A COMUNICAÇÃO CIENTÍFICA NOS DIAS ATUAIS: IMPACTOS DE UMA
"FILOSOFIA ABERTA"[1]
Sely M. S. Costa
Universidade de Brasília
A comunicação científica constitui
um tópico muito explorado e discutido na ciência da informação ao longo das
últimas quatro décadas. Contribui, assim, de forma significativa para a
construção de conhecimento na área. Vários são os modelos teóricos, as
abordagens e os contextos encontrados na literatura para seu estudo, o que reflete
uma variedade de aspectos por meio dos quais o processo de comunicação entre
pesquisadores tem sido estudado.
A partir principalmente da década
de 90, os impactos da introdução de tecnologias da informação no ambiente
acadêmico e as mudanças provocadas na comunicação científica em função do seu
uso vêm contribuindo para o enriquecimento do debate a respeito das questões
pertinentes ao tópico. Nesse contexto, a adaptabilidade do modelo do processo
de comunicação de Garvey; Grifith (1979) para representação do processo de
comunicação científica, em relação a novos fatores que provocaram mudanças no
processo, permite seu uso como base para um grande número de outros estudos em
todo o mundo. Uma das adaptações encontradas na literatura é o modelo híbrido do
processo de comunicação proposto por Costa (1999), onde a coexistência dos
meios impresso e eletrônico é ilustrada. É possível destacar dois aspectos do
modelo híbrido que permitem que ele se mantenha apropriado para ilustrar o
processo, enquanto perdurar a coexistência dos dois meios: sua atualidade como
forma de representação do processo de comunicação científica em diferentes
períodos de tempo e a possibilidade de representar diferentemente o processo de
comunicação entre pesquisadores de diferentes divisões do conhecimento.
No que concerne às mudanças
observadas na comunicação científica, o acalorado debate que se pode acompanhar
hoje na literatura está centrado em uma questão recente provocada pelo uso de
novas tecnologias de informação em termos de formatos, padrões e protocolos de
comunicação no ambiente de pesquisa científica: o acesso aberto e seu impacto
nas universidades, nos editores comerciais e nas agências governamentais de
fomento à pesquisa científica. Brody; Harnad (2004) têm, persistentemente,
chamado atenção para o fato de que o acesso livre (open access) a
resultados de pesquisa maximiza o acesso à pesquisa propriamente dita,
acelerando e aumentando consideravelmente o impacto dessas pesquisas e,
conseqüentemente, a produtividade, o progresso e as recompensas da pesquisa.
Em linha com o que observam Brody; Harnad, Lawrence (2001)
discute resultados de uma pesquisa que mostrou um crescimento de 336%, em
média, nas citações a artigos disponíveis online, em relação a artigos
publicados offline, na mesma fonte. O autor ressalta que “para maximizar
o impacto, minimizar a redundância e acelerar o progresso científico, autores e
editores deveriam visar a tornar a pesquisa fácil de ser acessada”. O acesso
tende, então, a ser a questão crucial do progresso científico em qualquer área
do conhecimento.
Nos últimos cinco a seis anos, tem-se identificado um
movimento entre pesquisadores acadêmicos, principalmente das ciências exatas e
naturais, no sentido de que seus resultados de pesquisa estejam disponíveis o
mais amplamente possível. Comunidades científicas de disciplinas como a Física,
a Matemática, a Computação e a Biologia Quantitativa (arXiv: http: //arxiv.org),
a Economia (RePEc: http: //repec.org), as Ciências da Vida (PubMed Central:
http: //www.pubmedcentral.nih.gov), a Medicina e Biologia (PloS:
http: //www.plos.org) e as Ciências Cognitivas – psicologia, neurociência,
lingüística, filosofia, biologia, ente outras disciplinas (CogPrints:
http: //cogprints.org), por exemplo, desenvolveram soluções amplamente
conhecidas.
Tais iniciativas provocaram um amplo e acalorado debate na
literatura mundial a respeito do novo modelo de publicação, onde o “direito
livre, irrevogável, mundial e perpétuo de acesso” a trabalhos publicados, como
definido na Reunião de Bethesda de 11 de abril de 2003 é reivindicado em nível
global.
Suber (2003) chama atenção para o fato de que o sistema
atual de publicação é contrário a esse etos. De fato, como ressaltam Chan;
Costa (2005), editores comerciais têm atribuído preços excessivos e imposto
barreiras de permissão sobre publicações de pesquisas que são amplamente
financiadas com recursos públicos. No entanto, a informação científica e
técnica é, fundamentalmente, um bem público global, que deve estar livremente
disponível para o benefício de todos (ALBERTS, 2002). É compreensível,
portanto, o debate que se observa na literatura sobre o tema.
Todo esse debate tem reflexo nas universidades, nas agências
de fomento e no próprio governo. Em alguns países desenvolvidos, como a Inglaterra,
essa questão tem sido objeto de deliberação por parte de governos,
universidades e agências de fomento há mais de cinco anos. Nos países em
desenvolvimento, nem tanto. O que tem chamado mais
atenção são os efeitos que a questão do auto-arquivamento tem provocado.
Chan; Costa (op. cit.) ressaltam as experiências
dos governos americano e britânico com relação ao papel que governo e agências
de fomento exercem nesse contexto e as influências que isso provoca sobre
editores comerciais. Os autores comentam que, nos países ricos, esses
organismos
estão
começando a questionar a eficiência do sistema de publicação atual, dominado
por interesses comerciais, e estão começando a demandar que a pesquisa que eles
financiam esteja tão amplamente acessível quanto possível.
As
decisões e recomendações dessas instituições e países são muitas e mostram a
importância da questão do acesso livre à informação no seio da comunidade
científica e da sociedade em geral. Têm, certamente, impacto mundial. Urge,
portanto, que países em desenvolvimento, como o Brasil, realizem estudos e
desenvolvam e implementem projetos que visem à inserção do País nesse contexto.
Recai sobre as bibliotecas universitárias enorme desafio. Sobre as comunidades
científicas da Ciência da Informação, desafio maior ainda, assim como da
Ciência da Computação. Assim, é fundamental que se conheçam em profundidade, e
se estudem nos cursos de formação dessas áreas, as questões relacionadas com o
que se chama neste capítulo de Tríplice AA, como se discute a seguir, visando a
dar uma noção genérica sobre os termos.
O ambiente acadêmico tem sido identificado como o principal
cenário tanto para pesquisa quanto para desenvolvimento, o que aponta para as
comunidades científicas como seus principais atores. Pode-se, então, afirmar
que à medida que o meio eletrônico, gradual e crescentemente, substitui o meio
impresso no contexto da publicação científica, as mudanças na comunicação
aumentam também, provocando crescimento e diversidade nas interações entre
pesquisadores e no desenvolvimento do conhecimento. Isso, por seu turno,
acelera o acesso à informação. De fato, que a tendência principal da
comunicação eletrônica hoje parece ser em direção a uma filosofia aberta,
levantando questões sobre software aberto, acesso aberto, arquivos abertos e
outras (COSTA; MOREIRA, 2003). Da mesma forma, mudanças paradigmáticas
relacionadas com uma necessária filosofia aberta estão progressivamente
acontecendo, dando lugar a uma nova ordem mundial que, por sua vez, é
subjacente às preocupações de pesquisadores em relação à publicação eletrônica.
Na verdade, a questão do preço das assinaturas tem sido uma das
principais, se não a principal motivação para os movimentos do acesso aberto e
dos arquivos abertos. Prosser (2003) chama atenção para o fato de que por
três séculos o modelo básico para a comunicação científica nas ciências exatas
e naturais permaneceu imutável, com o periódico científico no papel central.
Contudo, observa Prosser,
A
confluência dos preços crescentes dos editores, os orçamentos restritos das
bibliotecas e as novas tecnologias eletrônicas de comunicação estão criando o
ambiente certo para uma transformação marcante em como se compartilham novas
informações dentro da comunidade desses cientistas.
Uma dessas
transformações está relacionada com os repositórios institucionais como
“coleções digitais que capturam e preservam a produção intelectual de uma
universidade ou uma comunidade multiuniversitária”. O autor compara as funções
dos periódicos tradicionais, nomeadamente registro, certificação, awareness e arquivamento, com as dos
repositórios institucionais, observando que nestes a certificação não é
garantida, pelo menos nos mesmos moldes da “revisão independente e
internacional, pelos pares”. Uma
possível solução, sugere Prosser, seria uma rede de repositórios institucionais
ligadas a periódicos referendados, caso em que, em razão do acesso livre aos
repositórios institucionais, os periódicos teriam, igualmente, que prover
acesso livre.
Nesse ponto as idéias de Prosser encontram
eco no que Harnad et al (2001) classificam como vias verde e dourada para o
acesso aberto. A primeira é representada pelo auto-arquivamento por parte dos
autores que obtêm permissão (sinal verde) dos editores de periódicos que
aceitaram seus artigos para publicação, de depositarem seus trabalhos em um
servidor de arquivos abertos com acesso livre. A segunda diz respeito aos
periódicos científicos eletrônicos de acesso livre. Na primeira, portanto, o
acesso livre é garantido pelos arquivos abertos quando estes tornam
disponíveis, livremente, artigos publicados em periódicos científicos
referendados. Na segunda, o acesso livre é garantido diretamente pelos próprios
periódicos. É importante lembrar, como destacado por Van de Sompel e outros
autores, que o conceito de arquivo aberto não inclui o acesso livre.
Observe-se que a abordagem de
Harnad et al traz para debaixo do “guarda-chuva técnico para interoperabilidade
prática” (Figura 1), de Lagoze e Van de Sompel (2001), os editores. Quanto aos
repositórios institucionais, provocam a entrada das bibliotecas em cena. Todos
certamente centrados na preocupação com a acessibilidade ampla e irrestrita à
informação, resultado do movimento recente em direção à filosofia aberta para
os arquivos em que os conteúdos gerados por pesquisadores estão disponíveis, os
softwares utilizados na criação de repositórios de diversos tipos e o acesso,
questão central em toda essa discussão.
Parece
pertinente considerar o guarda-chuva técnico para interoperabilidade prática
como uma espécie de novo modelo do processo de comunicação científica no que
concerne à representação dos aspectos relacionados com os atores do processo.
Nesse sentido, destaca a inclusão gradual de novos atores do processo,
levando-se em conta que as mudanças quanto a essa questão se iniciaram pela
ação de pesquisadores na qualidade de autores e usuários da informação
científica. A adesão gradual de editores e das bibliotecas, como também de
agências de fomento, é uma questão
inexorável e irreversível. O que aponta para novas mudanças é o modelo
que envolve o pagamento para disseminação (pagar para publicar, objeto de
discussão em outros trabalhos). O modelo representa, no entanto, a ampliação
das fronteiras de uma igualmente nova comunidade científica formada por
adotantes, precoces ou tardios, das inovações que arquivos abertos, periódicos
eletrônicos e outras formas de comunicação eletrônica representam.
Referências:
COSTA, Sely M. S. de. The impact of computer usage on scholarly communication amongst
academic social scientists. Loughborough, 1999. 291p. (Doctoral Thesis) –
Department of Information Science, Loughborough University.
COSTA, Sely M. S.; MOREIRA, Ana Cristina S. The
diversity of trends, experiences and approaches in electronic publishing:
evidences of a paradigm shift on communication. In: COSTA, S. M. S.;
CARVALHO, J.A.C.; BAPTISTA, A.A.; MOREIRA, A.C.S. From information to
knowledge: proceedings of the 7th ICCC/IFIP International
Conference on Electronic Publishing. Guimarães: Universidade do Minho,
2003, p. 5-9.
GRAVEY, William D.; GRIFFITH, Berver G. Communication
and information processing within scientific disciplines: empirical findings
for Psychology. In: GARVEY, William D. Communication: the essence of
science. Oxford: Pergamon Press, 1979. p. 127-147.
HARNAD, Stevan et al. The access/impact problem and the green and gold roads to open access.
2001. Disponível em:
http: //www.ecs.soton.ac.uk/~harnad/Temp/impact.html, acesso em 18 jul. 2004.
LAGOZE, Carl; VAN DE SOMPEL, Herbert. The open archives initiative: building a low-barrier
interoperability framework. 2001. Disponível em: http: //www.openarchives.org/documents/jcdl2001-oai.pdf,
acesso em 12 mar.2003.
PROSSER, David. Information revolution: can
institutional repositories and open access transform scholarly communications? The ELS Gazette, v. 15, jul. 2003. Disponível
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SUBER, Peter. Removing the barriers to research: an
introduction to open access for librarians. College & Research
Libraries News, 64: 92-94,
2003.
VAN DE SOMPEL, Herbert. Rethinking
scholarly communication: building the system that scholars deserve. D-Lib Magazine, v. 10, n. 9, set. 2004.
Disponível
em http: //www.dlib.org/dlib/september04/vandesompel/09vandesompel.html, aceso
em 21 out. 2004.
[1] O texto aqui apresentado é parte do capítulo de minha autoria, publicado no livro Bibliotecas Digitais: saberes e práticas. Salvador/Brasilia: UFBA/IBICT, 2005.