O LINGÜÍSTICO E O CULTURAL NOS CONTOS POPULARES
PARAIBANOS
Maria do
Socorro Silva de Aragão
UFC / UFPB
Introdução
As
relações entre língua, sociedade e cultura são tão íntimas que, muitas vezes,
torna-se difícil separar uma da outra ou dizer onde uma termina e a outra
começa. Além dessas relações, um outro fator entra em campo para também
introduzir dúvidas quanto à linguagem utilizada por um determinado grupo
sócio-cultural: é o fator geográfico, regional ou diatópico. Algumas variações,
ditas regionais, podem ser, muitas vezes, sociais; se sociais, podem ser
relativas aos falantes, que têm uma determinada marca diageracional,
diagenérica ou mesmo diafásica. Seriam todas essas variações próprias da
língua? Condicionadas pela sociedade? Ou teriam marcas de determinada cultura?
São dúvidas e questionamentos que surgem com freqüência quando se trabalha com
o inter-relacionamento entre língua, sociedade e cultura.
Ao
trabalharmos com a etnolingüística, que trata das relações língua-cultura, e
com a sociolingüística, que estuda as relações língua-sociedade, vemos que
essas ciências têm objetivos bem delimitados, mas têm, também, uma grande área
de intersecção.
A língua pode ser vista, analisada
ou interpretada sob diferentes ângulos ou aspectos, mas, concordamos com a
visão de Fribourg (1978, p. 104), quando diz:
La langue a été vue soit comme conception du monde [...], soit comme
révélatrice du mode de vie d’une societé et de ses valeurs culturelles, soit
comme révélatrice de la structure sociale et dês changements survenus au sien
de la societé, soit enfin comme une structure linguistique em corrélation avec
structures de la societé.
A
etnolingüística, assim, trata dessas relações entre a língua e a cultura na
sociedade a que pertencem os seus falantes. Neste contexto é importante
dizermos de que cultura estamos falando. Para isso, utilizaremos a definição de
Baylon (1991, p. 47) quando diz que “cultura
é o conjunto das práticas e dos comportamentos sociais que são inventados e
transmitidos dentro do grupo...” Segundo ele, ainda, “a língua pode revelar os modos de vida e os
valores culturais de uma sociedade...” (p. 50).
Deste
modo, as relações entre linguagem regional, sociedade e cultura, estudadas pela
dialetologia, sociolingüística e etnolingüística, fazem parte de um todo
integrado nos estudos lingüísticos.
Se
partirmos, como pretendemos, das variantes regionais, no caso, as
nordestinas, paraibanas, e
direcionarmos nosso olhar para a perspectiva cultural desses falares poderemos
afirmar que a linguagem utilizada nessas variações, marca ou é marcada pelos
aspectos socioculturais que revestem essas realizações.
Aqui
trataremos dos aspectos léxicos dos falares nordestinos, que são uma marca
dessa cultura regional.
1. As
Relações Entre Léxico, Sociedade e Cultura
Ao se
estudar a língua, os contextos socioculturais em que ela ocorre são elementos
básicos e, muitas vezes, determinantes de suas variações, explicando e
justificando fatos que apenas lingüisticamente seriam difíceis ou até
impossíveis de serem determinados.
No caso
específico do léxico, esta afirmação é ainda mais verdadeira pois toda a visão
de mundo, a ideologia, os sistemas de valores e as práticas socioculturais das
comunidades humanas são refletidos em seu léxico.
Segundo
Barbosa (1992, p. 1): “... o léxico
representa, por certo, o espaço privilegiado desse processo de produção,
acumulação, transformação e diferenciação desses sistemas de valores”.
Já para
Biderman (1978, p. 139): “O universo
semântico se estrutura em dois pólos opostos: o indivíduo e a sociedade. Dessa
tensão em movimento se origina o Léxico”.
Os itens
lexicais aqui estudados poderão mostrar a diversidade de visões de mundo, e como cada região elabora lexicalmente esse
universo.
Muitas são as definições e conceituações do Conto Popular:
História de Trancoso, História da Carochinha, ou qualquer outro nome que a ele
se dê. Podemos amalgamá-los dizendo que o Conto Popular é uma narrativa
tradicional em prosa, que se diz e se transmite oralmente, que tem por heróis
seres humanos e nela os elementos sobrenaturais ocupam posição secundária,
tendo forma solidamente estabelecida. Não possui temas sérios ou reflexões
filosóficas profundas, seus acontecimentos são fictícios e têm a finalidade de
divertir.
A origem
do Conto Popular perde-se na esteira do tempo, havendo muitas teorias sobre sua
origem, entre elas a de que ele tem uma raiz única, tendo surgido em um único
ponto e daí difundindo-se progressivamente; outra teoria diz, ao contrário, que
ele surgiu simultaneamente em várias regiões do planeta , sem qualquer ponto em
comum.
O Conto possui características que o distinguem das demais
narrativas populares. Entre essas características podemos lembrar: a
antigüidade, o anonimato da autoria, a capacidade de resistir ao tempo, o
processo de divulgação, a convivência do homem com o mágico-maravilhoso, a
ficcionalidade, sem compromisso com a realidade e o reflexo de situações
sociais.
A pesquisa sobre o Conto Popular, na Paraíba, teve uma série
de objetivos entre os quais destacamos: gerar novos mecanismos suplementares de ensino-aprendizagem para a
população rural, através da leitura de textos fundamentados na cultura e
conhecimento populares; motivar a criação de textos, a partir da realidade
sócio-econômico-cultural local;
difundir a cultura e a literatura populares manifestadas em suas
diversas formas, utilizando-se a escola como um veículo prioritário de
divulgação junto à comunidade.
O levantamento do material foi feito a partir do acervo do
PPLP por contadores de estórias de cinco municípios do Cariri e Sertão
paraibanos. Os informantes foram selecionados a partir de dois parâmetros
principais: serem originários das regiões pesquisadas: Cariri e Sertão
paraibanos e serem considerados contadores de estórias em sua comunidade.
Para este
trabalho, foram selecionados quinze informantes, narradores dos vinte e cinco
contos que constituem o corpus da pesquisa. Os termos, expressões e estruturas
frasais foram mantidos como falados originalmente pelo contador. Aqueles que
apresentam aspectos lingüístico-gramaticais passíveis de análises e
comentários, foram grifados e, posteriormente, comentados ou colocados no
glossário.
A análise léxico-semântica desses contos mostrou-nos a
importância da criatividade lexical de sua linguagem, fazendo surgir
neologismos pelo acréscimo de gramemas onde eles não deveriam aparecer
normalmente; atualizando semas virtuais do semema dos signos; usando lexias
simples com conotação diferente da denotação original; estruturando lexias
compostas e complexas com lexias simples já existentes, porém dando um novo
sentido à nova lexia estruturada; dando significado novo a signos velhos e
utilizando-se de formas dêiticas com significados próprios, no contexto da
narrativa.
A obra publicada a partir da pesquisa, O Conto Popular na Paraíba: Um Estudo
Lingüístico-Gramatical, foi distribuída
em Escolas Públicas de João Pessoa, com o objetivo de auxiliar os professores
na sua tarefa de motivação de seus alunos para o prazer da leitura, a partir de
textos populares.
3. Análise Léxico-Semântica dos Contos
Para
se falar de análise léxico-semântica é necessário que se defina o que seja
léxico e semântica. Uma das boas definições de léxico é dada por Maria Tereza
Biderman, que diz:
“Léxico
é um vasto universo de limites imprecisos e indefinidos. Abrange todo o
universo conceptual dessa língua. O sistema léxico é a somatória de toda a
experiência acumulada de uma sociedade
e do acervo de sua cultura através do tempo” (1).
Já
para o aspecto semântico podemos dizer com Greimas que ele é o “conteúdo total
atribuído a um significante” (2), ou com Pottier que diz que é “o conjunto dos
traços semânticos pertinentes” ou ainda, “as significações lexical e gramatical” (3).
Vejamos,
então, como se comportam os contos no seu aspecto de estruturação
léxico-semântica:
3.1. Uso
de gramemas protéticos como em:
3.1.1.
Adepois : “Adepois da troca do porco, eu troquei numa cabra.”
3.1.2. Afuzilado
: “...você vai afuzilado”
3.1.3.
Apois : “Apois vamo apostar !
3.1.4.
Assentar : “... agora vou assentar as porta e vou morar.”
3.2.
Atualização de semas virtuais do semema, dando conotações diferentes ao
significado do signo
3.2.1.
Acomodação (conciliação, acordo) :
“...resolveram fazer uma acomodação
para os dois ficar morando na casa”
3.2.2.
Arrumar (vestir , aprontar) : “Diga
à comadre... que arrume a criança...”
3.2.3.
Caçar (procurar cuidadosamente) :
“... e quando caçou a garrafa, a
negra tinha quebrado”
3.2.4.
Couro (peia, surra) : “... dá uma
surra nesse véio, couro no véio”
3.2.5.
Decente (bem vestido) : “... quando
acordava era todo decente”
3.3.
Uso de lexias compostas e complexas com sentido diferente de cada um dos seus
elementos constitutivos
3.3.1.
Estava bem (uso do imperfeito do
verbo estar com o advérbio bem, no sentido de deveria fazer algo : “Eu estava
bem de botar esse lesado pra morrer no meu lugar...”
3.3.2.
Bater o tempo (chegar) : “Bateu o tempo ruim, o dinheiro foi
indo...”
3.3.3.
Com um pedaço (Algum tempo, certo
espaço de tempo ): “Com um pedaço, ele disse...”
3.3.4.
Ensinamento no sentido (expressão
usada com o sentido de ter uma idéia) : “Aí veio aquele ensinamento no sentido.”
3.3.5.
Dar fé (perceber) : “Quando deu fé, lá vinha um cabra.”
3.4.
Uso de lexemas simples com função de continuidade da narrativa
3.4.1.
Agora (uso do advérbio em função da
continuidade da narrativa) : ” Agora o
senhor veja o que é que vai me dar.”
3.4.2.
Bom (continuidade da narrativa) : “Bom, entonce ele chegou na casa do
patrão...”
3.4.3.
E vai (continuidade da narrativa) : ”
Aí selaram o cavalo e vai ...
saíram.”
3.4.4.
Foi (continuidade da narrativa) : ” Foi, trabalhou outo ano.”
3.4.5.
Aí (continuidade da narrativa) : ” Aí só fez fechar o saco...”
3.5.
Significado diferente - conotação - para signos já existentes
3.5.1.
Bem (cerca de, aproximadamente) :
“... matou um touro com chifre que tinha bem
um metro.”
3.5.2.
Ciência (destino, sorte, sina) “...
ele mandou olhar a ciência dela...”
3.5.3.
Derrotar-uma moça (deflorar, ter
relações sexuais) : “Eu derrotei uma
moça e num quis, num pude casar...”
3.5.4.
Desabar (ir embora para longe,
fugir) : “Pegou o cavalo, foi embora e desabou.”
3.5.5.
Fazer (completar) : “... tinha
catorze filhos e a mulher com um bucho deste tamanho pra descansar outro e fazer os quinze”
3.6.
Uso de formas dêiticas com sentidos variados
3.6.1.
Assim (indicando tamanho) : “Aí
apareceu um frango grande e pelado, um bichão grande assim...”
3.6.2.
Deste tamanho (indicando tamanho e
volume) : “... com uma barba deste
tamanho ...”
3.6.3.
Esse fim de mundo (indicando tamanho
e volume ): “... o cabelo que era esse
fim de mundo, as unhas ...”
3.6.4.
Óia a lapa (indicando tamanho) : ” Óia a lapa de cobra.”
3.6.5. Aqui
(indicando tempo e contexto) : “... ele aqui
tirou os cuité...”
A pesquisa
sobre o conto Popular na Paraíba e a análise léxico-semântica desses contos nos
leva a concluir sobre a importância da criatividade lexical de sua linguagem,
fazendo surgir neologismos pelo acréscimo de gramemas onde eles não deveriam
aparecer normalmente; atualizando semas virtuais do semema dos signos; usando
lexias simples com conotação diferente da denotação original, com objetivos específicos para a narrativa;
estruturando lexias compostas e complexas com lexias simples já existentes,
porém dando um novo sentido à nova lexia estruturada; dando significado novo a
signos velhos e utilizando-se de formas dêiticas com significados próprios, no
contexto da narrativa.
Assim, a
linguagem do conto popular, sob o aspecto léxico-semântico utiliza-se de
processos de formação de palavras dos mais variados, desde o
fonético-fonológico, ao morfológico e ao semântico, enriquecendo, desta forma,
o léxico da língua e seu universo semântico.
A visão de
mundo, as crenças, as ideologias e as formas de expressão dessa sociedade com
sua cultura são transmitidas de geração a geração pela língua, falada e/ou
escrita, tornando evidente que a língua representa e guarda as marcas sociais e
culturais daquela comunidade que a utiliza.
ARAGÃO, M. do Socorro S.de et al. O conto popular na Paraíba - Um estudo lingüístico-gramatical. João Pessoa: UFPB,
1992.
BARBOSA, M. Aparecida. O
léxico e a produção da cultura: elementos
semânticos. I ENCONTRO DE ESTUDOS LINGÜÍSTICOS DE ASSIS. Anais. Assis; UNESP, 1993.
BAYLON,
C. Sociolinguistique: societé, langue et discours. Paris: Nathan, 1991.
BIDERMAN, M. Tereza. Teoria lingüística: lingüística
quantitativa e computacional. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos,
1978.
FISHMAN, Josua A. Sociolinguistique.
Paris: Nathan, 1971.
FRIBOURG, J. Vers l’ethnolinguistique. La Linguistique, v. 14, fasc.
2, 1978.
LEAL, José Carlos. A natureza do conto popular. Rio de Janeiro: Conquista,1985.
POTTIER,
Bernard. Théorie et analyse en
linguistique. Paris: Hachette,1987.
SIMONSEN, Michèle. O
conto popular. São Paulo: Martins Fontes, 1987.