ensino de língua e cidadania: sobre o quê e como integrar

 

Sheila Elias de Oliveira

Universidade Estadual do Centro-Oeste do Paraná - UNICENTRO

 

Insiro-me no tema “Língua e Discurso: resistência e integração” trazendo uma questão que tem sido bastante discutida nos últimos anos - a formação do profissional licenciado em Letras. E o faço, embora muito já se tenha dito a esse respeito, do lugar de uma jovem pesquisadora que vê, nas recentes discussões acadêmicas e políticas educacionais, a recorrência de uma posição científica que prima pela segmentação e pela complementaridade dos objetos lingüísticos. Por essa via, exclui uma visão integrativa da linguagem, que tome em conta suas contradições e sua relação constitutiva com o histórico e o político e, assim, com a subjetividade.

Para defender esta posição, analiso a designação do profissional de Letras-professor de língua portuguesa em dois textos: o primeiro é a descrição do perfil e das habilidades do profissional de Letras do último número (de 2002) da Revista do Provão, publicação que constituiu um instrumento de divulgação junto às universidades do Provão, instituído no governo FHC. O segundo é um livro que tem sido referência em concursos para professor de escolas públicas: Por que (não) ensinar gramática na escola, de Sírio Possenti, de 1996.

O que argumento é que, apesar das intenções daqueles que os escreveram, estes dois textos, pelo modo como enunciam a relação entre língua e sujeito falante, não inscrevem efetivamente princípios de formação de um sujeito falante-cidadão para uma sociedade democrática. O que para mim está ligado à não integração da relação entre língua e discurso, tal como esta é concebida em uma posição materialista presente no Brasil em pelo menos duas teorias representativas: a Análise de Discurso empreendida por Eni Orlandi e a Semântica do Acontecimento de Eduardo Guimarães.

O procedimento de análise dos dois textos que compõem o corpus, inscrito na Semântica do Acontecimento, focaliza a reescritura na predicação do profissional de Letras, pela qual se constitui sua designação, compreendida como a relação lingüístico-histórica pela qual um nome identifica objetos.

Na Revista do Provão, observa-se que a filiação à Sociolingüística serve para preservar o lugar de prestígio da língua culta, e ao mesmo tempo afirmar a necessidade de (re)conhecer as “variedades lingüísticas existentes” e os “vários níveis e registros de linguagem”, que se definem em relação ao padrão. A abordagem ancorada na Sociolingüística propõe um conjunto de normas usadas em espaços/tempos diferenciados, que o falante deve respeitar como legítimas e às quais deve se adequar, utilizando o modelo certo no momento certo. O caráter social da linguagem é igualado à variação regrada em relação ao padrão e a língua é igualada à norma, ou melhor, às normas.

Como conseqüência, reforça-se o ensino gramatical, que ganha uma nova roupagem teórica. A língua é subsumida pela gramática enquanto norma, confundindo-se com esta. Nesta relação, a diferença, base da democracia, é apagada. A categorização dos falares e a minoração da relação dos falantes com a língua enquanto relação de significação neutraliza o conflito político inerente ao funcionamento da linguagem.

O que questiono aqui é se o modelo fundamentado na Sociolingüística não está servindo mais uma vez à absorção das diferenças, em vez de confrontá-las, ao reduzir a relação língua-sujeito falante a uma questão de adequação a modelos ou normas. Neste sentido, cabe nos perguntarmos se é este sujeito de língua reprodutor de modelos ou normas pré-estabelecidos que queremos formar enquanto cidadãos.

A visão segmental e complementar significa também em outros dois pontos: o primeiro é o modo de enunciar o literário, que serve de argumento para a formalização e a normativização dos estudos lingüísticos, pela contraposição entre uma visão relacional do objeto literário e uma visão segmental do objeto lingüístico. O segundo ponto é o modo de enunciar a relação professor-aluno, pelo qual não cabe ao professor, a partir da confrontação entre diferentes teorias, se posicionar, encontrar o seu caminho de interpretação dos fatos de linguagem, e abrir este espaço de discussão e posicionamento ao aluno, mas sim neutralizá-las como um apanhado de modelos complementares na “didatização” do conhecimento. Ao aluno, da mesma forma, resta agir na complementaridade de normas ou modelos lingüísticos e textuais.

            Sob a aparente neutralidade de uma enunciação que se representa como universal, a comissão do Provão diz o profissional de Letras a partir de concepções determinadas as quais, por sua vez, se põem em um modelo de análise que divide e categoriza a língua pelas suas formas. Entre a visão relacional do literário e a visão segmental do lingüístico, predomina o imaginário que percorre o ensino da língua, e não o da literatura; ou seja, o de um multiplicador-transmissor de modelos ou normas pré-estabelecidos. Desta forma, o espaço de interpretação do professor na e sobre a língua se fecha; por essa via, fecha-se também o espaço de interpretação do aluno, igualmente limitado por lugares e posições pré-estabelecidas.

            Esta mesma orientação em direção a um sujeito seguidor de normas significa no livro de Sírio Possenti, Por que (não) ensinar gramática na escola, no qual reencontramos alguns dos aspectos apontados na Revista do Provão. Este é um entre tantos textos de lingüistas nestes últimos anos que, de diferentes modos, se inscrevem no espaço de enunciação de divisão entre a Lingüística e a Gramática. O objetivo do livro é discutir a pertinência do ensino de gramática na escola. Ele tematiza, então, esta pergunta ainda recorrente em nossos cursos de Letras: diante do conflito entre o saber normativo da gramática e a defesa de um saber descritivo-explicativo da Lingüística, ensinar ou não gramática normativa, ensinar ou não a norma padrão em nossas escolas?

            Esta pergunta implica uma questão teórica: a concepção de língua e de gramática (e da relação entre elas), a partir das quais se delineia, por sua vez, a concepção de sujeito de linguagem. Para observar esses aspectos na reescritura do profissional de Letras, tomo, do livro de Possenti, a primeira parte, na qual ele apresenta dez princípios básicos “para um novo perfil do professor de português”. 

Para formular seus princípios, Possenti afirma que extraiu “das principais correntes de estudos da linguagem” enunciados resumidores e atitudes pedagógicas correspondentes. Este é o primeiro ponto em comum com a Revista do Provão: a visão de complementaridade harmônica entre as diferentes teorias lingüísticas. O segundo ponto em comum está na exposição do quarto princípio (“todos os que falam sabem falar”): a concepção fundamentada na Sociolingüística, segundo a qual fatores externos e internos à língua “condicionam a variação” e produzem “diferenças na fala das pessoas”. A diferença é novamente igualada à variação regrada. 

Um terceiro elemento de retomada da Revista do Provão está na exposição do primeiro princípio (“o papel da escola é ensinar língua padrão”): trata-se da associação entre a qualidade do leitor/escritor e a diversidade de tipos de texto que é capaz de ler/escrever. Possenti define “o domínio do português padrão” “do ponto de vista da escola” como “em especial (embora não só)” a “aquisição de um determinado domínio da escrita e da leitura”. O que o aluno deve adquirir é o domínio de diversos tipos de texto: “narrativas, textos argumentativos, textos informativos, atas, cartas de vários tipos; etc.”. O foco na quantidade, na diversidade de tipos de texto desvia o foco da qualidade, isto é, do aprimoramento da relação de interpretação do falante com o texto.

Mas é a relação entre o primeiro e o último dos princípios propostos por Possenti a mais importante para esta análise. São eles, respectivamente: “o papel da escola é ensinar língua padrão” e “ensinar língua ou ensinar gramática?”. Muito embora o autor afirme, na apresentação do último princípio - na verdade, uma questão discutida pelo autor ao longo da exposição - que “conhecer uma língua é uma coisa, conhecer sua gramática é outra”, o papel que ele atribui ao professor de português (em nome da escola), e que consiste no primeiro princípio, é ensinar língua padrão, isto é, a norma gramatical padrão.

      Repete-se, assim, a sobreposição entre língua e gramática; sob o efeito desta sobreposição, o autor chama a norma padrão de “língua padrão”. E afirma, na exposição do quarto princípio, que “saber falar significa saber uma língua. Saber uma língua significa saber uma gramática.”, o que explica mais adiante: “Pode-se dizer que saber uma gramática é saber dizer e saber entender frases.”

      Apesar desta definição explícita do saber gramatical como saber dizer e entender frases e da clara sobreposição entre língua e gramática mostrada acima, a relação entre língua e gramática no dizer de Possenti não é sem contradições; no desenvolvimento do último princípio (“ensinar língua ou ensinar gramática?”), na qual o disjuntivo implica uma diferença entre elas, a palavra gramática é reescriturada como metalinguagem gramatical. Quando assevera, portanto, que “conhecer uma língua é uma coisa, conhecer uma gramática é outra”, Possenti significa que ensinar língua padrão não é ensinar metalinguagem gramatical. É por essa via que afirma que é preciso distinguir o papel da gramática do da escola, “que é ensinar língua padrão, isto é, criar condições para o seu uso efetivo”.

      Ensinar língua padrão é, então: não ensinar metalinguagem gramatical e habilitar os alunos para o uso da língua padrão. Neste papel da escola de criar condições para o uso efetivo da norma padrão, significa a concepção de sujeito falante como usuário da língua e não como constituído pela linguagem; a língua é instrumento de que o falante se utiliza para se expressar; a relação é, assim, entre um objeto pronto (a língua) e um sujeito (o falante) que dela se serve.

      Na concepção materialista da relação entre língua e discurso, uma vez que se assume que a relação da língua com o sujeito é mutuamente constitutiva, a questão primeira é que a identidade do sujeito se constitui na sua relação com a língua, no seu colocar-se como falante de uma língua em uma sociedade. O ensino de língua, portanto, deve ser pensado a partir do princípio de que falar uma língua é estabelecer uma relação simbólica com o mundo.

            Sob essa perspectiva, não se põe em primeiro plano a relação entre língua e gramática, mas entre língua e linguagem, isto é, entre o sistema lingüístico e sua autonomia relativa quanto ao político e ao histórico que determinam as possibilidades de interpretação dos sujeitos na enunciação. O papel da escola, portanto, não é ensinar “língua padrão”, mas sim possibilitar uma relação menos ingênua (mais consciente) dos sujeitos alunos com a sua língua materna, como simbólico no qual se produzem seus principais gestos de interpretação.

      Isso implica no trabalho (mais ou menos explícito) em sala de aula: a) sobre concepções de língua e linguagem; b) sobre história das línguas e da nossa língua, não como uma história que separa interno e externo, mas como uma história que se constitui política e socialmente; c) sobre a interpretação - em atividades que compreendam fala, escrita, leitura e escuta - dos enunciados e textos que circundam o mundo desses sujeitos alunos.

      Saber uma língua, no sentido escolar, é, portanto, diferentemente do que afirma Possenti, muito mais do que saber uma gramática, muito mais do que dizer e entender frases; saber uma língua é saber mais de si mesmo, da sua comunidade de falantes, do mundo que esta língua simboliza. É saber-se sujeito enquanto falante desta língua, como simbólico constitutivamente dividido e dinâmico.