O ÓCIO E A EMANCIPAÇÃO *

Maria Teresa Ricci**

            A diferença das sociedades capitalistas modernas, fundadas no trabalho e na condenação do ócio, as sociedades pré-industriais, as sociedades antigas (gregas ou romanas) é que as mesmas respeitavam o ócio, compreendido não como inércia, mas, por assim dizer, como atividade despojada e privada de coerções, como liberdade de escolher a que se dedicar. Muitos filósofos antigos e também pensadores mais próximos a nós expressaram o seu desprezo pelo trabalho do qual pode depender a sobrevivência, assim como o dinheiro e as atividades que estão ligadas a ele. É claro que o ideal do ócio sempre foi um ideal aristocrático, mas o que interessa aqui não é fazer elogio à vida aristocrática, que como bem sabemos sempre pressupôs a existência de classes subalternas dedicadas à obediência, mas de mostrar simplesmente que o objetivo do homem e da sociedade também pode não residir na riqueza, na produção e no trabalho, como acontece na sociedade capitalista moderna, mas em qualquer coisa de mais honroso, por exemplo, a vida de prazer ou de ócio e a vida contemplativa, para usar conceitos aristotélicos que hoje poderiam aparecer como simples provocações.

            Proporemos aqui uma panorâmica geral que não tem absolutamente o objetivo de esgotar esta temática, mas certamente de oferecer alguns pontos de reflexão sobre a possibilidade de emancipação das sujeições da sociedade atual, focando a atenção em alguns pensadores bem conhecidos ou menos conhecidos, que de tal problema trataram, desde a antiguidade até a atualidade.

            Na Grécia antiga, o último ideal de vida não é o trabalho ou o enriquecimento, mas certamente o prazer, o ócio. A vida do artífice, do artesão ou do mercante é desprezada porque falta a elas qualquer forma de liberdade, e se é submisso à necessidade. Aquele que deve trabalhar para viver é objeto de desprezo, enquanto o ócio é sempre honroso. Esta sociedade não conhece um termo correspondente a trabalho como hoje é compreendido. Vernant escreve que “uma palavra como ponos ( fadiga, trabalho) aplica-se a todas as atividades que exigem um esforço penoso, e não somente aos trabalhos que produzem valores socialmente úteis". Na verdade, na Grécia antiga, não existe o ideal de trabalho como função social, como uma atividade humana específica. O trabalho é contra todas as formas de vida livre, segundo Aristóteles que escreve na Política: "conseqüentemente, é claro que no estado conduzido do melhor modo, formado por homens absolutamente justos e não sob uma determinada relação, os cidadãos não devem levar a vida de mecânico ou de mercante ( essa espécie de vida é desprezível e contrária à virtude) e nem tão pouco ser camponeses aqueles que querem tornar-se cidadãos ( na realidade existe necessidade do ócio para desenvolver a virtude e as atividades políticas).

            O ócio, diferentemente do trabalho, tem um objetivo em si mesmo. Mas isto não significa exaltar a inércia, a preguiça, já que a virtude para os gregos é sempre prática. De fato, diz sempre Aristóteles, “exaltar a inércia mais do que a ação não corresponde à verdade, porque a felicidade é atividade”.

            Na Grécia, a classe dominante e os filósofos a ela ligados consideravam, geralmente, a vida ociosa, ou seja, a liberdade de escolher a atividade a qual se dedicar,como o único bem capaz de proporcionar a vida digna de ser vivida. A vida dos homens livres era incompatível com o trabalho, já que para dedicar-se à atividade pública necessita-se de todo o tempo disponível. Mas a vida livre e ociosa dedicada à filosofia, à política ou às festas era, na verdade, um privilégio de uma elite que vivia, como se sabe, do trabalho dos escravos, que constituíam a maior parte da população.

            A Política de Aristóteles inicia-se com a apologia da escravidão, mas, curiosamente, ele mesmo propõe imediatamente, depois de um argumento extravagante para a sua época: “Se cada instrumento conseguisse realizar a sua função após um comando ou prevendo-o antecipadamente, como dizem que fazem as estátuas de Dédalo ou os trípodes de Efesto os quais, ao ouvir o poeta - "entram com particular impulso na assembléia divina” (Homero, II, XVIII 376), assim, do mesmo modo, se as máquinas de tear tecessem sozinhas e os instrumentos tocassem a cítara, os chefes artesãos não teriam a verdadeira necessidade de subordinados, nem os senhores de escravos." Esta esquisita idéia de Aristóteles tornou-se hoje uma realidade e demonstra que o trabalho não é uma necessidade natural e inevitável.

            Se considerarmos o conceito de trabalho na sua origem etimológica, ele indica, na verdade, na grande maioria das línguas européias, a atividade dos servos ou dos escravos. Em latim ‘laborare’ (trabalhar) significa cansar-se, sofrer. E assim o francês travail, ou o espanhol trabajo, parece que derivam do latim tripalium, que era um instrumento de tortura. Arbeit em alemão indica o trabalho que desenvolve o órfão, pois não há ninguém que se encarrega dele. Pela sua origem etimológica o trabalho indica, portanto, um destino social infeliz, uma atividade com a qual se perde a liberdade, com a qual, de qualquer forma, torna-se escravo de qualquer outro. A generalização do trabalho a todos os membros da sociedade não é, portanto, mais nada que a generalização da dependência servil.

            A tudo isso contribuiu, certamente, o protestantismo com a sua ética do trabalho, da profissão, com a sua austeridade, como demonstra Weber na sua célebre obra - A ética protestante e o espírito do capitalismo (1904-05). O puritanismo quis destruir cada impulso ao prazer da vida, porque a alegria de viver desvia do trabalho profissional e da religiosidade. A ética puritana que se caracteriza pela especial tendência ao racionalismo econômico é abraçada nos países mais ricos da classe burguesa que, no início da época moderna, deveria encontrar-se com a mentalidade pré ou anticapitalista da antiga nobreza feudal e guerreira que se opunha -pelo menos idealmente- a uma dura resistência a estas transformações sociais, à afirmação de uma nova mentalidade que exalta o laborioso e da qual nascem, por exemplo, as sanguinárias leis contra a vagabundagem em toda a Europa Ocidental.

            É sobretudo nas cortes européias , a partir dos séculos XVI e XVII, que as duas mentalidades se chocam, aquela da burguesia em ascensão que quer destronar a antiga nobreza, e aquela da nobreza em decadência, que no processo de formação dos Estados modernos, vê-se em grande parte integrada nas cortes.

            Na sociedade da corte, o estetismo, a arte de viver  encontram o terreno mais apropriado ao seu desenvolvimento.

            A antiga nobreza feudal, forçada aqui a um ‘ócio mortal’ (Saint-Simon), cria um estilo de vida fundado nas ‘boas maneiras’, que pressupõe exatamente como condições essenciais o ócio. A existência naquela época não está ainda totalmente submetida às imposições do ‘trabalho’, que nas sociedades pré-industriais do Antigo Regime não desfrutavam ainda da consideração das quais desfrutam atualmente.

            Ao espaço do trabalho, a corte opõe o espaço do jogo, como nos mostram muitos tratados dedicados à vida da corte. A sociedade que consagra o tempo ao jogo é uma sociedade que não ouve o dever de produzir os bens e que geralmente despreza o trabalho. O ‘tempo’ da nobreza não é o tempo da produtividade, mas aquele do ócio, do prazer. A politesse ( requinte) é uma ‘arte’ de brincar com o tempo, uma arte da paciência e da disponibilidade. Ela desaparecerá necessariamente na vida moderna, que impõe ao indivíduo um ‘tempo’ que lhe é estranho, do qual não é mais senhor.

            Entre a nobreza da corte domina um "éthos" social estranho à classe burguesa, toda inclinada ao cálculo e à acumulação: aquele do consumo de prestígio, como mostra Norbet Elias nos seus célebres estudos. O nobre deve mostrar a total negligência diante do dinheiro e uma grande capacidade de esbanjar para manter o respeito do grupo ao qual pertence. O dinheiro representa para o nobre uma distinção social somente no que diz respeito ao uso que se pode fazer dele. Para a burguesia o dinheiro é o único verdadeiro meio que lhe possibilita elevar-se para além da sua posição. Diferentemente do nobre, o burguês, com posição elevada, não ostenta, portanto, desprezo pela atividade comercial, pelo contrário, reconhece a sua utilidade.

            A corte, uma das últimas estruturas não burguesas do Ocidente, funda-se na suntuosidade e no luxo, no consumo do prestígio, no qual é possível chegar a destruir bens e riquezas acumuladas durante anos. O nobre autêntico despreza, efetivamente, tudo isso que se pode comprar ou vender, ele apresenta-se como um homem do ‘dom’. A largueza e a magnificência são para ele obrigações, já que ele defende a sua honra e não o seu interesse. O verdadeiro nobre não só não economiza as suas riquezas, mas também a sua vida, que arrisca ostentamente nos duelos ou nas guerras.

            Nos objetivos da nobreza estão, portanto, em primeiro lugar, a boa aparência e a honra. É neste objetivo que devem empenhar-se os bens, o dinheiro e o tempo. Como escrevia um tratadista do século XVI, Giovan Battista Assandri (1570-1575), “a honra não se dá ao rico porque o mesmo possui o dinheiro, mas porque livremente e magnificamente o gasta e o dispensa". Igualmente um outro escritor da época, Odoardo Baviera sustenta que os bens servem "para a comodidade e para o adornamento da sua família". Estes eram alguns dos temas fundamentais da ‘economia’ ou ‘a arte de governar a casa’, que, desenvolvendo-se nas bases da antiga ‘economia’ de Xenofonte e de Aristóteles, conhece entre os séculos XVI e XVII um grande florescimento em toda a Europa, tornando-se um dos meios fundamentais para a elaboração da ideologia da nobreza.

            Nos tratados de 'economia', as 'riquezas naturais', os bens de uso imediato são sempre privilegiados com relação ao dinheiro, que é 'riqueza artificial'. As riquezas, explica Piccolomini (1508-1578), consistem 'na abundância das substâncias para a alimentação e comodidade necessárias ao homem, e não na reprodução de bastante dinheiro. A verdadeira riqueza não é aquela obtida ou mantida por intermédio do trabalho, mas aquela que é herdada e é constituída por bens imóveis, como a terra. Ricos e nobres o são e não se tornam, tão pouco, podem tornar-se o que são através do trabalho.

            A propriedade da terra é por excelência a ‘riqueza natural’, por isso o modelo que emerge da ‘economia’ é a casa que vive da produção agrícola.

            O dinheiro e os produtos mercantis na ‘economia’ aparecem restritos a um âmbito de práticas proibidas ao fidalgo, castigo a sua desonra. Mas é claro que a realidade nem sempre corresponde ao ideal, e uma parte da nobreza, para manter o seu poder, utilizou-se de meios eficazes como as atividades especulativas e financeiras. E isto acontece sobretudo no século XVI, quando a terra perde lentamente a sua função central na organização econômica e social, quando se começa a impor um tipo de produção capitalista e o conceito de ‘mercadoria’ tornar-se-á uma categoria fundamental.

            A imposição desse tipo de mentalidade comporta inevitavelmente a crise do estilo de vida aristocrático fundado na generosidade e no desprezo ao dinheiro e ao trabalho. Uma parte da nobreza abraçará esses novos valores, e mantendo os princípios ao ócio e ao desprezo ao dinheiro, entrará no comércio ou em atividades especulativas. Uma parte se endurecerá na defesa dos valores da antiga nobreza feudal encarnando assim, na literatura, em personagens de aparência ridícula como Dom Quixote ou como os protagonistas de El Buscon de Quevedo. Ou então, como outra possibilidade, a nobreza irá para o banditismo, como acontece sobretudo na Alemanha do Século XVI ou na Espanha, retomando assim a atividade principal do senhor feudal, ou seja, aquela atividade ligada às armas. Em geral, não era só a decadência e a pobreza a empurrar estes nobres para formarem bandos e fazerem assaltos nos campos, mas também a possibilidade de conduzir ainda pessoalmente as guerras. Esta parte da nobreza era constituída por aqueles nobres que nunca se ocuparam da agricultura, que não aceitavam ser integrados à corte e que para fugir da atividade de trabalho preferiam viver na miséria, encontrando-se deste modo com as assim intituladas ‘classes perigosas’, ciganos e marginalizados, em que o estilo de vida mostra surpreendentes analogias com o estilo de vida e com os ideais da nobreza.

            As classes aristocráticas e as classes dos voyoux (termo francês), ‘foras-da-lei’ encontram-se no desprezo ao dinheiro e ao trabalho, na ostentação da generosidade, e para lançar um olhar sobre o nosso tempo, um raro exemplo deste casamento é talvez estabelecido por um personagem do qual fala-se muito nos últimos tempos, Guy Debord, que se considerava, ele mesmo um voyoux  e que para os seus amigos representava, ao contrário, um aristocrata generoso que construiu, ele próprio, a sua vida no princípio “ne travaillez jamais!” (Não trabalhe jamais!)

 

* Tradução de Juliana Zanetti de Paiva

** Universidade Blaise-Pascal, Clermont-Ferrand