PESQUISAS
COM CÉLULAS-TRONCO EMBRIONÁRIAS NO BRASIL
Lygia da
Veiga Pereira (*)
“Dra. Lygia, com a aprovação do Projeto de Lei de
Biossegurança pela câmara dos Deputados, quantos pacientes sairão das filas de
transplantes?”. A pergunta feita em
entrevista ao vivo, no dia seguinte da aprovação do uso de embriões humanos
para a extração de células-tronco (CTs) embrionárias, sintetizava toda a
expectativa que a luta por esta aprovação gerou no último ano. “Nenhum...”, respondi. Nenhum hoje, nenhum até mesmo nos próximos
anos. Mas quem sabe muitos no longo
prazo, agora que podemos trabalhar com CTs embrionárias humanas no Brasil. Talvez um certo sensacionalismo faça parte
do jogo, e tenha sido importante para mobilizar a sociedade e os parlamentares
e levar à aprovação do PL de Biossegurança.
Mas agora que a poeira baixou, quais são as reais possibilidades das CTs
embrionárias?
As CTs embrionárias são o tipo mais versátil de CTs
até hoje identificadas em mamíferos.
Enquanto as CTs derivadas da medula óssea ou do sangue de cordão
umbilical conseguem se transformar em somente alguns, as CTs embrionárias
possuem a formidável capacidade de dar origem a todos os tecidos do corpo. Estas células não são uma novidade da
ciência – desde a década de 1980 faz-se pesquisas com as CTs embrionárias de
camundongos. Trabalhando com elas,
descobrimos como multiplicá-las e transformá-las no laboratório em células da
medula óssea, do músculo cardíaco, em neurônios, entre outras. E mais: quando transplantadas em animais
doentes, estas células derivadas das CTs embrionárias foram capazes de aliviar
os sintomas de diversas doenças, desde leucemia e doença de Parkinson até
paralisia causada por trauma da medula espinhal.
Em
1998 surgiram as primeiras linhagens de CTs embrionárias humanas, e junto com
elas a enorme expectativa de seu uso terapêutico. Porém, antes de começarmos testes clínicos injetando CTs
embrionárias em seres humanos, temos algumas questões fundamentais que devem
ser resolvidas.
A
primeira diz respeito à segurança dessas células. Quando injetadas em seu estado nativo em camundongos, as CTs
embrionárias podem formar teratomas.
Assim, antes de injetarmos estas células no paciente (seja ele um
camundongo ou uma pessoa), temos que primeiro induzi-las no laboratório a se
transformar no tipo celular que nos interessa.
Caso contrário, no organismo elas se multiplicam e podem se diferenciar
descontroladamente formando tumores.
Uma
segunda questão importantíssima diz respeito à compatibilidade entre as CTs
embrionárias e o paciente. Ora, em
qualquer transplante é necessário existir uma compatibilidade entre doador e
receptor para que o órgão não seja rejeitado.
O mesmo deve acontecer com um transplante de CTs embrionárias. Como garantir que teremos CTs embrionárias
compatíveis com todos os pacientes? Uma
forma seria criar um banco dessas células, cada uma derivada de um embrião diferente,
e torcer para encontrar uma compatível com o paciente. Porém, nossa experiência com bancos de
medula óssea demonstrou que isso é extremamente difícil de se conseguir.
Uma
alternativa seria então criar CTs embrionárias “sob medida”, ou seja,
geneticamente idênticas ao paciente.
Com as técnicas de clonagem, podemos criar um embrião clonado do
paciente, e dele extrair as CTs embrionárias.
Estas poderiam então gerar tecidos 100% compatíveis com o paciente. Esta técnica chama-se clonagem terapêutica,
e foi realizada pela primeira vez em seres humanos na Coréia no início de 2004.
É importante ressaltar que apesar da clonagem
terapêutica resolver a questão da compatibilidade das CTs embrionárias,
infelizmente ela não poderia ser utilizada em indivíduos com doenças
genéticas... As CTs embrionárias
geradas a partir das células destes pacientes também carregariam a doença, e
por isso não seriam capazes de gerar tecidos sadios para transplante... Assim, para o tratamento de doenças
genéticas com CTs - sejam embrionárias, da medula ou do sangue do cordão, a
melhor alternativa é conseguir um doador aparentado, que tem maior chance de
ser compatível com o paciente.
E
no Brasil, como andam as pesquisas com as CTs embrionárias? Em 1999, com o financiamento da FAPESP,
nosso grupo estabeleceu as primeiras linhagens de CTs embrionárias de camundongo
totalmente “made in Brasil”, implantando a tecnologia no país e a
disponibilizando para outros grupos de pesquisa. Atualmente, pelo menos cinco grupos trabalham com estas células,
estudando sua capacidade de transformação em diferentes tecidos, e já estão
capacitados a trabalhar com as CTs embrionárias humanas - só dependiam da
aprovação da Lei de Biossegurança.
Provavelmente com toda a discussão em torno destas células, outros
grupos de pesquisa se interessarão por trabalhar com elas. Para que estas pesquisas avancem no país,
será fundamental um financiamento consistente por parte dos governos Estaduais
e do governo Federal.
Quanto
à clonagem terapêutica, a colaboração entre grupos que fazem clonagem animal e
aqueles que trabalham com CTs embrionárias poderia tornar esta prática uma
realidade no país. Porém, como
resultado das negociações envolvidas na aprovação do PL de Biossegurança, este
proíbe a clonagem terapêutica. Não tem
problema, a conquista do direito de utilizar embriões congelados para pesquisa
foi um primeiro e importantíssimo passo – quem sabe em uma segunda rodada a
clonagem terapêutica possa ser re-negociada?
E
enquanto não podemos utilizá-las como agente terapêutico, temos muito a
aprender com as CTs embrionárias. Ao
desvendarmos os mecanismos envolvidos em sua capacidade de se transformar em
qualquer tipo de célula, aprendemos sobre a biologia do ser humano - esses
conhecimentos básicos trarão ao longo prazo grande benefícios à saúde humana.
Em
conclusão, o uso terapêutico da CTs embrionárias ainda está longe de se tornar
uma realidade, tanto no Brasil quanto no mundo todo. Porém, para que exista alguma chance disso um dia acontecer,
precisamos pesquisar – e foi este direito que adquirimos esta semana, passando
de meros observadores do desenvolvimento de uma área promissora da medicina
para jogadores muito competitivos.
Afinal de contas, as pesquisas com CTs de medula e de cordão umbilical
no Brasil são motivo de orgulho nacional.
Agora poderemos ter o mesmo desempenho com as CTs embrionárias.
(*) Profa. Livre Docente e chefe do Laboratório de Genética Molecular do Depto. Genética e Biologia Evolutiva, Instituto de Biociências, USP.