O
ATRASO E A NECESSIDADE: JORNALISMO CIENTÍFICO NO BRASIL
Marcelo
Leite
UNICAMP
Numa
frase famosa, Oscar Wilde acusa os jornalistas de negligenciarem a própria
cultura. Eis a irônica citação do jornalista e escritor inglês: “Há muita coisa
a dizer em favor do jornalismo moderno. Ao nos dar as opiniões dos incultos,
ele nos mantém em contato com a ignorância da comunidade. Ao fazer a crônica
cuidadosa dos eventos atuais da vida contemporânea, ele nos mostra quão pouca
importância tais eventos realmente têm. Ao discutir invariavelmente o
supérfluo, ele nos faz entender quais coisas são requisitos para cultura, e
quais não são”. É provável que muitos concordem com esse juízo cáustico sobre a
profissão jornalística, mas não seria o caso de concluir dele que o jornalismo
seja desnecessário, muito menos que o jornalismo científico seja desnecessário,
como parecem acreditar tantos pesquisadores da área de ciências naturais, ainda
que em número felizmente declinante.
A
parte que interessa da citação de Oscar Wilde, para o jornalismo científico e as
ciências naturais, é aquela que aponta para o pior dos sintomas de suas
respectivas crises: o fato de se afastarem progressivamente do meio em que
nasceram e do qual necessitam para vicejar – a cultura. Cultura
entendida aqui em sua acepção mais ampla, seja no sentido de conjunto de bens e
práticas simbólicos e materiais que caracterizam uma sociedade ou civilização,
seja no sentido daquela parcela que cada membro desse grupo consegue dominar ou
acumular, ao longo de sua própria biografia. Cabe ao indivíduo cultivar-se,
como se diz, ao menos naquelas sociedades complexas e diversificadas, como a
nossa, em que a diferenciação e a especialização forçam o comum das pessoas a
se afastarem do ideal iluminista de um saber enciclopédico. Ter cultura é ser
capaz de estabelecer relações e criar um sentido para os fatos e os
conhecimentos sobre o mundo à sua volta. Por mais que esse cultivo tenha se tornado uma tarefa impossível, no
escopo totalizante pretendido pelos enciclopedistas do século 18, é preciso
defendê-lo como um valor, algo a não ser abandonado, como um fim em
si mesmo, uma idéia reguladora, no sentido de Emmanuel Kant.
Renunciar ao ideal de uma cultura geral é
atrasar o relógio civilizatório para antes da era do Esclarecimento, quando o
desafio que se coloca para o nosso tempo é o de adiantar-se às suas piores
conseqüências, o de inventar o que poderia significar, nos dias de hoje, a prática da atitude
iluminista em sua essência mesma: crítica, ceticismo, antidogmatismo. Esta,
afinal, era a função do saber objetivo que importava organizar numa
enciclopédia de conhecimentos verificáveis sobre o mundo natural – libertá-lo
do dogma e da superstição, de todas as formas de mistificação. Hoje sabemos que
a própria prática científica pode enredar-se nas malhas da retórica e da
ideologia, mas ainda se resiste ativamente diante da idéia de que
não-cientistas – e muito menos jornalistas – possam dedicar-se a algo como uma crítica de ciência,
similar à universalmente aceita e bem-vinda crítica de arte. Refugiar-se entre
as muralhas da especialização e da competência estrita, porém, numa defesa
suicida da Autoridade da Ciência, é condenar-se a um atraso de mais de dois
séculos.
Sempre é possível, no entanto, aprender com os grandes mestres. O
título acima foi inspirado no livro O Acaso e
a Necessidade, de Jacques Monod, publicado em
1970, cinco anos depois de o cientista francês ganhar o Prêmio Nobel em
Medicina ou Fisiologia em companhia de François Jacob e André Lwoff, por seu
trabalho sobre o modelo operon de regulação da expressão gênica. O subtítulo da obra é “Ensaio sobre
a filosofia natural da biologia moderna”. Ler Monod, tantos anos depois, ainda
é uma dádiva. Como pode escrever tão bem um mero biólogo molecular? E pensar tão bem,
por mais que se discorde de alguns de seus juízos? Basta citá-lo:
“É
imprudente, hoje em dia, da parte de um homem de ciência, empregar a palavra
‘filosofia’, ainda que seja ‘[filosofia] natural’, no título ou mesmo no
subtítulo de uma obra. É garantia de vê-la acolhida com desconfiança pelos
homens de ciência e quando muito com condescendência pelos filósofos. Tenho uma
só desculpa, mas a considero legítima: o dever que se impõe aos homens de
ciência, hoje mais do que nunca, de pensar a sua disciplina no conjunto da
cultura moderna, para enriquecer não só os conhecimentos tecnicamente
importantes, mas também as idéias provenientes de sua ciência que eles possam
tomar por humanamente significativas. A própria ingenuidade de um olhar novo (como
o é sempre o da ciência) pode talvez esclarecer, como a luz de um novo dia,
problemas ancestrais.”
Na
média, o pesquisador brasileiro despreza a sabedoria de Monod. Falta à pesquisa
nacional um enraizamento mais profundo e ramificado na vida cultural do país,
em que a investigação científica apareça como um valor em si mesmo, a ser
sustentado em primeiro lugar pelo que representa de contribuição a uma obra
coletiva cosmopolita e civilizacional, além de seu aporte inevitável ao esforço
de desenvolvimento nacional. Ao apresentar-se perante a esfera pública apenas
como fonte de inovação, a pesquisa científica se barateia e subordina a uma
lógica alheia, a da rentabilidade imediata, exilando-se voluntariamente do seu
próprio território, a cultura.
Este
trabalho faz um convite à reflexão para a comunidade científica e para os
praticantes do jornalismo científico: Até que ponto estão de fato enraizadas na
sociedade e na cultura brasileiras as vitórias recentes que os pesquisadores
acreditam ter obtido no Congresso Nacional, na batalha pela liberação dos
alimentos transgênicos e das células-tronco embrionárias, com a aprovação da
nova Lei de Biossegurança? A comunidade científica tem forças para ganhar esta
e outras guerras no território da cultura, fazendo cabeças, ou continuará
confiante de que pode vencê-la em terreno estranho, fazendo lobby e fazendo
ministros?