VARIAÇÃO DOS FONEMAS /r/ E /ɾ/ NO FALAR DE FORTALEZA

 

Maria Silvana Militão de Alencar – UFC

 

 

1 - Introdução

 

Nesse trabalho objetivamos analisar as marcas dialetais e sociais da língua falada na cidade de Fortaleza, destacando as diferentes realizações dos fonemas /r/ e /ɾ/. Apresentamos como objetivos específicos:

-          estudar os aspectos fonético-fonológicos dos fonemas /r/ e /ɾ/ no falar fortalezense;

-          estudar as relações sócio-dialetais existentes no uso dos fonemas /r e ɾ/  na língua falada em Fortaleza;

Partimos da hipótese de que o uso dos fonemas /r e ɾ/ no falar de Fortaleza contém marcas fonéticas, diatópicas e diastráticas que o distinguem de outros falares cearenses e regionais.

 

2 - Fundamentação Teórica

 

Nosso estudo tem por suporte as bases teórico-metodológicas da Fonética e da Fonologia, com abordagem da Dialetologia, ou seja, como estudo das variações diatópicas (regionais), e das diastráticas (sociais), portanto, da Sociolingüística.

A pesquisa sobre heterogeneidade lingüística não é recente em nosso país. Na primeira metade do século passado, nomes como Amadeu Amaral (O dialeto caipira – 1920), Antenor Nascentes (O linguajar carioca – 1922), Martinz de Aguiar (Repasse crítico da gramática portuguesa – 1922) entre outros, precisam ser lembrados como precursores dos estudos sobre a variedade brasileira, numa dimensão diatópica, sem, contudo esquecer a diastrática, já que visavam ao conhecimento do português de uma classe – dos analfabetos – considerada por eles, do ponto de vista lingüístico, a mais pura.

 Com o advento da Sociolingüística nos anos 60, houve um maior aprimoramento metodológico e Dialetologia e Sociolingüística ficaram tão próximas que se torna até difícil distinguir uma da outra. Da década de sessenta para cá, têm-se multiplicado nas universidades brasileiras vários projetos locais, regionais e nacionais que resultam no conhecimento mais diversificado da realidade lingüística. Além dos grandes projetos, muitas pesquisas sobre diversos fenômenos de variação do português falado no Brasil têm sido realizadas. É possível estabelecer uma ligação entre esses trabalhos e os diferentes processos de realização dos róticos em português. O fonema r presta-se muito bem para o estudo da variação em nossa língua, apresentando para isso, um alto índice de variantes que vão da vibrante (alveolar ou uvular) a uma fricativa (velar ou glotal) e, em posição de coda, sua variação articulatória poderá atingir o seu total apagamento em final da palavra.

Estudos sobre o r têm sido numerosos. De um lado, reunimos aqueles realizados por dialetólogos, filólogos e gramáticos, a exemplo de: Mendonça (1936), Marroquim (1945), Cunha (1968), Câmara Júnior (1970), Leite de Vasconcelos (1970), Amaral (1976), Silva Neto (1976), dentre outros. E do outro, os que seguem a orientação variacionista quantitativa laboviana (1994). Dentre eles, destacamos: Votre (1978) como pioneiro, com um estudo sobre a vibrante em posição final de palavra na fala de alfabetizados e universitários do Rio de Janeiro; Oliveira (1983) estuda a fala de habitantes em Belo Horizonte; Callou (1987) com a Tese de Doutorado marca o início de estudos acerca do /r/ na fala urbana culta do Rio de Janeiro; em estudos posteriores, juntamente com Moraes e Leite (1995), estuda a variação do /r/ em cinco capitais brasileiras (Porto Alegre, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador e Recife); e novamente (1998), somente no Rio de Janeiro; Marquardt (1997), sobre a fala do Rio Grande do Sul, há observações sobre o zero fonético em posição final; Oliveira (1999), sobre o apagamento do /r/ em Salvador; Monaretto (2000) sobre o apagamento da vibrante pós-vocálica nas capitais do Sul do Brasil (Porto Alegre, Curitiba, Florianópolis); Monaretto (2002) sobre a vibrante pós-vocálica em Porto Alegre; Oliveira (2002) com a Dissertação de Mestrado faz um estudo em Itaituba - PA; Da Hora (2003), estuda o enfraquecimento e apagamento dos róticos em João Pessoa – PB.

Tudo isto, para ressaltar, que embora estudiosos, de orientação diversa, tenham estudado o fenômeno dos róticos, ele não perde sua importância, sobretudo em uma pesquisa piloto. Uma vez que o processo tem-se mostrado bastante produtivo e já realizado em várias localidades do Brasil, nada nos impede de tentarmos delinear a realização deste fenômeno na grande região metropolitana de Fortaleza, onde pretendemos suprir esta lacuna e assim contribuir para um maior conhecimento da nossa língua.

 

2.1 - O fonema /r/ na língua portuguesa

 

O fonema /r/ do português proveio do rr latino (vibrante apical múltipla) que se opunha ao r (provavelmente “vibrante simples”: de uma só batida, “flap” ou “tap”). Vejamos a distribuição da “vibrante simples” e da “vibrante múltipla” segundo SILVA (1999: 160):

·         Contraste fonêmico entre vogais: caro/carro. O contraste fonêmico (ou seja, pares mínimos) entre estes dois tipos de R somente é atestado em posição intervocálica no interior da palavra: coro/corro; muro/murro; era/erra.

·         Outros ambientes

- seguindo consoante na mesma sílaba: prato (“r” fraco)

- início de palavra: rato

      - seguindo consoante em outra sílaba: Israel

- final de palavra: mar

- final de sílaba: carta

 

Segundo análises anteriores, foi constatado que o uso de variantes do r está relacionado à posição que ocupa na sílaba. Em posição de coda (interna ou externa) na palavra, por exemplo, vamos lidar com variações condicionadas a diferentes restrições que podem ser tanto sociais, quanto estruturais. Então, “em posição final externa constitui o ambiente onde o apagamento se dá mais freqüentemente”. (CALLOU, 1998: 63). Esta posição nos interessa particularmente, pois o nosso estudo se voltará basicamente para a análise do r em coda (interna e externa), destacando os fatores dialetais no realce de suas variantes.

A preocupação em estudar o fenômeno de apagamento do r em final de vocábulo em posição de coda externa, não é de hoje, o processo surgiu com o estigma de demarcador social da classe dos iletrados. CALLOU (1998: 61) diz que “... o processo, no século XVI, nas peças de Gil Vicente, era usado para singularizar o linguajar dos escravos”. E complementa: “O apagamento do R final tem sido considerado um caso de mudança de baixo para cima que, ao que tudo indica, já atingiu seu limite e é hoje uma variação estável, sem marca de classe social”. (p.72).

 

3 - Metodologia

 

 A metodologia deste trabalho segue as linhas gerais do Projeto Atlas Lingüístico do Brasil -  ALiB, com as devidas especificações.

O corpus constitui-se de entrevistas a partir de pesquisa de campo realizada na cidade de Fortaleza – CE. As entrevistas serão gravadas em fita cassete e serão feitas in loco, diretamente com cada um dos informantes, a seguir serão transcritas foneticamente. Os informantes – em número de 24 - devem ser naturais da cidade de Fortaleza, da qual não se tenham afastado por mais de 1/3 de suas vidas.

Instrumentos de pesquisa - Serão utilizados do Projeto ALiB: a Ficha da Localidade, a Ficha do Informante (com adaptações), o Questionário Fonético Fonológico (QFF) com 159 questões, o Questionário Semântico Lexical (QSL) com 207 itens, Temas para Discursos  Semidirigidos e a Parábola.

Foram controladas sete variáveis lingüísticas e três sociais. Como variáveis lingüísticas, levamos em consideração seis variantes, a saber:

vibrante alveolar (ou múltipla) – [r] - R1

tepe alveolar (ou simples)  - [ɾ ]  - R2

fricativa velar   - [X] –[ɣ] - R3

fricativa glotal – [h], [ɦ] - R4

vibrante uvular – [ɹ ] - R5

apagamento – [∅]

Ainda, como parte das variáveis lingüísticas levamos em consideração os contextos de realização dos fonemas /r/ e /ɾ/, com suas variações. Posteriormente, estas ocorrências serão distribuídas por quatro contextos:

- contexto pós-vocálico final - (maR, gostaR) – C1

- contexto pós-vocálico medial – (caRta) – C2

- contexto pré-vocálico inicial – (Rosa) – C3

- contexto intervocálico – (caRo/caRRo) – C4

As variáveis sociolingüísticas selecionadas foram: sexo, faixa etária e grau de escolaridade. Na variação diassexual ou diagenérica - os informantes distribuem-se igualmente pelos dois gêneros, perfazendo um total de 12 homens e 12 mulheres. Para análise da variação diageracional estão previstos informantes de duas faixas etárias: uma, de 18 a 30 anos, e outra, de 45 a 60 anos. Quanto ao grau de escolaridade - serão escolhidos dois tipos diferentes: 12 que tenham cursado até a 8ª série do Ensino Fundamental e 12 com Curso Superior completo.

O processo de codificação das variáveis sociais ficou assim:

- gênero – (homens têm números ímpares; mulheres, números pares).

- faixa etária I (18 a 30) – 01

- faixa etária II (45 a 60) – 02

- Ensino Fundamental – 03

-  Ensino Superior –04

A análise qualitativa dos dados será feita do ponto de vista fonético-fonológico, com abordagens dialetais e sociolingüísticas.

A análise quantitativa será feita através de freqüência e percentuais dos dados analisados qualitativos, apresentados em quadros e tabelas, que deverão comprovar estatisticamente a ocorrência de tais fatos. Dessa forma, ao analisarmos os dados da pesquisa, tentaremos, através de dados fonético-fonológicos, traçar o perfil sócio-dialetal do falar de Fortaleza.

 

4 - Conclusão

 

À guisa de conclusão, cabem aqui algumas observações: os dados que foram analisados pertencem a um corpus em elaboração, assim sendo, podemos afirmar que ao concluirmos todo o levantamento dos dados poderemos chegar a um resultado mais acurado sobre o fenômeno em estudo, no momento, com 50% de gravação. Depois, ressaltamos que após analisarmos outros trabalhos sobre o r e escutarmos alguns informantes, constatamos algumas tendências na fala do fortalezense que a aproximam de outros dialetos do Brasil, tais como: o apagamento em posição final é mais forte do que em posição medial, o que corrobora os resultados encontrados por CALLOU (1998) e MONARETTO (2002); dos fatores lingüísticos, o mais saliente é o contexto fonológico seguinte, que pode ser consoante, vogal ou pausa. A consoante favorece o apagamento, a vogal favorece a ocorrência do tepe no processo de ressilabificação (no ataque).

A realização do r em posição de coda em final de palavra no dialeto fortalezense corresponde ao descrito por CALLOU (1996) relativo a Recife, em que a variação do r se dá entre [h] e [Ø], tanto na posição interna como externa. Podemos constatar que o r, em final de vocábulo, está muito mais condicionado às restrições estruturais do que às sociais e, que tomando por base o falar fortalezense, observamos que há um certo número de realizações fonéticas mais ou menos comuns às de outras pesquisas já concluídas em outras regiões do Brasil, as quais constituem, decerto, o núcleo comum da nossa língua.

 

Referências Bibliográficas

 

ARAGÃO, Maria do S. S. de. Atlas Lingüístico da Paraíba.  Cartas léxicas e fonéticas. Brasília: UFPB/CNPq, 1984.

CALLOU, Dinah Maria Isensée et al. Variação e diferenciação dialetal: a pronúncia do /r/ no português do Brasil. In: KOCH, I. (org.). Gramática do português falado.   v. VI, 465-493. Campinas, UNICAMP,1996.

__________ ; MORAES, J.; LEITE, Y.Apagamento do R final no dialeto carioca: um estudo em tempo aparente e em tempo real. D.E.L.T.A.,  v. 14, n. esp., p. 61-72, 1998.

CÃMARA JR., J. M. Para o estudo da fonêmica portuguesa. Rio de Janeiro: Organização Simões, 1953.

__________ . Estrutura da língua portuguesa. Petrópolis, RJ: Vozes,1977.

DA HORA, Dermeval; COLLISCHONN, Gisela. Teoria Lingüística: fonologia e outros temas. João Pessoa: Universitária/UFPB, 2003.

MONARETTO, Valéria N. de Oliveira. O apagamento da vibrante pós-vocálica nas capitais do Sul do Brasil. Letras de Hoje, Porto Alegre, v. 35, n. 1, p. 275-284, mar. 2000.

__________ . A vibrante pós-vocálica em Porto Alegre. In: BISOL, L.; BRESCANCINI, C. Fonologia e variação: recortes do português brasileiro. Porto Alegra: EDIPUCRS, 2002.

OLIVEIRA, Marilúcia Barros de. Manutenção e apagamento do ® final de vocábulo na fala de Itaituba. ( Diss. de Mestrado). UFPA, 2002.

SILVA, Thaís Cristófaro. Fonética e Fonologia do português: roteiro de estudos e guia de exercícios. São Paulo: Contexto, 1999.