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O Português no Brasil: uma cisão lingüística em gênero e classe etária
Yonne F. Leite
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
 

Diferenças entre dialetos regionais são facilmente perceptíveis: as vogais pretônicas abertas da região norte em oposição às fechadas da região sul, s sibilado do sulista versus o chiante do carioca, o r rolado do gaúcho são emblemáticos da origem do falante. Essas características tão marcantes são imitadas de forma caricatural em novelas e em programas humorísticos.

Quando se trata de gênero, porém, é mais difícil especificar -- exceto a tessitura -- em que consiste a distinção entre a fala de homens e mulheres. Na verdade, não há, entre nós, uma fala feminina e uma masculina com distinções fonéticas, morfológicas e sintáticas sistemáticas, facilmente identificáveis, mas apenas uma preferência por certos usos lingüísticos, usos esses que também existem na fala masculina. Já em outras línguas, limitando-nos às línguas indígenas brasileiras, como o Aweti (Drude, s.d.) e o Karajá (Ribeiro, s.d.), os processos marcadores da fala feminina e da masculina são sistemáticos e facilmente identificáveis.

A língua Aweti (TroncoTupi) apresenta diferenças de formas condicionadas ao gênero do falante no paradigma dos pronomes, dos prefixos, dos dêiticos e no léxico. Na fala feminina, o pronome de primeira pessoa do singular é ito e, na fala masculina, é aSit, a terceira singular, na fala feminina, é ta?i e, na masculina, tsã. Nos dêiticos, uma frase traduzível como “Este é o nosso costume” é, na fala masculina, jatã tsu jatã azoporywyt, e, na feminina, uja tsu uja ozoporywyt.

Em Karajá (Macro Jê), as diferenças da fala dos homens e a das mulheres consistem basicamente na presença de um k em algumas palavras, na fala das mulheres, que não ocorre na fala masculina, e em processos de modificações, na fala dos homens, das duas vogais que são adjacentes devido à ausência do k. Essas diferenças são perceptíveis e reconhecidas pelos falantes como marcadores de gênero, sendo imitadas tanto pelos homens, quanto pelas mulheres, quando personificam uma personagem do sexo oposto, ao narrar uma história, ou ao exercerem uma função basicamente do outro sexo, como tomar conta de uma criança.(Ribeiro, s.d.).

Essas diferenças não constituem línguas ou dialetos que são indicadores da origem, e não do gênero, do falante. O termo cunhado para o conjunto de formas e processos que diferenciam a fala masculina e a feminina é generoletos (do inglês genderlects).

A observação das diferenças entre a fala feminina e a masculina só passou, no Brasil, a ser objeto de estudo sistemático com o advento da sociolingüística quantitativa laboviana (Labov, 1972), a qual postula que a variação entre formas intercambiáveis não é nem aleatória, nem livre, e, sim, governada por fatores lingüísticos (tipo de sílaba, posição na sílaba ou palavra, tipo de acentuação, classe morfológica da palavra, entre outros) e fatores sociais (faixa etária, gênero, origem, grau de escolaridade, projeto de vida, entre outros). Gênero e faixa etária têm sido freqüentemente selecionados como fatores atuantes em vários processos estudados no português do Brasil. A proposta de Labov parte também do pressuposto de que é possível captar, em tempo aparente, mudanças em progresso através da análise quantitativa de variantes distribuídas por faixas etárias. As formas das curvas de distribuição indicam se é um caso de implementação (gráfico retilíneo ascendente em direção à faixa etária mais jovem), de perda (gráfico retilíneo com menor percentual de uso da faixa etária mais jovem) ou de estabilidade (gráfico em forma de triângulo com ápice mais alto, indicando maior percentual de uso na faixa etária intermediária ou com ápice invertido, indicando menor percentual de uso na classe etária intermediária). Nas mudanças em progresso ou no padrão de estabilidade, homens e mulheres podem seguir rumos distintos.

A metodologia usada consiste em mensurar as formas variáveis, através do programa matemático computacional (VARBRUL), desenvolvido por David Sankoff, que atribui percentuais e pesos relativos às variáveis, o que permite identificar os fatores que favorecem e os que desfavorecem uma determinada variante ou processo. Serão examinados, segundo a metodologia e interpretações da sociolingüística quantitativa laboviana, um processo fonológico, o apagamento do R em final de palavra, e outro, morfossintático, a substituição de nós por a gente (Lopes, 1993), que exemplificam diferenças quantitativas entre a fala de homens e mulheres e as direções da mudança em tempo aparente.

Os dados utilizados são provenientes do Projeto Norma Urbana Culta, e foram gravados com falantes com curso universitário completo de cinco capitais (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife) distribuídos em três faixas etárias: 25-35 anos; 26-55 anos; 56 anos em diante.

Esses estudos também demonstram a dificuldade em generalizar e sistematizar as diferenças, já que, por vezes, os caminhos não são os mesmos com referência a todos os fenômenos. Isso porque a fala não se limita a regras fonéticas, morfológicas e sintáticas. Há nela envolvido um comportamento verbal socialmente construído que distingue homens e mulheres, sendo impossível dissociar o gênero e faixa etária de outras identidades socioculturais. Palavras-chave: fala masculina, fala feminina, sociolingüística quantitativa laboviana, mudança lingüística

Referências bibliográficas

CALLOU, D., LEITE, Y., MORAES, J.A. 2002. Processos de enfraquecimento consonantal no português do Brasil. In Gramática do Português Falado vol. VIII: novos estudos descritivos.
ABAURRE, M.B. M., RODRIGUES C. S. (orgs.), São Paulo Fapesp/ Editora da Unicamp. P. 537-555
DRUDE, S. (s.d.) Fala masculina e feminina em Aweti, poliocopiado.
LABOV, W. 1972. Sociolinguistic Patterns. Pennsylvania: University of Pennsylvania Press. ----------. 1994. Principles of linguistic change. Oxford/Cambridge, Blackwell
LOPES, C. R. Nós e a gente no português falado culto do Brasil. Dissertação de Mestrado. Faculdade de Letras da UFRJ.
RIBEIRO, E. R. (s.d.) Female and Male speech in Karajá .(poliocopiado.

Palavras-chave: Transversalidades; gênero; lingüística.
Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006