OS ESTUDOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS NO ESTADO DO CEARÁ[1]

 

Maria do Socorro Silva de Aragão

UFC

 

INTRODUÇÃO

 

 

O português falado no Ceará vem sendo analisado não só por especialistas cearenses, como, também, por pesquisadores que chegaram ao estado com o propósito de dar continuidade a esses estudos. Tais trabalhos seguem uma longa tradição de professores e estudiosos, quer da área de letras, quer de outras áreas, todos, porém, com o objetivo dos mais proveitosos, de coletar dados e informações para a análise do falar cearense nos seus aspectos fonético-fonológicos e léxicos, entre outros.

 

1. OS ESTUDOS LINGÜÍSTICOS NO CEARÁ

 

            O Ceará tem uma grande tradição de estudos lingüísticos, especialmente no campo da dialetologia, da sociolingüística e da lexicografia.

 

            Tais trabalhos, na grande maioria, foram feitos por pesquisadores que, apesar da qualidade e do pioneirismo de seus trabalhos, não seguiram uma metodologia científica que nos assegure sua pertinência.

 

            Ao estudar as fontes bibliográficas para o estudo do  falar   cearense,    MONTEIRO classifica-as nas seguintes categorias:

 

                  a) pesquisas sobre o português do Brasil; b) estudos sobre o folclore cearense; c) obras de caráter regionalista; d) textos de cantadores e poetas populares; e) ensaios e estudos sobre o falar cearense; f) dicionários de termos populares.[2]

 

            Aqui, apenas faremos referências aos trabalhos listados no item ensaios e estudos sobre o falar cearense. Neste aspecto nomes como Martins de Aguiar, Antônio Sales, Florival Seraine, entre outros, surgem como precursores dos estudos lingüísticos, especialmente os fonéticos, do falar do Ceará.

 

            Num passado mais recente surgem as dissertações de Mestrado e outros trabalhos de professores e pesquisadores das UFC e UEC, abordando aspectos variados do português padrão e não-padrão do Ceará. Entre eles destacaríamos José Rebouças Macambira, Hamilton Cavalcante, José Lemos Monteiro e Antônio Luciano Pontes.

 

            Atualmente, projetos como o do Atlas Lingüístico do Ceará, o da Norma Urbana Culta de Fortaleza, o do Português Não-padrão do Ceará e o dos Dialetos Sociais Cearenses, entre outros e as novas Dissertações de Mestrado e Teses de Doutorado de professores e alunos das Universidades Federal e Estadual do Ceará, têm estudado aspectos fonéticos específicos do português culto e popular do Ceará, utilizando as mais diferentes correntes da lingüística moderna.

 

            Concordamos, portanto com MONTEIRO quando diz:

 

      ... somos de opinião que o Ceará já conta com um número apreciável de fontes bibliográficas para estudos e descrições lingüísticas.[3]

 

2. OS ESTUDOS FONÉTICO-FONOLÓGICOS NO CEARÁ

 

Dentre os trabalhos sobre o falar cearense que tratam dos aspectos fonético-fonológicos destacaríamos, por seu pioneirismo, os trabalhos de AGUIAR (1937) e de SERAINE (1984) e por sua atualidade, os trabalhos de RONCARATI (1988) e ARAGÃO (1996 - 1997).

 

2.1. Trabalhos Pioneiros

 

2.1.1. Martins de Aguiar

 

O trabalho de Martins de Aguiar sobre aspectos fonéticos do falar do Ceará é um marco nesse tipo de análise, não só pela pesquisa realizada, mas, principalmente, pela análise que procedeu, tendo-se em conta o período em que foi feita e a falta de métodos e técnicas de que se dispõe hoje em dia. O trabalho cobre praticamente todos os pontos importantes onde o português falado no Ceará se distingue do falado em outras regiões do país, especialmente no sul e sudeste.

 

Alguns exemplos do que foi estudado:

 

Ø      Vogais, Consoantes e Semivogais

 

·         Vogal [ a ] passa a [ e ] - Raimundo [ ray'mûdo > rey'mûdo ]       

·         Vogal [ E ] passa a [ a ] - Alemão [ alE'mãw > alamãw ]             

·         Vogal [ i ] passa a [ E ] - Diferença [ difE'êsa > dEfE'êsa ]                                                  

·         Vogal [ û ] passa a [ î ] - Umbigo [ û'bigu > î'bigu ]                     

·         Semivogal [ w ] passa a [ h ] - Desculpar [ deskuw'paú > deskuh'pa ]     

·         Monotongação de [wa > † ] - Quaresma [ kwa'Ezma > k†'Ezma ]                   

·         Monotongação de [ aw > † ] - Piauí [ piaw'i > pi†'i ]

·         Monotongação de [ ew > † ] - Europa [ ew'†pa > †'†pa ]

·         Ditongo [ ow ] passa a [ oy ] - Louça [ 'lowsa > 'loysa ]                                    

·         Apagamento da vogal [ i ] átona - Experimentar [ ezpEimê'taú > ezpehmê'tah ]

·         Consoante [ ZZ ] passa a [h ] - Jumento [Zu'mêtu > úhu'mêtu ]               

·         Acréscimo de [ i ] após ou antes do [ l ] - Dificuldade [ difikul'dade > difikuli'dadi ]  ú

·         Mobilidade do [ r ] nas sílabas iniciais per e pré - Preciso [ pE'sizu > pEh'sizu ]                  

·         Consoate [ r ] em final de sílaba, passa a [ y ] - Corneta [ koh'neta > koy'neta ]               

·         Consoante [ v ] passa a [ h ] - Estava [ iS'tava > iS'taha ]                            

·         Consoante [ v ] passa a [ b ] - Varrer [ va'hehú > ba'reú ]                          

 

2.1.2. Florival Seraine

 

            Florival Seraine não foi um lingüista no sentido estrito do termo, uma vez que de profissão era médico. Contudo, dedicou-se, durante muito tempo, ao estudo da língua e da cultura nordestinas, especialmente a cearense. Seus trabalhos vão desde o estudo dos aspectos fonético-fonológicos e léxico da língua, passando pelos regionalismos e arcaísmos até ao estudo das várias manifestações artístico-culturais do povo cearense.

 

            Aqui trataremos, apenas, de seus estudos de fonética e fonologia do falar do Ceará, que, em grande medida, seguiram a mesma orientação dada por Martins de Aguiar em seus trabalhos. Muitos dos aspectos analisados por Aguiar foram retomados e confirmados por Seraine, razão pela qual mostraremos apenas alguns exemplos não analisados por Aguiar.

 

Ø      Consoantes e Semivogais

 

·         Iotização da consoante [ l > y ]

Salgado [ saw'gadu > say'gadu ]               

·         Troca do [ l ] por [ r ] nos grupos consonantais

Flexa [ 'flESa > 'fESa ]

 

Ø      Outros Fenômenos

 

·         Aférese - Acostumado [ akuStu'madu > kuSStu'madu ]

·            Síncope - Xícara [ 'Sikaa > 'Sika ]

·           Epêntese - Cotovia [ kutu'via > kutRu'via ]

·         Hipérteses - Ceroula [ si'ola > si'loa ]

·         Apócope - Ridículo [ ri'dikulu > ri'diku ]

·         Prótese - Juntar [Zû'taú > aZû'taú ]

·         Dissimilação - Manhã [ mâ'÷øã > mê'÷ã ]

 

2.2. Trabalhos Atuais

 

A nova leva de trabalhos sobre os aspectos fonético-fonológicos do falar do Ceará está ligada não só a pesquisas de caráter mais técnico-científico e, em alguns casos, serem Teses e Dissertações de Mestrado, tendo, por isto mesmo, alguns cuidados metodológicos mais apurados que os anteriores não tiveram, sem que isto lhes tire, contudo, o valor e a importância. Entre os trabalhos atuais destacaríamos o de Cláudia Nívea Roncarati de Souza (1988), o de José Auber Uchôa, (1996), o de Maria Silvana Militão de Alencar, (1977) e os de Maria do Socorro Silva de Aragão (1996-1997).

 

Esses trabalhos têm um corpus homogêneo, de falantes de pouca escolaridade, de zonas urbana e rural, homens e mulheres e de classe social de nível médio e baixo. Por se assemelharem quanto aos objetivos e ao tipo de análise, trataremos apenas de dois: o de RONCARATI (1988) e o de ARAGÃO (1996).

 

2.2.1. Cláudia Nívea Roncarati de Souza

 

Os trabalhos de Roncarati  e Aragão foram feitos a partir do corpus da pesquisa dos Dialetos Sociais Cearenses.

 

Em seu trabalho, a autora faz um histórico dos estudos sobre o enfraquecimento das fricativas sonoras, citando, inclusive, Aguiar e Seraine, por nós já referidos. Os objetivos de seu trabalho foram o de descobrir que contextos lingüísticos e pragmáticos determinam ou facilitam o enfraquecimento e ou apagamento das fricativas sonoras / v, z e Z /, observando, também,  o nível de estigmatização desses fenômenos no grupo social onde os informantes estão inseridos, servindo o teste de atitude lingüística para caracterizar e classificar os informantes em termos de escolaridade e posição social.

 

Em sua amostra, estabelece dois tipos de fatores que podem influenciar ou determinar o enfraquecimento e o apagamento das fricativas sonoras:

 

Ø      Fatores Sociais: sexo, escolaridade, idade, classe social, procedência (urbana, rural) e estigmatização.

Ø      Fatores Lingüísticos: distância da tonicidade, qualidade vocálica, consoante seguinte, usualidade do item lexical.

 

O corpus é assim constituído: 4066 casos de enfraquecimento das fricativas sonoras e 508 casos de apagamento dessas fricativas. Os resultados mostraram as seguintes conclusões:

 

Ø      Fatores Lingüísticos para o enfraquecimento e ou apagamento:

 

·         Natureza da vogal seguinte;

·          Natureza da consoante seguinte;

·          Presença do morfema do imperfeito - ava;

·          Distância da tonicidade.

 

Ø      Fatores Sociais que favorecem o enfraquecimento e ou apagamento:

 

·         Nível de formalidade: fala mais relaxada, mais rápida e menos monitorada, favorece o enfraquecimento e apagamento;

·         Itens lexicais mais usuais;

·         Relevância informacional e economia lingüística.

 

O trabalho desenha um amplo quadro do comportamento das consoantes / v, z , Z / no falar do Ceará, complementando, assim, o que já havia sido feito nesse sentido por outros autores.

 

2.2.2. Maria do Socorro Silva de Aragão

 

Dentre os trabalhos sobre o falar do Ceará escolhemos aquele que se refere ao fenômeno da palatalização, iotização e apagamento das consoantes / ´´ e ÷ø /.

 

Em determinados contextos, por facilidade ou relaxamento de articulação o / l /  e   o / ÷ø / podem perder o traço palatal, passando a ser articulados como alveolares  / l /  e / n /, como  iode / y / ou sofrer apagamento.

 

            As primeiras análises do fenômeno, indicam alguns fatos como os mostrados a seguir:

 

Ø      Apagamento do / ÷  >O /

 

            No corpus estudado há uma predominância, quase que absoluta, do apagamento do /÷ >O / antecedido da vogal fechada / i /, em sílaba nasal, restando, contudo, a nasalização, como no caso de : “ minha”  [‘mî÷a > ‘mîOa ] 

          

Ø      Permanência do / ´ /

 

            Fato marcante, também nesse contexto, é a permanência do / ´ / tanto em sílaba medial quanto em final, como no exemplo: “milho”  [ ‘mi´u ]

 

Ø      Iotização do /´ /

 

            Em seguida, em número de ocorrências, vem a iotização do / ´ /, em sílabas medial e final, como no exemplo: “trabalhador”  [ taba´a’doú > tabaya’do ]

 

Ø      Iotização do / ÷ /

 

O / ÷ /  também sofre iotização em sílabas medial e final, como no exemplo: “banho”  [‘bâ÷u > ‘bãy ]

 

CONCLUSÃO

 

Ao analisarmos os trabalhos sobre o falar do Ceará, nos aspectos fonético-fonológicos, percebemos a similaridade entre os fatos analisados no Ceará com os mesmos fatos, ou quase os mesmos, nos falares de outros estados nordestinos e mesmo de outras regiões do país.

 

Isto vem corroborar a idéia, por mim aceita, de que do ponto de vista fonético-fonológico os falares regionais do Nordeste não têm sua marca específica por serem do Nordeste ou de sua zona rural, mas têm as marcas diastráticas das variantes socioculturais de todo o país. Esta é a nossa hipótese, que estamos tentando confirmar, com trabalhos sobre os diferentes falares do português do Brasil.

 

BIBLIOGRAFIA

 

AGUIAR, Martins de. Fonética do português do Ceará. Revista do Instituto do Ceará. Fortaleza: 51 (51): 271-307, 1937.

ARAGÃO, M. do Socorro Silva de et al. A despalatalização e conseqüente iotização no falar de Fortaleza. XIV JORNADA DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DO GELNE.Resumos. Natal: UFRN, 30/10 a 01/11 de 1996.

_____. O uso das proparoxítonas no falar de Fortaleza. XV Jornada de Estudos Lingüísticos do GELNE. Resumos.Recife: UFPE, 25-28/11/1997.

MACAMBIRA, José Rebouças. “A estrutura silábica do português - língua culta de Fortaleza”, em: 2º Seminário de Estudos Sobre o Nordeste. Resumos. Salvador: UFBA, 1975.

MONTEIRO, José Lemos. Fontes bibliográficas para o estudo do falar cearense. Revista da Academia Cearense de Língua Portuguesa. Fortaleza, anos 9-11, n. 9, p. 68-94, 1988-1990.

RONCARATI, C.N.S. et al. Enfraquecimento das fricativas sonoras. Relatório Final: Projeto Dialetos Sociais Cearenses - Fortaleza: FINEP/FCPC/UFC, 1988.

SALES, Antônio.  Notas de linguagem (o falar cearense), em Almanaque do Estado do Ceará. Fortaleza: s.ed., 1924.

SERAINE, Florival. Relações entre níveis de norma na fala atual de Fortaleza. In: SERAINE, Florival. Linguagem e cultura - estudos e ensaios. Fortaleza: Secretaria de Cultura e Desporto, 1984.

UCHOA, J. A. A sinalização de limites e conexões sintagmáticas por elementos prosódicos no dialeto de Fortaleza. Fortaleza, 1996. Dissertação (Mestrado) - UFC.

 

 



[1] Trabalho apresentado na 57ª Reunião Anual da SBPC. Fortaleza, UECE 17 a 22 de julho de 2005.

[2] MONTEIRO, J.L. Fontes bibliográficas para o estudo do falar cearense. Revista da Academia Cearense de Língua Portuguesa. Fortaleza, anos 9-11, n. 9, p. 68-94, 1988-1990, p. 70.

 

[3] MONTEIRO, J.L. op. cit. p.87.