NA PISADA DOS RETIRANTES, UM OUTRO SERTÃO
Sulamita
Vieira[1]
Considerando que a produção musical
se constitui numa forma especial de linguagem e, como tal, se traduz também
como expressão cultural, capaz de dizer
coisas e de fazer pensar coisas (Geertz), neste trabalho analiso um
conjunto de canções do repertório de Luiz Gonzaga, do qual vou pinçando imagens
do sertão. Para tanto, priorizo uma produção veiculada entre meados da década
de 1940 e final dos anos 50, genericamente denominada de baião, e que inclui, além do próprio gênero baião, outros ritmos
como xote, marchinha, xaxado, etc. São canções de autoria de Luiz Gonzaga,
sozinho, ou em parceria, principalmente com Humberto Teixeira (cearense) e com
Zé Dantas (pernambucano) ou, ainda, outras das quais foi o grande intérprete e
não participou da composição. Vale ressaltar que a pesquisa tem me ensinado,
também, ser impossível separarmos a construção do baião da construção da figura artística de Luiz Gonzaga.
Partindo da idéia segundo a qual a
noção de sertão é, como tantas outras, uma noção construída, que se traduz
também como interpretação, tomo a música
de Luiz Gonzaga (ou o baião) como
uma espécie de texto (Geertz) sobre o
qual me debruço em busca de prováveis particularidades no que concerne a
interpretações de sertão. Portanto, repetindo, outra vez, Geertz, apresento,
aqui, a minha “interpretação dessas interpretações”.
Nessa
perspectiva, vejo ainda o baião como
uma espécie de tecido cultural cujos fios articulam, vivamente, imagens de
diferentes experiências e tradições que, de algum modo, guardam relações com a
vida dos sertanejos. Ou seja, essa produção está muito colada em um cotidiano
da vida desses homens e mulheres do sertão. Nas palavras de Humberto Teixeira
[dentre muitas outras coisas, o baião é]: “o aboio do vaqueiro consolando a rez
magra e sedenta no seu êxodo através da terra calcinada (...). O caboclo que
emigra para fingir que vive em outras terras... (...). A primeira chuva fina e
peneirada, anunciando a fartura (...). O cheiro gostoso da terra molhada
lembrando o cheiro da cabocla do sertão (...)”. [Nirez, 1995: 6]. Ou, conforme
Luiz Gonzaga, a inspiração para essa música nascia das “lendas” que corriam
pelo sertão; de acontecimentos passados; de “histórias vividas”, enfim, a
composição podia vir também, para ele e seus parceiros, das rememorações de
infância, no sertão de Pernambuco ou do Ceará, no seu caso, ouvindo o pai,
“conhecido sanfoneiro de oito baixos e afinador de fole”, tocar e cantar
“aquelas cantigas de antigamente”; vinha de lembranças de “causos” que iam
passando de boca em boca, em diferentes circunstâncias e em tempos variados.
Desse modo, conforme posso perceber, o baião
veicula representações de um sertão que é, simultaneamente, vivido e sonhado,
reafirmado e também re-criado (e não simplesmente reproduzido), e, nesse
processo, as múltiplas formas de linguagem se constituem variáveis para as
quais minha atenção de pesquisadora está sempre voltada.
Assim,
examinando essa produção musical e a construção da própria figura artística do Rei do baião, é como se pudéssemos
visualizar, nesse tecido cultural, uma pluralidade de imagens alusivas a um
sertão. A análise de tal produção me abriu janelas através das quais consigo
compreender, com clareza, aspectos da dinâmica da cultura. Nesse sentido, a meu
ver, essa produção guarda relações de muita proximidade com os movimentos
migratórios, internos, à sociedade brasileira.
No
seu canto, Luiz Gonzaga evoca um sertão de pobreza, de seca, de abandono, e, ao
mesmo tempo, canta a fartura, misturada a uma espécie de grandeza natural;
exalta o amor, as festas, o aconchego, a valentia do “cabra macho” e o
atendimento das preces dos sertanejos por parte dos seus santos protetores.
Assim, como que acompanhando o movimento dos retirantes, no ir-e-vir destes, entre sertão-cidade-sertão, o baião termina por traduzir-se também como
um “lá-e-cá”, e, em meio a tais processos, vai incorporando outras linguagens,
introduzindo outros valores nesse sertão, afirmando as distintividades do
mesmo, enfim, vai construindo interpretações que o distanciam,
significativamente, de representações de outros sertões, encontradas, por
exemplo, nas páginas de romances regionalistas ou nas reportagens de periódicos
de circulação nacional, no mesmo período.