AS VENTURAS E AVENTURAS DO OFÍCIO DA SOCIOLOGIA RURAL NO BRASIL CONTEMPORÂNEO. NARRATIVA DE UMA EXPERIÊNCIA.

 

Maria Aparecida de Moraes Silva*

 

A narrativa de minha trajetória será dividida em três blocos de questões. Primeiramente, apresentarei alguns pensadores que estão na base de minha formação científica. Em segundo lugar, farei algumas considerações sobre a situação atual da sociologia rural, particularmente no Brasil, e, em seguida, um conjunto de imagens que retratam os principais temas de pesquisas desenvolvidos por mim nesses últimos 30 anos.

                                                           I

Oficina é o lugar de transformação, lugar onde se pratica um ofício, isto é uma ocupação permanente de ordem intelectual ou não a qual envolve certos deveres ou encargos ou um pendor natural. O sociólogo norte-americano, Wright Mills na década de 1950 se reportava à ciência social como um ofício, como algo que faz parte da vida, e não simplesmente como tarefa a ser cumprida em virtude das exigências das instituições e agências financiadoras de pesquisa por meio de relatórios e publicações. Mills assim se referia ao cientista social como um artesão intelectual.

O ofício do artesão pressupõe a imersão na totalidade do processo de trabalho. Concepção, escolha do material a ser trabalhado, escolha das ferramentas a serem utilizadas, são indícios necessários do savoir faire, isto é do métier do artesão, cujo produto é pautado pela marca de seu criador e definido por sua qualidade. Não se trata, portanto, de um trabalho alienado, fragmentado, medido pelo quantitativo e pelas marcas da impessoalidade e generalidade. Em suma, não se trata de uma mercadoria.

Nesse sentido, pode-se falar numa verdadeira fusão entre vida pessoal e intelectual quando se trata do ofício, particularmente do artesanato científico. O produto científico não se faz apenas com uma pesquisa empírica. Compõe-se, antes de tudo de muitos estudos, reflexões, diálogos, que, ao longo do tempo, vão se constituindo no habitus científico. Segundo Bourdieu, o habitus científico é uma regra, ou um modus operandi científico. É interessante ressaltar que o artesão, ao mesmo tempo em que cria seu produto o faz mediante a transmissão do conhecimento a seus discípulos.

Estas reflexões sugerem que a teoria e a epistemologia não podem ser congeladas e apartadas da prática. Elas se desenvolvem no decorrer do processo da criação. Teoria e epistemologia não podem ser consideradas como catálogo de preceitos. Logo, a teoria não pode estar separada da metodologia, que seria o caminho por meio do qual o objeto do conhecimento é desvendado.

Um outro elemento que faz parte deste conjunto reflexivo é a imaginação sociológica, que  segundo Mills, consiste na capacidade de passar de uma perspectiva a outra e neste processo estabelecer uma visão adequada de uma sociedade total de seus componentes. Para este autor, é esta imaginação que distingue o cientista social do simples técnico. Os técnicos recebem treinamento, talvez a capacitação, termo bastante em voga nos dias de hoje. A imaginação sociológica não pode passar por treinamento. Sua essência é a combinação de idéias, que não supúnhamos combináveis até então. Pressupõe o novo, a descoberta, a aventura, a originalidade.

Para Mills, o ofício do sociólogo poderia ser assim resumido:

-          Evitar qualquer norma de procedimento rígida. Desenvolver sempre a imaginação sociológica. Considerar o real como relacional. Evitar o fetichismo da técnica e do método.

-          Evitar a singularidade bizantina dos conceitos. Usar sempre uma linguagem clara tanto para a escrita como para a fala.

-          Examinar em detalhe os pequenos fatos e suas relações e os grandes acontecimentos;

-          Evitar as especializações arbitrárias dos departamentos acadêmicos. Levar em conta as técnicas utilizadas por outras disciplinas, portanto, atuar, no linguajar hodierno, segundo a interdisciplinaridade;

-          Reportar-se à história, ao passado. Entender o passado não como algo morto, acabado, porém como algo que pode ser revificado, recontado, reescrito;

-          Compreender os homens como sujeitos, como agentes históricos e sociais, levando –se em conta a situação destes sujeitos no contexto das estruturas sociais vigentes;

-          “Não devemos permitir que as questões públicas, tais como as oficialmente formuladas, nem as preocupações privadas determinem os problemas que estudamos. Acima de tudo não devemos abrir mão de nossa autonomia moral e política em favor de partidos políticos ou outros setores da sociedade” (p. 243).

Minha prática científica ao longo destes anos procurou se orientar por estes ensinamentos. Minha formação sociológica foi profundamente marcada pela leitura dos clássicos, sobretudo, K. Marx, algo que se aprofundou nos cursos de pós-graduação desenvolvidos na França, durante o período de 1976-1980. Entretanto, nunca perdi de vista a existência dos sujeitos e a das estruturas sociais. Jamais, concebi o sujeito abstrato, capaz de tudo, e também seu contrário, ou seja, o definhamento do sujeito em razão do peso das estruturas.

A orientação seguida pautou-se na concepção de que os sujeitos fazem a história, porém em condições determinadas. Assim sendo, muitos outros pensadores compuseram a cesta de minhas reflexões. Dentre eles, ressalto, Edward Paul Thompson  e o filósofo alemão, W. Benjamin, cujas orientações iniciais são fundamentadas pelo materialismo histórico. As idéias destes pensadores me foram essenciais para o entendimento da história enquanto processo e das diferentes temporalidades enquanto matérias-primas da experiência humana.

Assim resumo em linhas bem gerais, as bases de minha prática científica:

-          Da sociologia de W. Mills e P. Bourdieu, aprendi que a sociologia é um ofício  e não uma mera profissão ou ocupação, que pode ser transmitido a partir da liberdade de pensamento, das venturas e aventuras da descoberta e da proibição de proibir, ou seja do verdadeiro significado da imaginação sociológica. E mais ainda. O significado da sociologia crítica. O afastamento da sociologia instrumental, técnica, feita sob encomenda e posta a serviço de outros interesses existentes na sociedade, quer sejam as classes dominantes, quer sejam representantes de outros segmentos sociais. Em outros termos, sempre me coloquei esta pergunta: Para que serve e a quem serve a sociologia?

-           Do materialismo histórico, aprendi que a sociedade capitalista é caracterizada pela reificação das relações sociais, havendo a necessidade da compreensão de sua complexidade, a fim de que os elementos ideológicos sejam revelados e as máscaras sejam removidas;

-   Da Teoria crítica, aprendi a importância das experiências dos sujeitos, da cultura e da memória no processo de reconstrução das identidades individuais e sociais. Aprendi também que a verdadeira história é aquela que procede a varredura do passado a contrapelo, isto é, no sentido contrário daquele trilhado pela história oficial que nada mais é do que a história das classes dominantes.

                                               II

Torna-se evidente que não tenho pretensões de promover uma discussão sobre a sociologia rural no Brasil contemporâneo, algo que não caberia neste espaço de tempo e que já foi realizado por outros autores em outros momentos, dentre eles, cabe citar o professor José de Souza Martins, no livro, Sobre o Modo capitalista de pensar, José Vicente Tavares dos Santos no artigo sobre os processos sociais agrários. Contudo, retomarei, com o mesmo intuito anterior, alguns pensadores que contribuíram para a formação do meu habitus de socióloga rural.

Aqui, retomo uma das idéias acima expostas, sobre a crítica à especialidade das disciplinas acadêmicas, feita por W. Mills. Se se concebe a realidade social como relacional, torna-se evidente que a especialização ou até mesmo a fragmentação impostas pelos preceitos acadêmicos atrofiam o ato do conhecimento, conduzindo-o ao positivismo, ao empiriricismo descritivo ou ao empirismo abstrato, a-histórico. Esta assertiva leva ao questionamento da sociologia rural, enquanto uma das especialidades da sociologia, que por sua vez, é uma das especialidades das ciências sociais, que por sua vez, é uma das especialidades das ciências humanas e assim por diante.

Acredito que esta é uma questão que, de certa forma, tem sido contornada pelas atuais discussões sobre a interdisciplinaridade, muldidisciplinaridade e transdisciplinaridade. De qualquer forma, as nominações das distintas especialidades continuam existindo, apesar do avanço dos debates acadêmicos. 

Admitindo a existência da sociologia rural, o que é importante frisar não é a definição do rural em si mesmo, mas a idéia de que a própria noção de rural é elaborada a partir de determinadas condições sociais. O rural é parte de uma maneira de construção social da realidade. Sabemos que as ciências sociais recebem do mundo social que elas estudam os problemas que levantam a respeito dele. Neste sentido, o próprio nascimento da sociologia se observou num momento em que os problemas sociais relativos à emigração do campo para as cidades se impuseram como objeto de estudos e também como necessidade de tomadas de decisões por parte do Estado para a preservação do status quo. Os estudos de Durkheim, referentes à anomia, à passagem da solidariedade mecânica para a solidariedade orgânica, os estudos de Engels sobre a situação da classe trabalhadora na Inglaterra, além de várias passagens da obra de Marx, sem contar a situação em outros países, são exemplos dos problemas sociais criados com o processo de industrialização, problemas estes rurais e urbanos.  Tais problemas foram socialmente produzidos num trabalho coletivo de construção da realidade social. Podemos tomar como exemplo a pobreza. Num primeiro instante, observa-se a existência de indivíduos pobres e, em seguida, a passagem dos casos particulares para o coletivo, para o social.

Muito embora, o nascimento da sociologia se reporte à cidade, ou aos problemas urbanos, na realidade, os problemas rurais nunca deixaram de existir. Em muitos momentos, eles foram minimizados ou até mesmo ofuscados em função da hegemonia da cidade sobre o campo. Em outros, eles foram apreendidos a partir da dicotomia cidade-campo, dicotomia que refletia esta dominação, na medida em que o rural era identificado ao atraso, ao tradicional, portanto o contrário do progresso e da industrialização.

No que tange à realidade brasileira, sobretudo a partir das décadas de 1950, quando se observou o início da grande emigração do campo para as cidades, algumas análises priorizaram a dicotomia, enquanto outras a criticavam. O trabalho citado de José de Souza Martins retoma esta discussão situando-a em termos da ambigüidade que acompanha o surgimento da sociologia. Partindo do pressuposto de que em vários momentos a sociologia serviu a interesses das classes sociais dominantes, ela se transformou numa ciência instrumental, de natureza técnica, deixando de lado seu caráter de ciência crítica. Reafirma a idéia de que o rural não é uma ficção ou mistificação, mas produto necessário de um modo de construir a realidade social. Portanto uma especialidade, no caso, a sociologia rural deve enfocar processos sociais, mas referidos à totalidade concreta que lhes dá sentido.

A sociologia rural não deve se reduzir apenas a um campo parcelado de estudos, muitas vezes reduzido ao território físico, porém ela, ao mesmo tempo, que incorpora o rural que ela constrói, ela própria é objeto de conhecimento (Martins). A realidade rural não deve ser tratada como concepções absolutas, fechadas em si mesmas, mas como concepções que pressupõem a análise do conhecimento. Esta postura permitirá, por um lado, a análise do objeto rural, concreto, considerado em sua multiplicidade do diverso. Ora, se o concreto é múltiplo e diverso, a dicotomia campo-cidade é posta fora do lugar.

No que tange às reflexões mais recentes em torno dos temas rurais – novo rural, novas ruralidades, território, pluriatividade, sustentabilidade etc. -, elas englobam, por um lado, análises provenientes de várias galerias do conhecimento, tais como as ciências sociais, as ciências ambientais, a economia, a geografia, a história, a educação, a psicologia. Por outro lado, estes temas, considerados novos, na realidade, eles fazem parte da história social dos problemas, dos objetos e dos instrumentos de pensamento, isto é, do trabalho de construção da realidade social que se verifica no próprio seio do mundo social. Cada vez mais, é preciso tornar-se vigilante em relação aos problemas construídos pelo mundo social. Chamo a atenção para este fato, propondo a ruptura ou a releitura dos problemas. Muitas vezes, a instrumentalização das ciências se opera a partir de mecanismos indiretos como as agências financiadoras nacionais e internacionais e, assim sendo, os produtos do trabalho científico seriam apropriados por interesses políticos e ideológicos. Haveria uma verdadeira cooptação, ou nas palavras de H. Lefebvre, um “audacioso rapto ideológico”.

No que se refere aos temas ambientais, o financiamento de pesquisas provenientes de agências privadas e estatais, nacionais e internacionais se enquadra nos propósitos da reprodução da ordem global capitalista. As unidades de conservação, as estações ecológicas representam verdadeiros nichos de preservação ambiental em meio à devastação e destruição de milhares de hectares da floresta amazônica nos dias de hoje. Para tomar outro exemplo, enquanto milhões de toneladas de metros cúbicos de gás carbônico são lançados à atmosfera em virtude das queimadas durante o corte da cana no estado de São Paulo, o governo investe em algumas unidades de conservação ambiental, sem levar em conta o desastre ecológico que a cultura canavieira representa para esta região. Ao contrário, as leis que regulamentavam as queimadas até o ano de 2005 foram transpostas para o ano de 2030.

Vale a pena citar outros exemplos de cooptação ou  “rapto ideológico”:

-          A noção moderna de trabalho escravo, segundo a OIT. Esta noção ofusca os casos reais de escravidão na medida em que não leva em conta as peias invisíveis da escravidão moderna.

-          Os temas “esquecidos ou escondidos”: os trabalhadores rurais assalariados. Sujeitos históricos até meados de 1980, vêm suas luzes se apagando a partir de então. A estrutura do agribusiness, comandada pelas máquinas, colocou no ostracismo a classe dos trabalhadores assalariados, compostos em boa parte por migrantes nordestinos e de outras regiões pobres do país para as áreas ricas, sobretudo São Paulo. Os interesses políticos e ideológicos do agribusiness ofuscaram a presença dos trabalhadores. Este fato também ocorreu na sociologia rural. Os trabalhadores  também deixaram de ser problema, objeto de estudo.

Estes três exemplos nos colocam questões sobre a história dos problemas a serem estudados por uma sociologia rural crítica.

                                                           III

  Com estas observações adentro a parte final de minha exposição acerca do produto do meu ofício, minhas pesquisas na sociologia rural. (Foram apresentados vários slides sobre as distintas pesquisas desenvolvidas durante estes anos). A metodologia abarca uma multiplicidade de técnicas: história oral, fotos, documentos, observação participante, diálogos etc. As temáticas são voltadas ao mundo do trabalho: homens, mulheres, crianças, vida cotidiana; cidades-dormitórios; memória; desenraizamento cultural; migração; gênero; raça/etnia. Os universos empíricos das pesquisas são: região de Ribeirão Preto/SP, Vale do Jequitinhonha/MG, interior da Bahia, interior da Paraíba e alguma usinas de cana-de-açúcar da Zona da Mata de Pernambuco.

 

BIBLIOGRAFIA

BOURDIEU, P. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989

LEFEBVRE, H. Problemas de sociologia rural. In: MARTINS, J. S. Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 144-163.

 MARTINS, J.S. As coisas no lugar. In: MARTINS, J. S. Introdução crítica à sociologia rural. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 11-40.

 MILLS, C. W. A imaginação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar editores, 1982.

SILVA, M. A .M. Errantes do fim do século. São Paulo: Edunesp, 1999.

 

* Professora colaboradora da UNESP/PP e visitante do PPG/Geografia/USP.

Pesquisadora do CNPq