POESIA ORAL: ROMANCEIRO E CANCIONEIRO TRADICIONAL POPULAR

 

Profª Drª Maria de Fátima Barbosa de Mesquita Batista

Universidade Federal da Paraíba

Programa de Pós-Graduação em Letras

Programa de Pesquisa em Literatura Popular

 

Inúmeros levantamentos, realizados desde a segunda metade do século passado, vêm comprovando que o Nordeste do Brasil tem se revelado muito rico quanto a seu cancioneiro e romanceiro (conjunto de cantigas e romances tradicionais populares).

O primeiro a se interessar pelo assunto foi Celso de Magalhães que fez uma recolha no Maranhão, Pernambuco e Bahia, publicando-a , em 1873, como artigo no jornal O Trabalho, em Recife, sob o título A poesia popular brasileira que foi editado por Braulio do Nascimento, em 1973, através da Biblioteca Nacional. Em 1874, o cearense José de Alencar publicou o Nosso Cancioneiro no qual incluía uma versão recriada a partir de diferentes romances do ciclo do gado. Em 1883, Sílvio Romero publicou, em Lisboa, a primeira edição dos Cantos populares do Brasil que se tornou uma obra de referência para os estudos na área, tendo levantado romances e cantigas orais em Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Ceará, Bahia e Rio de Janeiro. A edição brasileira dos seus Cantos aconteceu catorze anos depois, em 1897. Em 1903, ocorreu a primeira edição do Cancioneiro do Norte de Rodrigues de Carvalho, levantado principalmente na Paraíba e em 1908, a edição do Folk-lore Pernambucano de Francisco Pereira da Costa, “o mais extenso, sólido e surpreendente documentário da cultura popular do nordeste”, utilizando-se a expressão do grande etnógrafo brasileiro Luís da Câmara Cascudo cuja admiração pelo trabalho vai mais além ao assegurar que “não existe na bibliografia brasileira realização comparável” (Apud COSTA, 1974). No espaço compreendido entre 1945 a 1947, Hélio Galvão dedicou-se ao estudo e levantamento de romances tradicionais no Rio Grande do Norte, realizando o trabalho Romanceiro pesquisa e estudo que seria publicado, em 1993, pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte: Fundação Cultural Hélio Galvão. Modernamente, convém citar, entre outros: O Folclore em Sergipe: Romanceiro, de Jackson da Silva Lima, trabalho que recebeu o prêmio Sílvio Romero do Instituto Nacional do Folclore em 1977; Romanceiro Alagoano de José Aloísio Vilela, publicado em 1983, em Maceió; O Romanceiro de Alcaçus, de Deífilo Gurgel, publicado em Natal/RN, em 1993; O Romanceiro ibérico na Bahia, de autoria conjunta de Doralice F. Xavier Alcoforado e Maria do Rosário Soares Albãn, publicado em 1996, além de inúmeros trabalhos realizados na Universidade Federal da Paraíba, como Esquindô-lê-lê: Cantigas de roda de Altimar e Cleide de Alencar Pimentel, publicado em 2004, que se destaca pela inclusão de um CD com a musicalização, o Cancioneiro da Paraíba de autoria conjunta de Idelette Santos e nossa, publicado em 1993, pela Editora Grafset (edição esgotada), que reúne duzentos e sessenta e três cantigas, distribuídas em oito classes temáticas (cantigas de brincar,de ninar, de folguedos, parlendas, cantigas religiosas, orações e crendices, aboios e toadas de vaquejada, cantos políticos e de costumes), e os inúmeros levantamentos que vimos realizando sobre o romanceiro na Paraíba e em Pernambuco. Atuamos, em princípio, nas regiões do agreste, litoral e cariri paraibano, que pouco tinha atraído a atenção dos estudiosos. Depois estendemos o levantamento a Pernambuco, obtendo o material com que pensamos em realizar o romanceiro daquele estado ou então juntarmos ao material recolhido na Paraíba para formar uma única coletânea com o título geral de Romanceiro na Paraíba e em Pernambuco. A partir desse material levantado, muitos trabalhos vêm sendo realizados no Programa de Pós-graduação em Letras do qual participam pesquisadores, bolsistas e voluntários e no Programa de Pesquisa e Literatura Popular que coordenamos.

Na análise dos textos populares, utilizamos a proposta teórica da Sociossemiótica e da Semiótica das Culturas, uma vez que o exame de uma Macrossemiótica, segundo Pais (1991: 452-461) permite entender que os “recortes culturais produzidos na estrutura fundamental sustentam a visão de mundo e os sistemas subjacentes aos discursos”. Consideramos, ainda, na catalogação do acervo popular, as propostas do Seminário Menéndez Pidal (Espanha: 1984) e a de Manuel da Costa Fontes (USA: 1997) intitulada o Índice Temático e Bibliográfico do Romanceiro Português e Brasileiro. Este trabalho constitui uma análise da figurativização da mulher no romanceiro e no cancioneiro popular, levantados no Nordeste do Brasil, de que examinamos uma amostragem constituída de dois tipos diferentes de romance/cantiga com suas variantes.

 

Quase sempre a mulher se instaura na narrativa como Sujeito de um dever para com o homem e sua família e não de um querer. Aliás o querer é desconsiderado, por isso não aflora. É um registro cultural importante porque mostra a situação de inferioridade da mulher perante o homem, sobretudo as mulheres solteiras que não têm o poder de escolher o destino, incluindo-se nele esposo, profissão e estilo de vida. O dever revela as seguintes figuras caracterizadoras da mulher: ser bela, cheirosa e prendada, o que atribui ao homem o poder para escolhê-la. Na cantiga A dança Carranquinha, o enunciador (provavelmente um homem ou educador) faz crer (seduz) à mulher que, ao dançar, ficará formosa, que a dança é deliciosa.

A dança da carranquinha

É uma dança deliciosa

Que põe o joelho em terra

E as moças ficam formosa” (SANTOS & BATISTA, 1993: 81)

 

E para que a mulher deve ficar formosa?  Para agradar o homem e ser escolhida por ele. A escolhida será sempre a mais bela, a mais cheirosa, a que dança melhor, a mais prendada. Isto acontece na maioria dos textos que tematizam a conquista/sedução. O romance As filhas da Condessa é um exemplo:

Esta fede, esta cheira     esta é a flor da laranjeira

Esta mesmo é que eu quero     para ser minha companheira

(BATISTA,2000: 45-67)

Senta aí bela menina    vai cozer e vai bordar

Que do céu há de cair     uma agulha e um dedá

Palmatória de marfim     para Deus te castigar

(BATISTA,2000: 45-67)

O ofício de bordadeira/costureira/fiadeira aparece, nesta cantiga, destinado às filhas por Deus ao enviar do céu os instrumentos necessários à sua realização, inclusive a palmatória a ser utilizada no castigo. O uso da mesma far-se-á pelo próprio Deus, pela mãe/mestra que já possui o poder natural para fazê-lo, ou ainda, pelo marido que adquire esse poder com o casamento.

“...para Deus te castigar ” (BATISTA,1999: 651)

“...palmatória está no torno para a mestra castigar ” (BATISTA,1999: 650)

“...para a mãe te castigar ” (BATISTA,1999: 641)

“...para o rei te castigar ” (BATISTA,1999: 647)

Causa-nos impacto a inclusão do lexema palmatória em um texto onde se fala de casamento, sobretudo quando menciona que Deus ou o próprio noivo irão usa-la para maltratar a jovem noiva. Conversando sobre o assunto com uma das nossas informantes, dela obtivemos uma informação que consideramos importante, embora não tenhamos encontrado nas obras consultadas nenhuma referência ao fato. Segundo a informante (Batista,2000, p41) fazia parte do enxoval da noiva uma palmatória de marfim, prata ou ouro (dependendo das posses da família) com a qual o pai ou responsável batia na noiva, antes que ela partisse para sua própria casa, a fim de fazê-la perder a vergonha. Após as palmadas, qualquer pedido que a noiva fizesse era-lhe concedido. Verdade ou não, o fato é que a palmatória existe em cinqüenta e três das versões estudadas e, em algumas, o fato de ser a mestra quem usaria a palmatória levou-nos a considerar que a jovem apanharia, não para perder a vergonha, mas caso não aprendesse o ofício de bordadeira ou costureira, imposto pela sua nova condição de dona de casa:

Senta aí, oh minha filha a costurar e a bordar

Que do céu há de cair agulha, linha de dedal

Que a palmatória está no torno para a mestra castigar. (Batista,2000: 41)

As versões que apresentem Deus como destinador do castigo deixam subjacente que a destinação do ofício não é divina, mas humana, provindo da própria sociedade, representada pela mãe/mestra, marido e rei que se utilizam do nome de Deus para fazer valer a força. Numa época em que não existia a máquina de costura, a mulher (sobretudo a jovem e saudável) constituía a força principal na produção do vestuário e, portanto, de grande utilidade para a sociedade.Sendo o trabalho desagradável e cansativo, atribui-se a Deus sua instituição, com o intuito de credibilizar a ordem, de relevar sua importância, de criar no receptor o temor em não obedecer e, principalmente, de isentar a sociedade de ter culpa na exploração da mulher. Recusando-se a fazer o trabalho, a jovem ficava consciente de estar desobedecendo ao próprio Deus. É uma forma clara de opressão, onde se retira a culpa do opressor para atribuí-la a Deus que é apresentado como carrasco, autoritário e vingativo.

BIBLIOGRAFIA

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