade envolvente, que a criança indígena aprende cada vez mais cedo nestes tempos de contato intensificado, utilizada para a comunicação com funcionários governamentais que prestam serviços às comunidades indígenas (FUNAI, FUNASA, SEDUC, SEMED, etc), com pesquisadores e funcionários de ONGs, universidades, museus, e outras instituições que têm projetos em andamento junto a estas comunidades, bem como com comerciantes, vizinhos, etc. O português aprendido e utilizado nestes contatos é necessariamente coloquial e informal, bastante diferente da norma culta adotada na escrita. Assim, há uma insatisfação por parte das comunidades indígenas, ou por parte daqueles que pensam estas questões em cada comunidade, em relação ao nível do conhecimento que se tem do português.

Em todas as discussões que eu tive com os acadêmicos do Terceiro Grau Indígena na UNEMAT, onde fui consultora, coordenadora e professora da área de Línguas, Artes e Literatura, ficou claro que quando o tema língua está em pauta, o desejo dos professores indígenas é que os projetos político pedagógicos das escolas desenvolvam a proficiência no português padrão. O entendimento dos agentes da educação indígena é o de que os membros destas comunidades têm uma necessecidade cada vez maior de comunicar-se bem no português oral e escrito padrão, para que possam atuar de maneira mais eficaz nas negociaçães políticas, nos projetos, e nos negócios. Para que esta vontade seja colocada em prática, é preciso levar em conta dois fatores fundamentais: (1) o de que português falado coloquialmente e informalmente é diferente do português padrão, não só para as comunidades indígenas, mas para qualquer falante de português brasileiro; (2) o de que os falantes de português nas comunidades indígenas são frequentemente falantes de uma língua indígena, língua esta que é adquirida por eles antes do português, como língua nativa. Frente a este quadro, cabe pensar o planejamento do ensino do português padrão nestas comunidades sempre em conjunção com a existência da língua indígena como primeira língua, já que os problemas de aprendizado do português padrão que surgirão no processo escolar necessariamente refletirão interferências da língua indígena.

A educação indígena no Brasil, por um lado, enfrenta um problema semelhante ao da educação pública em geral no país, que é ensinar na escola uma versão do português diferente daquela que se usa coloquialmente. Por outro lado, ela enfrenta um problema adicional, decorrente do fato de que trata-se do aprendizado de uma segunda língua. Ou seja, qualquer pessoa que tenha uma língua materna diferente daquele em que está se instruindo vai sofrer interferências da sua língua mãe no processo de aprendizagem da segunda língua. O lingüista que estuda a língua indígena em questão tem um papel importante a cumprir na educação escolar da comunidade com a qual trabalha porque ele pode auxiliar a comunidade a entender os problemas que surgem quando há interferência da língua nativa no aprendizado do português.

Apresento relatos da experiência de vários lingüistas de qualidade que vêm trabalhando em projetos de sucesso, a fim de exemplificar maneiras concretas em que a lingüística pode desempenhar um papel fundamental na educação indígena (Franchetto, B. et al 2002, Franchetto 2002, Meira (manuscrito), Moore & Gabas Jr. (no prelo)), e uma crítica ao papel que alguns lingüistas vêm desempenhando (Müller de Oliveira 2000).

Cito, neste resumo, apenas dois exemplos tirados da minha experiência de trabalho como lingüista e coordenadora de um projeto de educação entre os Karitiana, povo Tupi-Arikém de Rondônia. Trabalho com a língua Karitiana desde 1992, e desenvolvi de 2003 a 2007 um projeto de alfabetização na língua indígena financiado pela Norwegian Rainforest Foundation que alfabetizou, em quatro anos, dois terços dos falantes acima de 10 anos de idade na língua materna. Os próprios falantes foram agentes no projeto.

Um primeiro exemplo envolve a questão da representação ortográfica das vogais na língua indígena. Para que uma ortografia seja útil para os seus falantes, idealmente ela deve representar todas as oposições fonêmicas existentes na língua. Por exemplo, a língua Karitiana tem vinte vogais, que são variantes nasais e orais, curtas e longas de cinco qualidades vocálicas: a, e, i, o, y (a última é uma vogal central alta). Ao propor uma ortografia para a língua, foi necessário representar, ortograficamente, estas oposições fonêmicas encontradas no sistema vocálico para que as palavras em que elas operam (os pares mínimos) pudessem ser registradas como diferentes. Uma solução possível, adotada por nós, foi utilizar duas vogais idênticas para representar vogais longas e o til para representar vogais nasais: keerep ‘antigamente’, kerep ‘crescer’, opi ‘brinco’ e opi ‘cortar’. Em ambientes adjacentes às consoantes nasais, escolheu-se não representar o til na vogal, já que a qualidade nasal da vogal nestes casos é previsível.

Um segundo exemplo envolve a representação ortográfica das consoantes nasais no Karitiana. Ele ilustra o fato de que os falantes podem escolher representar ortograficamente não apenas os fonemas da língua, mas algumas das variações “intrafonêmicas” (alofônicas). Os Karitiana adotaram quatro dos sete alofones das consoantes nasais na sua ortografia. O fonema /m/, por exemplo, é pronunciado na língua de 7 maneiras diferentes (alofones), de acordo com o ambiente em que ocorre:

1. [bmb] no ambiente v__v (entre duas voais orais)
2. [bm] não explodido no ambiente v__# (entre uma vogal oral e o fim da palavra)
3. [mb] no ambiente v __v (entre uma vogal nasal e uma oral)
4. [m] não explodido no ambiente v__#
5. [bm] no ambiente v__ v
6. [m] nos ambientes #__ v e v__v
7. [b] no ambiente #__ v

A comunidade Karitiana, reunida comigo, e consciente da variação acima descrita, escolheu quatro maneiras diferentes de representar os alofones: m nos ambientes 4 e 6 (ignorando, assim, a diferença entre o alofone explodido e não explodido), bm nos ambientes 2 e 5 (ignorando a mesma diferença descrita para os pares 4 e 6), mb nos ambientes 1 e 3 (neutralizando os dois alofones, o que ocorre em alguns dialetos do Karitiana, onde vbmbv  vmbv), e b no ambiente

7. O objetivo da comunidade com isso era que um falante de português pudesse reproduzir oralmente as palavras escritas em Karitiana. Neste caso, a representação fonêmica não pareceu adequada aos Karitiana já que, vivendo em um ambiente bilingüe, eles tinham como preocupação não apenas representar ortograficamente as oposições que a língua apresenta, mas adequar sua representação à fonologia da língua majoritária envolvente, onde /b/ e /m/ são fonemas distintos.

Estes exemplos são importantes pois ilustram o fato que, em um projeto de educacão bilingüe para a escola Karitiana, seria importante saber que as crianças não têm a distinção /b/ vs. /m/ e /d/ vs. /n/ em sua língua materna na hora de programar o ensino do português. Só desta maneira poderiam ser entendidos erros na escrita e pronúncia do português que estas crianças certamente farão ao aprender a segunda língua. Palavras como milhão aparecerão frequentemente como bilhão, inimigo como idnimigo, etc. A presença de um lingüista neste processo é fundamental.

FRANCHETTO B., MAIA Marcus, SANDALO Filomena & STORTO Luciana. 2002. A construção do conhecimento lingüístico: do saber do falante à pesquisa. Cadernos de Educação Escolar Indígena. No 01, V. 01 (47-78). Barra do Bugres: UNEMAT.
FRANCHETTO, Bruna. 2002. Assessor, pesquisador: reflexões em torno de uma experiência em ‘educação indígena’. Aracy Lopes da Silva e Mariana Kawall Leal Ferreira (orgs), Práticas Pedagógicas na Escola Indígena. São Paulo: Global (87-106).
MEIRA, Sérgio. O Lingüista e a Ortografia Indígena: O Caso da Língua Bakairi. Manuscrito. MOORE, Denny, e Nilson Gabas Júnior. (no prelo) O futuro das línguas indígenas brasileiras. In Amazônia 500. Belém: Museu Paraense Emílio Goeldi.
MÜLLER DE OLIVEIRA, Gilvan. 2000. O que quer a lingüística e o que se quer da lingüística – a delicada questão da assessoria lingüística no movimento indígena. Cadernos CEDES 49, volume temático sobre educação indígena e interculturalidade. Campinas: Unicamp.

Palavras-chave: educação indígena; lingüística; interdisciplinariedade.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006