GOVERNANÇA DOS RISCOS GERADOS PELA CIÊNCIA E TECNOLOGIA
Paulo
Emílio Valadão de Miranda
Laboratório
de Hidrogênio – Coppe
Universidade
Federal do Rio de Janeiro
Analisar o gerenciamento estratégico dos riscos gerados pela ciência e
pela tecnologia na nossa sociedade é um tema que permite diferentes abordagens.
Uma delas, talvez a mais óbvia, seria discutir como os desenvolvimentos
científicos e tecnológicos são capazes de afetar os seres humanos, as plantas, os
animais e o planeta Terra como um todo, devido, por exemplo, aos riscos
associados com o uso de alimentos transgênicos, as conseqüências potencialmente
assustadoras que poderão ter os avanços da Engenharia Genética ou ainda o
perigo nuclear, oriundo de ogivas e usinas espalhadas através do mundo.
Preferi, entretanto, conduzir este tema para um outro tipo de análise, menos
óbvio e menos rico em respaldo da literatura para um eventual aprofundamento.
Este se refere ao risco que a sociedade estabelecida, sua estrutura
organizacional e suas opções de desenvolvimento evolutivo podem oferecer à
ciência e à tecnologia e ao incremento desses conhecimentos em prol da própria
sociedade. Portanto, decidi avaliar quais os fatores capazes de alterar o
incremento do conhecimento científico (ICC) e tecnológico (ICT) ao longo dos
anos e como esses conhecimentos poderão induzir no futuro uma melhoria da
qualidade de vida dos seres humanos de forma ambientalmente amigável.
A fim de realizar uma análise histórica e de projetar uma perspectiva
futura, foi necessário avaliar a evolução experimentada pela ciência e pela
tecnologia desde tempos remotos, correlacionando-a com algumas características
das sociedades em que estavam inseridas. As informações relevantes, porém,
dispersas que pude coletar sobre as sociedades Inca, Asteca e Maia infelizmente
não me permitiram traçar um panorama evolutivo conseqüente para substanciar uma
abordagem continuada daqueles conhecimentos. Por isso, realizei um estudo com
fundamentação eurocentrista a partir da admirável coletânea de informações e
análises críticas encontradas em publicação recente sobre o tema 1. Esta
publicação incluiu estudos sobre as origens da ciência ocidental, o acúmulo de
conhecimento daí advindo, o método científico e as abordagens
filosófico-sociológicas relacionadas. Além disto, mostrou um gráfico adaptado por
aquele autor a partir de uma outra referência 2, que representou o
ponto de partida que deflagrou toda a análise aqui conduzida. Este gráfico apresentava
uma variação esquemática do incremento do conhecimento científico (ICC) ao
longo dos anos, desde a civilização grega, berço da filosofia e da ciência
ocidentais, até a revolução científica do século XVI, associada ao surgimento da
Física moderna. Ali se verificou um pico intenso de incremento do conhecimento
científico relacionado à Revolução Racional causada pela filosofia grega, uma
estabilização em níveis muito baixos desse ICC durante todo o Império Romano e
a idade média até o crescimento expressivo ocorrido no século XVI, com o
advento da Revolução Científica. Também foi indicado que no mundo oriental
houve um crescimento gradativo e constante do ICC, representando uma supremacia
de conhecimento daquela parte do mundo antes e depois (porém, com exceção) da
era grega, para ser suplantado definitivamente pelo ocidente a partir da sua
Revolução Científica no século XVI.
Identifiquei alguns fatos para o quais seria interessante a busca de maiores explicações, tais como: por que a
existência de um nível tão pequeno de ICC entre a Era Grega e a Revolução
Científica ocidental do século XVI ? Que tipo de evolução apresentaria o ICC
após aquela Revolução Científica e para um futuro posterior a era atual ? Como
teria evoluído o incremento do conhecimento tecnológico (ICT) nestes períodos e
que inter-relação este poderia ter com o ICC ? Qual a correlação potencialmente
existente entre o incremento dos conhecimentos científico e tecnológico por uma
sociedade com o índice de desenvolvimento humano por ela experimentado ? Estes temas
serão discutidos a seguir.
Com base nos gráficos da Figura 1, a curva que mostra o ICC ocidental ao
longo dos anos foi obtida de Needham 2 até o século XVI. Inferi, daí
em diante, um comportamento provável, em função de algumas descobertas
científicas importantes que cataloguei. Analisando aquela curva desde épocas
remotas, pode-se dizer que a sociedade ocidental apresentou forte evolução
social a partir da Revolução Agrícola, ocorrida alguns milhares de anos antes
da era atual, para beneficiar-se do ICC no oriente e encontrar ambiente
propício para apresentar um formidável pico de incremento no conhecimento
científico embalado pela filosofia e pela ciência gregas. Este pico no ICC grego
floresceu com a liberdade e o incentivo filosóficos típicos da época e se
esvaeceu com a desestruturação (e dominação) daquela sociedade,
intelectualmente iluminada, mas socialmente perversa, tal como aquelas que a
sucederam até o momento atual, com variâncias na forma da exploração humana. A
forte opressão social durante o estabelecimento e a expansão do Império Romano,
o monoteísmo exacerbado, a presença política conservadora dominante da igreja e
o feudalismo medieval, mergulharam a sociedade ocidental em um obscurantismo
científico, o qual perdurou por vários séculos. Este obscurantismo foi gradativamente
derrotado pelo advento da Revolução Comercial, da Revolução Religiosa, da
Revolução Cultural e da própria Revolução Científica ocorrida no século XVI 1.
A partir daí, propus na presente análise a existência de dois picos de ICC subseqüentes.
Um deles aproximadamente na primeira metade do século XIX (associado a, por
exemplo, teorias da termodinâmica, da evolução e do eletromagnetismo) e outro
entre o final do século XIX e o início do século XX (associado, por exemplo, ao
DNA, à mecânica quântica e à relatividade). Guardadas as devidas proporções,
atualmente a sociedade ocidental experimenta algumas das características já
observadas no período em que houve o decréscimo no ICC após a era grega, tais
como imperialismo global dominante, forte opressão (e desigualdade) social e
monoteísmo exacerbado. Também supus para o começo do século XXI a existência de
um decréscimo suave no ICC, embora se mantendo ainda em nível de intensidade
elevado.
Além disso, criei uma hipotética curva evolutiva do incremento do
conhecimento tecnológico (ICT) na sociedade ocidental e a superpus àquela do
conhecimento científico na Figura 1. Identifiquei uma Primeira Revolução
Tecnológica, ocorrida durante o Império Romano, a qual também sucumbiu, por
razões sociais, chegando ao obscurantismo medieval. Os romanos disseminaram o
uso da roda em utilizações diferentes e aportaram tecnologias de Engenharia,
algumas das quais até hoje utilizadas. É interessante observar que este
primeiro pico no ICT eu o aloquei subseqüente ao pico referente ao ICC grego. Utilizei
este padrão de comportamento em que os picos de incremento no conhecimento
científico precedem os de incremento no conhecimento tecnológico. Isto é, que a
ciência oferece as bases para o desenvolvimento tecnológico e que a tecnologia potencializa
a experimentação científica. Assim, propus a ocorrência de dois picos de ICT
para as eras moderna e pós-moderna, sucedendo-se cada um, respectivamente, aos
dois picos que eu já havia apresentado na Figura 1 para o ICC nestas épocas. Um
desses picos de ICT caracteriza uma Segunda Revolução Tecnológica através de um
pico de grande amplitude e intensidade na Figura 1, que inclui descobertas
tecnológicas importantes, tais como, entre outras, o automóvel, o telefone, a
eletricidade, o avião (contribuição brasileira) e a penicilina. Avaliei que
isto foi facilitado pela importante expansão energética, através do grande
incremento no uso do carvão e no surgimento e disseminação do uso do petróleo,
assim como na maior intensidade e maior diversificação em formas de uso de
energia pela sociedade, que ocorreu em associação com esta Segunda Revolução
Tecnológica. O outro pico no incremento do conhecimento tecnológico, de menor
amplitude e já se conectando ao início de formação de um novo pico que surgirá no
futuro, foi criado para caracterizar a Terceira Revolução Tecnológica. Considerei
que esta foi influenciada pela revolução e crise socialistas e que abarca o
imperialismo tecnológico norte americano, o fundamentalismo e o terrorismo
(árabes e norte americanos) e fortes diferenças sociais. O conteúdo que
associei a esta Terceira Revolução Tecnológica inclui os formidáveis avanços na
medicina, nos alimentos, em novos materiais, nas comunicações e na
microeletrônica, entre outros.
Minha opinião é que, tal qual ocorreu como base de apoio para o
estabelecimento da Segunda Revolução Tecnológica, o forte incremento no
conhecimento tecnológico subseqüente à Terceira Revolução Tecnológica ao longo
do século XXI estará suportado por uma Revolução Energética. Esta será
caracterizada pelo maior uso de energias renováveis, pela associação sinérgica
e complementar de diferentes formas de geração de energia, pela desconcentração
do poder sobre fontes de energia e culminará na “Civilização do Hidrogênio”.
Nesta importará pouco, ao contrário do que ocorreu no século XX e início do
século XXI, o poder associado à posse do combustível, mas prevalecerá o
conhecimento dos métodos tecnológicos para a produção e o uso eficiente do
hidrogênio e de compostos ricos em hidrogênio como portadores de energia limpa,
com pouco ou nenhum conteúdo em carbono, o qual induz a formação de gases
maléficos ao meio ambiente. Por isto, atualmente um grande esforço é feito no
desenvolvimento de metodologias científicas para a compreensão da interação do
hidrogênio com a matéria, o que redundará em processos tecnológicos que
permitirão o uso energético do hidrogênio no futuro 3. O avanço na
área energética, associado à Revolução de Novos Materiais e da sua reciclagem, permitirá
que, em continuidade à Terceira Revolução Tecnológica, floresça uma Revolução
Ambiental. Além disto, suponho que uma Revolução nas Ciências Biomédicas
permitirá uma ampliação e uma melhoria na qualidade e no tempo de vida dos
seres humanos mais favorecidos. Mas, somente destes. Creio haver uma forte tendência
de que as diferenças sociais se exacerbem no decorrer do século XXI, dependendo
de como os avanços científicos e tecnológicos serão incorporados, absorvidos e
aproveitados pelas sociedades em diferentes partes do mundo.
No mundo atual, os países onde há maior nível de geração de conhecimentos
científicos e tecnológicos são também aqueles onde há mais inter-relações entre
a ciência e a tecnologia e onde a sociedade mais se beneficia desta
inter-relação, resultando em um elevado índice de desenvolvimento humano (IDH).
Estes países exportam tecnologia para os países em desenvolvimento,
compartilham uma parcela do desenvolvimento científico mútuo e permitem uma
certa, não muito grande, inter-relação entre ciência e tecnologia naqueles
países em desenvolvimento, de forma a beneficiar com melhores IDHs uma parcela
restrita, dominante, daquelas sociedades locais. Como resultado, tal como
ocorre no Brasil, há uma fração primeiro-mundista da população, a qual
experimenta elevados níveis de desenvolvimento humano, mas convive de forma
tensa com uma maioria de excluídos deste processo de ascensão social. A
situação se torna realmente crítica nos países subdesenvolvidos, nos quais há
pouquíssima ou nenhuma inter-relação entre ciência e tecnologia, que existe com
pequena intensidade, e sua conseqüente absorção e uso pela sociedade. Os países
desenvolvidos (e também aqueles em desenvolvimento) vendem para estes países subdesenvolvidos
tecnologia obsoleta, testam seus métodos científicos e tecnológicos e
reproduzem a dominação social típica da antiga escravatura, agora disfarçada de
diversas formas, que incluem o “livre” emprego com salários aviltantes para o
uso de métodos tecnológicos exógenos objetivando a produção de bens que
servirão às sociedades mais favorecidas (como a típica produção de tênis e
roupas na Ásia), a “ajuda” médica que envolve a venda de remédios
proprietários, protegidos por patentes, cujo preço embute elevado valor
agregado, como ocorre na África e na América Latina. A Revolução Comercial que
causou impacto benéfico como precursora da Segunda Revolução Tecnológica,
através da disseminação de bens e serviços, culminou na Globalização dos
séculos XX e XXI, que gerou uma renda per
capita média de cerca de R$ 80.000,00 nos países (e sociedades) mais ricos e
de apenas R$ 650,00 nos países (e sociedades) mais pobres. Este procedimento de
exploração científico-tecnológica entre nações também se reproduz dentro dos
próprios países e suas cidades, tais como o “asfalto” e a favela no Rio de
Janeiro ou o “glamour” e os imigrantes africanos em Paris.
Na Figura 2 reproduzi a parte referente aos séculos mais recentes mostrados
na Figura 1 e os expandi para uma visão de futuro, mostrando alternativas
diferentes para o progresso da sociedade mundial relativo à influência dos
conhecimentos científicos e tecnológicos. Desde a Revolução Racional
(científica) Grega e a Primeira Revolução Tecnológica (romana) até o século XXI,
os picos de ICC precederam e se alternaram com os picos de ICT. Não houve,
portanto, oportunidade para a ocorrência de picos superpostos, referentes aos
incrementos nos conhecimentos científicos e tecnológicos. A tendência neste
início de século XXI é também de um decréscimo no ICC associado com um enorme
crescimento no ICT. Prevalecendo este panorama, imagino que ocorrerá uma
deterioração ainda maior do IDH das sociedades menos favorecidas no mundo e que
estas cresçam em número. Concluo que isto fará com que a pobreza e a miséria se
constituam no principal risco à ciência e à tecnologia no século XXI. Ou seja,
o aumento das desigualdades sociais, associado ao crescimento da população
mundial, poderá diminuir o nível de incremento nos conhecimentos científico e tecnológico
durante o século XXI, tal como ocorreu após a florescência filosófico-científica
grega e o avanço tecnológico romano, mergulhando a sociedade no obscurantismo.
Entretanto, faz-se necessário compreender que a tecnologia é trivializável ou se torna ultrapassada
com o passar dos anos e que somente a ciência e a arte são perenes. Espero que
esta compreensão possa induzir um esforço político e financeiro em educação, em
ciências básicas e em arte conceitual, fazendo com que pela primeira vez na
história ocidental os conhecimentos científicos e tecnológicos cresçam simultânea
e intensamente no século XXI, para permitir às sociedades ricas e pobres
experimentarem uma grande prosperidade nos índices de desenvolvimento humano,
com conseqüente diminuição das desigualdades sociais. Afinal, como já escreveu
certa vez José Leite Lopes 4: “O objetivo da ciência e da tecnologia
é a libertação do ser humano ou o estabelecimento de um mundo regido pela
repressão dos muitos pobres pelos poucos ricos ?”
Agradecimentos
Agradeço
pelo apoio de Isabel Pinto, Victor Boscolo e Hugo Miranda no preparo de
informações e gráficos, assim como pelas críticas às minhas idéias iniciais por
L. Pinguelli Rosa.
Bibliografia
1.
Luiz Pinguelli Rosa,
“Tecnociências e Humanidades: Novos Paradigmas, Velhas Questões”. Editora Paz e
Terra S.A., 2005.
2.
Needham,
J. et al., “Clerks and Craftsmen in China and West: Lectures and Addresses on
the History of Science and Technology”. CUP, p. 414, 1970. Citado em: G. Blue,
“Joseph Needham’s Contribution to the History of Science and Technology in
China”. Science and Technology in The Transformation of the World. Eds. A.
Abdel-Malek, G. Blue, M. Pecujlic. The United Nations University, Tokyo, pp.
458 – 488, 1982.
3.
H. V. C. Souza; J. S. Coutinho
Filho; V. R. Crispim; A. C. Mesquita Filho; P.E.V. de Miranda. “Hydrogen and Hydride
Detection in Metallic Glasses”. Journal of Non-Crystalline Solids, Vol. 345,
pp. 746 – 754, 2004.
4.
José
Leite Lopes, “Science and Making of the Contemporary Civilization”. Science and Technology in The Transformation of
the World. Eds. A. Abdel-Malek, G. Blue, M. Pecujlic. The United Nations
University, Tokyo, pp. 458 – 488, 1982.
Figura 1 – Variação do incremento nos conhecimentos científico e tecnológico
ocidentais ao longo dos anos. A porção pontilhada da curva para o ICC foi
obtida da referência 2.
Figura 2 – Associação entre incremento nos
conhecimentos científicos (ICC) e tecnológicos (ICT) com o índice de desenvolvimento
humano (IDH). ICT crescente e ICC decrescente resultam em baixo índice de
desenvolvimento humano (IDH), o que representa pobreza e miséria. ICT e ICC
crescentes resultam em elevado IDH, representando prosperidade social, com
conseqüente diminuição das diferenças sociais.