DESAFIOS ENFRENTADOS NA FORMAÇÃO DOCENTE DE EDUCADORES DE CRECHE

Zilma de Moraes Ramos de Oliveira

Universidade de São Paulo

 

A formação docente constitui um processo complexo de apropriação de formas de sentir, pensar e agir em situações de ensino e de atribuir significados a seus componentes. Ela pode ser compreendida como uma zona de desenvolvimento proximal socialmente construída e pessoalmente reconstruída pelo professor ao longo de sua vida profissional e o orienta a tomar decisões sobre as melhores formas de mediar aprendizagens e revolucionar o desenvolvimento de seus alunos.

Diante das modificações ocorrendo na área educacional e dos problemas que têm sido apontados em relação ao trabalho docente, a análise de experiências de formação de professores é tarefa necessária para se compreender limites e possibilidades das ações formadoras. Iremos apresentar, de forma resumida, dados e considerações de uma experiência promovida pela Secretaria Municipal de Educação de São Paulo para dar formação docente em nível médio para 3600 Auxiliares de Educação Infantil (ADIs) que trabalhavam há muitos anos em suas creches diretas, denominados Centros de Educação Infantil (CEIs), sem a qualificação profissional exigida pela Lei 9394/96.

Para atender os integrantes do programa, foram organizadas duas turmas de alunos: uma reuniu 850 educadores que haviam concluído apenas o Ensino Fundamental para o desenvolvimento de uma carga horária de 2.800 horas a serem cumpridas em dois anos, sendo 800 horas destinadas a atividades práticas. Esses alunos foram distribuídos em cinco escolas-pólo, localizadas em diferentes regiões do município. A segunda turma incluiu 2750 alunos com ensino médio completo, em doze escolas-pólo localizadas em diferentes regiões de São Paulo, com carga horária de 1.600 horas a serem cumpridas em um ano, sendo 800 destinadas à Prática Educativa. As atividades didáticas das duas turmas ocorriam de segunda a sexta-feira no período noturno e aos sábados pela manhã, tendo sido organizadas 106 classes de aproximadamente 34 alunos cada uma. As aulas eram ministradas por professores da rede municipal de ensino, contando ainda com a participação de professores-especialistas nas áreas de Música, Artes Plásticas, Teatro, Dança e Literatura, que desenvolviam projetos de vivências e oficinas.

Os alunos (com idade média em torno de 40 anos e majoritariamente mulheres, com apenas sete homens no conjunto dos inscritos) eram educadores que já trabalhavam com crianças nos centros de educação infantil do município há mais de dez anos. Grande parte deles trazia uma história de problemas em sua escolarização anterior, alcançando níveis mais adiantados de escolaridade por meio de estudos supletivos que, todavia, não os ajudaram a apropriar-se dos instrumentos básicos para pensar o mundo. Traziam experiências e conhecimentos sobre como cuidar de crianças, embora muitos partissem de uma visão assistencialista de atendimento à criança pequena, que priorizava dar-lhe cuidado físico mais do que estimular globalmente seu desenvolvimento, ou tivessem uma atuação mais próxima de uma visão tradicional do que seria o processo escolar com crianças mais velhas. Faltavam-lhes novos modelos de prática pedagógica para orientar seu trabalho de mediar a construção de significações e habilidades por crianças desde o nascimento. Era preciso refletir com eles novas concepções que integram o cuidar e o educar, construir conhecimentos sobre saúde, sobre educação de bebês e outros temas.

Os consultores[1] do programa, contratados pela Fundação Vanzolini responsável pela gestão do mesmo, entenderam que era importante ajudar os alunos a repensar sua experiência escolar, trabalhar sua auto-estima como estudante, como pessoa e como profissional, e também ampliar sua consciência sobre a importância do Centro de Educação Infantil, que atende crianças filhas de famílias das camadas populares, superar a história de exclusão que tem marcado o sistema escolar brasileiro e cujas raízes já se colocam na educação infantil.

As diversas atividades organizadas – aulas coletivas, visitas, oficinas, teleconferências, atividades de prática de ensino especialmente formuladas - buscaram possibilitar aos alunos do programa mudança de concepções, atitudes, práticas junto às crianças, e apropriação de conceitos e habilidades interdisciplinares como formas elaboradas de problematizar seu próprio trabalho. Os conteúdos trabalhados a cada semestre foram organizados em torno de eixos temáticos que articularam as reflexões feitas em todas as áreas. Os desafios colocados à construção curricular promoveram a criação de formas criativas de articulação de atividades diversificadas realizadas em ambientes variados e apoiadas por instruções instigantes apresentadas em material didático especialmente elaborado.

Os consultores elaboraram em equipe o material didático, selecionaram, acompanharam e capacitaram os professores e estabeleceram uma política de supervisão pedagógica aos mesmos. Tudo isso envolveu fazer revisões constantes das propostas de ensino de modo a pensar variadas possibilidades de organização dos grupos e das atividades para melhor atender às necessidades impostas a cada momento e as exigências de aprendizagem pretendidas.

  A análise da experiência apontou modificações na rede de significações já elaboradas pelos educadores acerca de sua própria história familiar e escolar, sua inclusão no mundo do trabalho, e a concepção pedagógica e o sentido de si que cada um deles constrói ao longo de sua vida. Outra importante modificação observada em relação aos participantes foi o aprendizado que eles fizeram a partir do maior domínio da escrita. A possibilidade de produção de textos, inicialmente enfrentada com muita resistência da parte deles, concretizou-se ao longo do programa a partir das atividades realizadas pelo conjunto das áreas e por oficinas de trabalho sobre leitura e produção de textos. Tal domínio provocou importantes mudanças nas estratégias cognitivas e lingüísticas que os professores em formação usavam para conhecer, assim como em seu auto-conceito como aprendiz, e deram-lhes maiores possibilidades de mediar com mais sucesso o desenvolvimento lingüístico das crianças que ele educa. 

Também os professores responsáveis pelas aulas das áreas curriculares nas classes superaram uma série de representações sobre adultos e eventuais problemas em sua escolaridade. O trabalho de acompanhamento e supervisão docente estimulou o acolhimento das diferentes formas dos alunos responderem aos desafios apresentados nas situações de ensino, formas estas que foram sendo aprimoradas ou modificadas no trabalho realizado pelos professores em sala de aula.

Um outro ponto que gostaria de destacar diz respeito à preocupação dos consultores curriculares com o desenvolvimento por parte dos professores em formação de novas atitudes e valores em relação à criança, sua família e a educação em creche. Embora tal preocupação seja frequentemente defendida por muitos programas de formação na área, no programa analisado ela foi tomada como um eixo de transformação conceitual que envolvia o exame de argumentos à luz da escuta dos sentimentos e desejos dos educadores, tarefa para a qual os professores incumbidos da formação profissional poucas vezes são preparados em sua trajetória acadêmica.



[1] Cláudio Bazzoni, Dione Lucchesi Carvalho, Jorge Narciso, Denise Marino, Regina Scarpa, Silvana Augusto, Ana Mello, Telma Vitoria, Maria Virgínia Gastaldi, Clay Rienzo Balieiro, Heloisa Collins, Solange Gervai, Luisa Barzaghi-Ficker, Fernanda Moreno Cardoso e Zilma de Moraes Ramos de Oliveira.