PROCESSOS DE SUBJETIVAÇÃO E RESISTÊNCIA NA
ENUNCIAÇÃO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA: O LUGAR DO OUTRO NAS DISCURSIVIDADES
ARGENTINA E BRASILEIRA.
ZOPPI-FONTANA, Mónica Graciela (Unicamp)
CELADA, María Teresa (USP)
A partir da Análise de Discurso de linha francesa,
exploramos duas cenas enunciativas efetivamente ocorridas com as autores do
texto, nas quais certas formulações pronunciadas por imigrantes argentinos
residentes no Brasil produzem efeitos de ruptura na relação estabelecida com o
interlocutor brasileiro, sinalizando um modo de dizer que não coincide com
aquele de posições discursivas delimitadas no interdiscurso específico da
formação social brasileira.
Estas cenas fazem parte de uma série de enunciações
recorrentes no Brasil, que ocorrem, em geral, em condições de produção vinculadas
a espaços institucionais de cunho jurídico-administrativo.
Na primeira dessas cenas, uma argentina
recém-chegada de Buenos Aires se dirige à Secretaria da faculdade para efetivar sua matrícula. Diante da demora para
ser atendida pelos funcionários presentes e da falta de explicações que
justificassem tal demora, a estrangeira pergunta: – Escuta, não tem nenhum empregado que possa me atender? Num texto
prévio (Celada, 1999), trabalhamos o impacto do significante empregado que irrompeu na cadeia:
sabemos que, em português brasileiro, essa designação seria improvável. Na
formulação que analisamos, se vincula ao significante “empleado” que, em
espanhol, refere ao vínculo empregatício e aos aspectos que ligam este aos
planos laboral e jurídico. Pela permeabilidade que existe entre as duas
línguas, esse significante “passou” do espanhol para o português brasileiro,
produzindo efeitos de confronto discursivo. Neste trabalho, exploramos outro
funcionamento marcante dessa formulação: a sua forma sintática em comparação
com as formas alternativas propostas por falantes brasileiros quando desafiados
a enunciar projetados imaginariamente naquela mesma situação. Suas formulações
seriam: – Tem alguém que possa me
atender? – Não tem ninguém aí para me
atender?
Se compararmos estas formulações com aquela
efetivamente produzida, percebemos que o sintagma nominal nenhum empregado
opera sobre as imagens dos interlocutores determinando-os e interpelando-os a
partir de um espaço de enunciação (Guimarães, 2002) em que os lugares
enunciativos estão desigualmente definidos por uma relação mediada por um
terceiro estruturante. Assim, designa-se o interlocutor como “funcionário”
(“empleado público”, na sua versão em espanhol), definido por sua inscrição em
um espaço institucional organizado por vínculos jurídico-administrativos. Deste
modo, a determinação de lugares produzida por esta designação, inscreve o
interlocutor, através do funcionamento das projeções imaginárias, em um sistema
de relações jurídico-administrativas abstractas, configurando a cena enunciativa dentro de um espaço de enunciação
regrado e organizado conforme uma deontologia própria, que nós vinculamos ao
que Gadet e Pêcheux (1984, p. 207) designam como sistema de “direito de
regulamentação”, que se caracteriza por funcionar conforme uma lógica dedutiva
que aplica leis gerais e abstratas a casos particulares e concretos.
Diferentemente, nas formulações alternativas
propostas por falantes brasileiros: Tem
alguém que possa me atender? – Não
tem ninguém aí para me atender?, a ausência de sintagmas nominais definidos
permite a aparição de formas morfossintáticas de indeterminação: alguém
que/ninguém para, o que produz efeitos de generalização e indefinição das
relações estabelecidas entre os interlocutores na cena enunciativa. No segundo
caso, o funcionamento da dupla negação (não/ninguém) e do deítico aí desloca a cena enunciativa na direção
contrária à da formulação originalmente produzida, projetando-a para um outro
espaço de enunciação, cuja organização responde a uma divisão diferente dos
modos de dizer. Desta maneira, a indeterminação que afeta os sintagmas nominais
produz como efeito a indefinição dos lugares enunciativos, ao tempo que o deíctico,
ao referir à concretude da cena enunciativa, produz como efeito a particularização
das relações nela instauradas. Apaga-se, assim, qualquer referência a um
terceiro estruturante, reduzindo as relações interlocutivas ao âmbito da
intersubjetividade pessoal, sem mediação e sem remissão a um sistema prévio e
abstrato de regulamentação.
Nas duas formulações propostas por falantes nativos
como próprias da discursividade brasileira, os locutores não ocupam, ao
enunciar, uma posição de sujeito de direito que, funcionando por cima dos
corpos e dos afetos, regule e medeie as relações estabelecidas com o
interlocutor (Calligaris, 1999). Pelo contrário, na formulação pronunciada pela
imigrante argentina, o locutor opera se inscrevendo em uma posição de sujeito a
partir da qual enuncia no pleno exercício de um direito de cidadania abstrato
que regula o dever fazer dos funcionários do Estado. A partir de um “ilusão de
exterioridade” (Zoppi-Fontana, 2004), que afeta a posição ocupada pelo locutor
e que opera como uma dobra que se volta sobre a enunciação, a voz e o olhar do
Estado atravessa a cena enunciativa e a constitui. Poderíamos dizer, então, que
a irrupção da designação nenhum empregado na cadeia sinaliza uma “forma
de estar na língua do brasileiro permanecendo na própria” (Orlandi, 1996).
A segunda cena acontece no IX Encontro Nacional da
ANPOLL realizado em Maceió em 2003. Trata-se, também, de uma cena envolvendo
funcionamentos jurídico-administrativos no âmbito acadêmico. No momento em que
uma mesa de trabalho estava concluíndo, nossa protagonista, também imigrante
argentina residente no Brasil, que estava na platéia assistindo ao debate de
encerramento, foi interpelada por um monitor: – Qual o seu nome, professora? Este segurava, em uma mão, um
conjunto de atestados a serem distribuídos, e, com a outra mão, apresentava à
docente uma lista para que ela a assinasse, registrando a recebimento do
atestado como expositora no congresso. Diante da demanda para assinar, a docente
– que ainda não fizera a referida apresentação –, tomada por uma contradição
ético-juridíca, responde: – Mas eu ainda
não falei...!
A partir do funcionamento do operador argumentativo mas
presente na formulação, podemos propor uma paráfrase desta que dê visibilidade
ao enunciado condicional hipotético que lhe serve de efeito de sustentação
(Pêcheux, 1975): “Se não fiz minha apresentação não posso/não devo receber
ainda o atestado nem assinar pela sua entrega antecipada”. Assim, aparece
explicitada a modalidade deôntica que atravessa a formulação, inscrevendo a
cena enunciativa em um espaço de enunciação organizado por um “dever fazer” que
remete a um procedimento jurídico-administrativo, constituído sobre a base de
um mandato ético-jurídico: “o modo como devem ser feitas as coisas”. Percebemos
nesta cena, como na anterior, a
inscrição do locutor em uma posição de sujeito determinada em relação a um
direito de regulamentação, cujas premissas e axiomas distribuem os direitos e,
sobretudo, os deveres, que configuram as relações interlocutivas. Novamente,
percebemos a presenção do lugar de um terceiro abstrato funcionando como
mediador/regulador/inibidor dos acordos subjetivos e pessoais que possam ser
estabelecidos entre os interlocutores na cena enunciativa. A reação do
interlocutor brasileiro face a formulação da imigrante argentina sinalizou,
mediante um gesto de perplexidade acompanhado de silêncio, que aquela ressalva,
na discursividade brasileira, produzia, no mínimo, um efeito de estranhamento.
O confronto discursivo aí instaurado opõe uma posição de sujeito que se
inscreve em uma modalidade do “dever fazer” (deóntica), que pressupõe uma
instãncia de regulação, a uma outra posição inscrita em uma modalidade do
“poder fazer” (de possibilidade), que supõe uma negociação in loco entre os
interlocutores. Ambas posições são, por sua vez, determinadas pela relação com
um espaço institucional. Os interlocutores, na sua enunciação, ocupam
desigualmente estas posições, (se) significando (n)as relações estabelecidas
imaginariamente na cena enunciativa.
Com as análises realizadas,
gostaríamos de propor uma descrição e uma interpretação diversas em relação às
explicações mais freqüentes oferecidas pela lingüística para os assim chamados
“malentendidos interculturais”. O quadro teórico da análise de discurso nos
permite compreender o efeito de estranhamento produzido pelas formulações
analisadas sobre os interlocutores brasileiros a partir do cruzamento na cena
enunciativa de diferentes posições de sujeito delimitadas em formas-sujeito
também distintas. Os dois modos de dizer descritos na análise das cenas são
efeito da inscrição/identificação do locutor com uma dessas posições
discursivas na sua enunciação, o que leva a equívocos na relação com o
interlocutor, inscrito em outra posição. Em outras palavras, trata-se de dois
processos de subjetivação diferentes que configuram não só a prática
enunciativa desses interlocutores, mas também e principalmente a sua própria
constituição enquanto sujeitos de linguagem, tomados na malha dos processos
históricos que significam uma determinada formação social. Isto permite
explicar porquê, mesmo tendo um bom domínio da língua outra na qual enunciam,
estes sujeitos continuam se significando em relação à forma-sujeto na qual se
constituíram como falantes de sua própria língua, movimento este de
identificação que deixa suas marcas nas formulações.
A partir das análises poderíamos, então, afirmar que
na formação social argentina, os espaços de enunciação e os falantes nele
constituídos estão determinados pelo funcionamento predominante de uma
forma-sujeito configurada conforme um “direito de regulamentação”, que supõe um
lugar de mediação/regulação abstrato das relações intersubjetivas, impondo seus
efeitos aos sujeitos “em total liberdade” (cf. Pêcheux, 1988). Diferentemente,
na formação social brasileira, os espaços de enunciação e seus falantes
estariam predominantemente determinados por uma forma-sujeito configurada
conforme um “direito casuístico ou interpessoal”, fundada sobre a materialidade
de cada caso particular e retendo, assim, o peso dos afetos e dos corpos para
além das regulações de uma lei abstrata de aplicação geral. Assim, explicamos o
funcionamento imaginário dos estereótipos que atribuem ao “jeitinho brasileiro”
um ethos cordial (Buarque de
Holanda, 1996) que se oporia à arrogância argentina e a seu anti-ethos
(Maingueneau, 2001): falar curto e
grosso.
Essas não-coincidências/confrontos nos processos de
subjetivação/identificação, pelo fato de comprometerem o efeito de inteligibilidade
e de coerência discursiva (Orlandi, 1996), produzem – nas cenas em que surgem –
o já referido efeito de estranhamento. Tomados pela forma-sujeito em que se
constituíram enquanto sujeitos de linguagem, estes sujeitos imigrantes, mesmos
imersos na língua do outro, continuam a enunciar a partir dos espaços de
enunciação da sua língua de origem.
Desta maneira, os processos discursivos de
determinação que preenchem o espaço da indeterminação característica do falar
brasileiro (nenhum empregado), produzindo a como efeito a definição estratificada
das relações interlocutivas estabelecidas na cena enunciativa, assim como os efeitos
de sustentação subjacentes à articulação sintática da formulação (Mas eu
ainda não falei=Se eu não falei ainda, não posso/devo receber o atestado),
que operam na orientação argumentativa dos enunciados, são as formas materiais
que sinalizam na superfície lingüística os movimentos de identificação/resistência
do sujeito que enuncia em língua estrangeira em relação à nova forma-sujeito
que é convocado a ocupar.
BUARQUE DE HOLANDA, S. (1996). Raízes
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Autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico. Petrópolis: Vozes.
PÊCHEUX, M. (1988). Semântica e
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Jurado Filho, Manoel Luiz Gonçalves Corrêa, Silvana M. Serrani.) Campinas: Ed. Unicamp (Original
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