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Gênero nas intersecções entre Antropologia, Psicanálise, Psicologia
Mara Coelho de Souza Lago
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
 

Costumamos ressaltar que a psicologia, apesar de seu foco sobre os indivíduos e de ter se ocupado tradicionalmente com as questões das diferenças individuais, tendo inclusive constituído uma subárea de psicologia diferencial para a qual as diferenças de sexo (como sempre foram tratadas) são fundamentais, não esteve nas linhas de frente no movimento de construção do campo de estudos feministas e dos estudos de gênero.

Pelo contrário, chega ao campo, fundamentalmente interdisciplinar, quando ele já se consolidava em outras áreas das ciências humanas sociais.

Se a comunicação com a psicologia não se faz tão efetiva nos momentos mais iniciais dos estudos feministas e de gênero, estes são fortemente marcados pelo diálogo, muitas vezes carregados de tensões, com a psicanálise.

Este diálogo dos estudos feministas com a psicanálise é uma questão de interesse nas pesquisas, fundadas que são em nossas concepções de constituição de sujeito – sujeitos de gênero, geração, classe, etnia.

A tradução dos escritos de feministas e estudiosas de gênero, a par das questões decorrentes das viagens das teorias analisadas por Claudia Lima Costa (2000) entre outras/os, tem considerável importância na difusão e no diálogo teórico intra e interdisciplinas.

Um texto fundamental para os estudos de gênero no Brasil foi o da historiadora Joan Scott, publicado na Revista Educação e Sociedade em 1990, traduzido por Guacira Louro.

Neste texto, fazendo um balanço dos estudos feministas até então, para defender a utilidade da categoria gênero para as análises históricas, a autora percorre as três vias em que eram produzidos: as teorias do patriarcado, focadas nas questões da subordinação feminina; os estudos das teóricas marxistas, centrados nas relações de produção/reprodução e nas análises das divisões sexuadas do trabalho; as teorias psicanalíticas, voltadas para as questões da subjetividade. Quando se detém sobre essa terceira via de estudos, Scott faz uma síntese didática diferenciando psicanálise das relações objetais, de inspiração em Melanie Klein, de psicanálise semiótica, inspirada na releitura lacaniana dos escritos de Freud. Considero a leitura deste texto importante em relação a uma primeira aproximação da psicanálise nos estudos de gênero. Isto porque a autora faz uma exposição (e uma crítica) bastante lúcida da psicanálise.

Algumas psicanalistas feministas conseguiram ser bem mais simplistas e lineares em suas críticas a Freud (e Lacan).

Um texto que teve bastante divulgação no Brasil, publicado numa primeira coletânea traduzida para o português em 1979, A mulher, a cultura e a sociedade, foi o da psicanalista americana Nancy Chodorow “Estrutura Familiar e Personalidade Feminina”. Este artigo e a obra da autora, analisada por Scott como exemplo das teorias de relações de objeto, junto ao livro de Carol Gilligam “Uma Voz Diferente” , marcou a contribuição do campo psi para os estudos feministas e de gênero (não só entre as teóricas brasileiras), além de colocar a psicologia (e a psicanálise) no campo dos chamados feminismos da diferença.

Outro texto clássico dos estudos de gênero entre nós e que circula até hoje em tradução não editada, aquele em que Gayle Rubin propõe sua concepção de sistema sexo-gênero, também adentra no terreno da psicanálise. Embora a complexifique mais, sua análise da distinção entre as duas leituras da psicanálise acaba por indiferenciá-las, não alcançando o aprofundamento que obtém quando reflete sobre a teoria de Lévi-Strauss, na crítica que lhe dirige sobre a questão da troca de mulheres entre os homens, na instituição das regras de parentesco como fundantes das estruturas sociais.

A tradução dos escritos de Juliet Mitchell (1979-1988) veio contrapor uma outra voz, de dentro da psicanálise, às psicanalistas que criticavam o monismo sexual fálico de Freud e a concepção lacaniana do falo como significante masculino diferenciador de feminilidades e masculinidades, no processo de sexuação deflagrado pelo complexo de castração.

Nessa altura podemos lamentar a falta de tradução das obras das feministas psicanalistas francesas, em suas críticas e polêmicas com Lacan e os lacanianos, desde perspectivas feministas, e no interior da psicanálise francesa.

Uma autora com artigo publicado em coletânea brasileira(1992) e que esteve no Brasil dialogando com as feministas, foi Jane Flax (com livro traduzido para o espanhol). Flax colocou a psicanálise, ao lado do feminismo e das teorias pós-modernas, como um pensamento de transição, os pensamentos fragmentários que desconstroem a unidade e universalidade do sujeito moderno, gestado no século das luzes.

A tradução, em 1997, da coletânea organizada por Teresa Brennan (Between Feminism & Psychoanaysis, 1989) faz uma clara demonstração da importância do papel da crítica literária feminista na produção do diálogo entre teorias feministas, estudos de gênero e psicanálise. Resgata também a relevância de psicanalistas feministas francesas (Irigaray, Cisoux, Kristeva) para este debate.

A autora Judith Butler, com artigo publicado em coletânea traduzida e editada pela Rosa dos Tempos (Benhabib e Cornell, 1987), também publicada pela Pagu, na REF e com livro traduzido pela Civilização Brasileira em 2003, tem trazido novo fôlego para este diálogo, crítico e profícuo entre teorias feministas, de gênero e psicanálise.

Os estudos de gênero, ao tratarem dos temas de constituição do sujeito, subjetividade, sexualidade, passam necessariamente pelos discursos da psicanálise, reforçando a importância das traduções e viagens das teorias, na promoção dos diálogos trans e interdisciplinares.

Bibliografia
Benhabib, Seyla e Cornell, Drucila. (org.) Feminismo como Crítica da Modernidade. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1987.
Brennan, Teresa (org.). Para além do Falo: uma crítica a Lacan do ponto de vista da Mulher. Rio de Janeiro: Record/Rosa dos Tempos, 1997.
Butler, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Chodorow, Nancy. Estrutura familiar e personalidade feminina. In: Rosaldo, Michelle e Lamphere, Louise. A mulher, a cultura e a sociedade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
Psicanálise da Maternidade: uma crítica a Freud a partir da mulher. Rio de Janeiro, Rosa dos Tempos, 1990.
Costa, Claudia de Lima. As teorias feministas nas Américas e a política transnacional da tradução. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 2, p. 43-49, 2000.
Flax, Jane. Pós-Modernismo e Relações de Gênero na Teoria Feminista. In: Buarque de Hollanda, Heloisa (org.) Pós-Modernismo e Política. Rio de Janeiro, Rocco, 1992.
Psicoanálisis y Feminismo. Pensamientos Fragmentários. Valéncia, España: Ediciones Cátedra; Universitat de Valéncia, Instituto de la Mujer, 1995.
Gilligan, Carol. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1982.
Lago, Mara Coelho de Souza. Identidade, a fragmentação do conceito. In: Leite, Alcione:Lago,
Mara; Ramo, Tânia. Falas de Gênero. Florianópolis, Mulheres, 1999.
Mitchell, Juliet. Psicanálise e Feminismo. Freud, Reich, Laing e mulheres. Belo Horizonte,Interlivros,1979.
Psicanálise da Sexualidade Feminina. Rio de Janeiro, Campus,1988.
Rubin, Gayle. The traffic in women: notes on “The Political Economy” of Sex. In: Reiter, R.(ed.) Toward an anthropology of women. New York, Monthly Review Press, 1975, p. 157-210.

Anais da 58ª Reunião Anual da SBPC - Florianópolis, SC - Julho/2006