O
ENSINO DE GRAMÁTICA COMO PRÁTICA DE REFLEXÃO SOBRE O USO LINGÜÍSTICO
Márcia Teixeira Nogueira (Universidade Federal do
Ceará)
Nos
últimos anos, o ensino de gramática vem sendo bastante discutido por
professores e pesquisadores das mais diferentes áreas de investigação em
Lingüística. Parece haver consenso em torno da crítica à ênfase que a escola
tradicionalmente dá à memorização de regras, formas e categorias, à prática de
exercícios de natureza puramente taxionômica, com frases descontextualizadas.
Parece não haver divergência quanto à sugestão de que as regularidades
lingüísticas sejam investigadas no uso concreto da língua, em amostras reais de
textos orais e escritos. Nesses posicionamentos,
nota-se uma mudança significativa na concepção de língua e linguagem: de
sistema de natureza homogênea, unificado em uma de suas variedades (a chamada norma padrão), portanto, símbolo de
unidade nacional e relicário do acervo de conhecimentos e cultura, a língua
passa a ser vista, nos Parâmetros Curriculares, como atividade sócio-cognitiva,
interacional, essencialmente heterogênea nas suas múltiplas variedades. De
sistema abstrato, ideal, autônomo a língua passa a ser concebida como atividade
concreta, indeterminada e sensível às variadas pressões do uso.
O que se observa, no entanto, é que tais mudanças paradigmáticas
na concepção de língua e linguagem, muitas vezes assumidas mais retórica do que
efetivamente, não parecem estar acompanhadas das conseqüentes mudanças na
concepção do que seja gramática.
Desse modo, soa bastante estranho ouvir dos mesmos que assumem, com veemência,
a heterogeneidade e a indeterminação da língua a afirmação de que, por exemplo,
a escola deve trabalhar os diferentes
usos, porque a língua portuguesa o aluno já sabe; porque a gramática, o aluno
já sabe. Ora, se a língua é
heterogênea e indeterminada e, portanto, varia de acordo com os usos; se a
gramática da língua não se confunde com a gramática de uma das suas variedades,
de que língua se está falando? Que concepção de língua se esconde numa
afirmação como esta, senão a de um sistema homogêneo? Afinal, que língua
portuguesa o aluno já sabe senão a que ele já usa efetivamente e, com efeito,
não precisa de instrução para aprender? Que concepção reducionista de gramática
está por trás dessa afirmação? Afinal, que gramática o aluno já domina? A que o
impede, por exemplo, de utilizar um artigo depois de um substantivo? De fato,
ele não precisa ir à escola para aprender regras que constituem o núcleo mais
rígido, fixo e automático da gramática, sem o qual não seria cognitivamente
viável o processamento lingüístico.
Para os que se fixaram na oposição entre gramática e discurso, o
que teve como repercussão a colocação da disciplina gramatical em franco
desprestígio na Academia e nas escolas, os Parâmetros Curriculares Nacionais
(os PCNs) sinalizam para uma relação de indissociabilidade natural entre os
recursos da língua e a interação verbal – ou seja, para um ensino que invista
na relação entre gramática e uso. Como, no entanto, aproximar do
“texto/discurso” uma concepção de gramática construída a partir de uma formação
essencialmente normativista, nos bancos escolares, ou imanentista, assentada,
por exemplo, nas aulas e em alguns manuais de introdução à Lingüística durante
os cursos de Letras?
A oposição entre gramática e discurso – muitas vezes constitutiva
dos espaços de atuação na Academia, mas insustentável do ponto de vista do uso
efetivo da linguagem - representa, a meu ver, um entrave para um ensino de
língua portuguesa que, de fato, contribua para a ampliação da competência discursiva
nos mais diferentes usos que alguém faça da língua materna.
Minha
participação nessa mesa-redonda sobre Gramática, Dicionário e Ensino de Língua
tem o objetivo de defender um ensino de gramática em que se desenvolva a
reflexão sobre os usos lingüísticos a partir dos mesmos pressupostos
funcionalistas que orientam a descrição e a análise no desenvolvimento da
ciência da linguagem. Nas diferentes vertentes funcionalistas, a língua é
considerada um instrumento de interação social. De acordo com Nichols (1984),
uma gramática funcional analisa a estrutura gramatical e a situação
comunicativa (propósito de cada evento de fala, seus participantes, contexto
discursivo). Para o funcionalista, a situação comunicativa motiva, restringe,
explica, ou, de outro modo, determina a estrutura gramatical.
Uma
crítica recorrente ao ensino tradicional de gramática diz respeito à
descontextualização das frases utilizadas nos exercícios de análise. Ao
qualificar o texto como unidade de uso e função, os Parâmetros Curriculares
assumem uma idéia já corrente nas formulações de gramática funcional. Cabe,
agora, apenas um reparo às práticas de análise lingüística que reduzem a
consideração da expressão lingüística, que é meio, à identificação de “traços”,
em vez de “processos lingüísticos”, engendrados por um sistema lingüístico
maleável, ajustável e sensível às diferentes demandas da interação verbal. Mais
do que a identificação de “traços lingüísticos”, o professor de língua precisa
familiarizar-se com a análise de processos básicos de constituição dos
enunciados, como a predicação, a referenciação, a modalização e a junção, que
respondem pela construção dos sentidos dos textos. Muitos estudos de orientação
funcionalista, ao investigarem o funcionamento de um desses processos ou a
inter-relação entre eles, permitem que se perceba a estreita relação entre gramática
e discurso, isto é, entre as opções lingüísticas e a situação de interação.