Turismo: prática social de apropriação e de dominação de territórios
Profª. Drª. Luzia
Neide Coriolano
Universidade Estadual
do Ceará
Faculdade Grande
Fortaleza
O turismo é atividade produtiva
moderna que reproduz a organização desigual e combinada dos territórios
capitalistas, sendo absorvido com maneiras diferenciadas pelas culturas e modos
de produção locais. No âmbito da nova dinâmica da acumulação capitalista, responde
às crises globais e ampliadas do capital mundial, submetendo diretamente o Estado
em favor do mercado, embora, e aos poucos, a sociedade civil de vários lugares
descubra estratégias de beneficiar-se economicamente com ele, ou a partir dele.
Como serviço de suporte à recuperação do trabalho humano, possibilita o avanço
da exploração do trabalho industrial, comercial e financeiro, nos diversos
mercados internacionais. É o lazer de viagem, elitizado, transformado em
mercadoria, invenção da sociedade de consumo. Forja respostas às necessidades humanas,
mas atende especialmente ao capital. Fenômeno próprio das classes ricas que
podem comprar lazer, o turismo atinge todos os continentes e a muitos lugares
periféricos. Estendeu seu raio de ação aos lugares tidos como subdesenvolvidos
e às classes pobres, que passaram não a usufruir, mas a produzir serviços
turísticos, pois a injustiça social e a desigualdade não foram eliminadas, são
próprias do capitalismo. Enquanto prática social é também econômica, política, cultural
e educativa, envolvendo relações sociais e de poder entre residentes e turistas,
produtores e consumidores. O turismo é produto simultâneo do ócio e do trabalho.
É produto do modo de viver contemporâneo, cujos serviços criam formas
confortáveis e prazerosas de viver, restritas a poucos. É possível constatar
logísticas globais sob o comando de corporações e bancos internacionais que se
sobrepõem à autonomia dos governos estaduais e municipais, redirecionando suas ações
para atender interesses globais, embora com especificidades regionais. A
riqueza do turismo está na diversidade de caminhos para sua produção e
apreensão, nos conflitos e possibilidades de entendimento desse fenômeno.
Os territórios são
dominados pelo turismo por oferecem atrativos para a demanda e aos gestores e operadores
turísticos alocarem seus investimentos e retirarem mais-valia dos espaços, do
trabalho humano. Passam a ser meios e produtos das relações de força e de poder
produzidas para e pelo o turismo, que se estabelecem de forma contraditória e
articulada entre o lugar, a nação e o mundo. O turismo materializa-se na lógica
da diferenciação histórica e geográfica dos lugares e das regiões. É pertinente
ao local tanto quanto ao mundial, pois domina as relações sociais históricas em
função de mudanças e reestruturação dos espaços, aproveitando os recursos locais.
Transfere o valor dos patrimônios culturais, das cidades, e dos lugares da
população local para os turistas, enquanto objeto do olhar, do prazer e de
desejo. Em função do turismo e do consumo dos espaços são produzidas diversas
formas estruturais de paisagens e de negócios. No tempo onde os processos
históricos seriam inoperantes, a técnica utilizada proporciona agilidade e
capacidade de organização territorial. Para cada modalidade de turismo existe
uma demanda espacial. Aproveitam-se áreas de montanha, de sertão e litoral,
áreas urbanas e rurais, metrópoles e cidades históricas, inclusive os desertos
e os enclaves. Com o turismo, novos processos concentram ou distribuem renda,
aumentam ou diminuem as formas de exploração dos trabalhadores, além de entrada
ou fuga das divisas. Requer, como toda atividade capitalista, controle governamental
e, sobretudo, participação da sociedade. Os equipamentos turísticos (hotéis,
restaurantes, agências de viagens, de comunicação) e os ambientes de lazer
servem de suporte à mobilização da mão-de-obra globalizada, afinal estão a serviço
da reprodução do capital. Mas, a lógica não é tão perfeita como querem os
neoliberais. Sob concorrência oligopolista, os investidores sofrem restrições de
mega-operadoras internacionais, em função dos altos níveis de concentração e de
integração de grandes conglomerados atuantes nos principais mercados emissores.
Criam-se, muitas vezes, barreiras à sobrevivência e entrada de novas operadoras
e de pequenos destinos turísticos. O turismo produz espaços estandardizados e
controlados pelas redes mercantis transnacionais que dificultam o crescimento
das empresas locais e regionais. Enquanto negócio visa lucros e desenvolvê-lo
implica continuar a distribuição injusta da riqueza. Portanto, produz contradição
ao se propor ao desenvolvimento local, preservar lugares, e proteger as
culturas, obtendo, ao contrário, a transformação do espaço em mercadoria,
massificação das culturas; atendendo as necessidades dos que vem de fora em
detrimento dos que ali habitam. Apesar de a expectativa principal do turismo ser
o lucro, e concentrar riqueza e renda, também cria oportunidades de ganhos para
os trabalhadores e os lugares mais pobres. Assim, na contradição de que destrói
e beneficia, o turismo pode ser visto positivamente tal como na perspectiva da
tese, que ao incorporar a antítese, o seu “contraponto”, transforma-se em
síntese, ponto e novamente contraposição da posição, marcando o processo
evolutivo da sociedade. Como positivo, trouxe, em alguns casos, a descoberta
comunitária de um outro turismo possível. Diferindo na forma como o turismo é
explorado, ou como se dão as relações sociais de produção, que determinam mais
ou menos exploração e concentração da renda. As explorações exacerbadas nas relações
de trabalho associam-se às relações mais flexíveis e adaptadas aos interesses
das comunidades locais. Assim, executivos de resorts e ambulantes
vendedores de souvenir e artesanatos são igualmente trabalhadores no turismo.
Ao mesmo tempo em que a tendência de acumulação cresce na maioria dos lugares e
na maior parte dos negócios turísticos, inclusive no Brasil e no Ceará, emergem
ricas experiências voltadas para menor exploração do trabalho, com melhores
ganhos para os trabalhadores, além dos capitalistas, distribuindo melhor os
resultados do trabalho social e fazendo valer os valores comunitários. O
modelo fordista massificou a cultura, a escola, a comunicação,
também tornou massivo o turismo, cuja superação requereu a
estratégia de fusões/aquisições, formação de conglomerados e de oligopólios
dominantes, organizando a produção de forma flexível quanto ao trabalho e aos
lugares. A crise do turismo fordista, porém, produziu o turismo flexível,
voltado às individualidades, com alto nível de qualidade, profissionalismo e
competência, e de altos custos, que seriam reduzidos quando adaptados às
condições comunitárias, locais e regionais. Do turismo global, elitizado e de resorts, emergiu o turismo local e
alternativo, voltando-se para os interesses dos residentes, das pequenas
pousadas, da valorização e manutenção da identidade local, mesmo que em
processo simultâneo de resistência e solidariedade. Nesse processo seletivo de
lugares para o turismo, novas contradições emergem, sendo mais comuns os de
usos e posse pela a terra, e por oportunidades de trabalho. Do conflito, porém
surge o turismo alternativo, aquele desenvolvido a partir das comunidades e
pelas comunidades, bem como os das favelas, dos índios, dos acampamentos dos sem-terra, ou seja, de diversos grupos de excluídos. Todos
incluídos na mesma sociedade, no modo de produzir, mudando na forma como cada
classe ou grupo se inclui, e como os níveis de conflitos produzem resistências
ou não. Não há como afastar a análise do turismo da valorização do espaço e
(ou) do mundo da produção e das contradições do modelo produtivo vigente, mas
se podem obter resultados menos desiguais. Os territórios turísticos passam, a
um só tempo, por serem dominados (pelo capital) e apropriados (pelos interesses
locais e dos trabalhadores). Os lugares além de pertencerem às estratégias do
capital, do espetáculo e do embevecimento dos visitantes são susceptíveis as
resistências dos residentes, apesar de nem todos participarem da luta. A maioria
da população local, alienada que está pelo consumo, adapta-se ao sistema de
produção capitalista convencional. O turismo é uma prática social que causa
divisão interna nas comunidades, mas que demanda tempo para se transformar e
obter resultados mais genéricos e sustentados.
O discurso sobre o turismo
é situado como opção para o desenvolvimento dos países, estados e municípios.
Mas, na prática é uma super-estimação de seu desempenho, criando falsas
expectativas, sem possibilidades de solução aos problemas sociais e ambientais
existentes: não desenvolveu as regiões pobres, nem distribuiu a riqueza do País,
além de não consolidar territórios, apenas organizar outros. Acrescentou problemas
onde foi tratado como política para atender somente a acumulação capitalista em
detrimento das necessidades básicas dos trabalhadores locais. Transformou o
espaço local em mercadoria global, desvalorizando o uso pela troca. As práticas
sociais e políticas dos governos e dos grandes empresários primeiro conflitaram,
depois coincidiram com as das comunidades e dos pequenos empreendedores. Os focos
de interesses específicos, a princípio divergentes – para os primeiros, o
centro é a acumulação de capital e para os outros o enfoque é humanista –foram
redirecionados para a solidariedade entre povos e lugares. É certo que na
maioria dos lugares e territórios isto não é verdadeiro, mas a minoria mostrou
que é possível e viável atender a interesses múltiplos. Idéias dominantes foram
divulgadas até a formação de um discurso coletivo e quase todos os lugares
passaram a afirmar ser o turismo gerador de emprego e renda. Constatou-se na
prática, entretanto, que o discurso, de que todos ganham com o turismo, é
superficial, pois mascara contradições e as diversas formas de exploração do
trabalho, às vezes acirram as contradições entre o capital e o trabalho. Alguns
estados brasileiros, em particular o Ceará, vêm servindo como laboratório dessa
dialética expressa nos discursos e práticas sobre o turismo, que opõe a percepção
de mundo oficial e de mercado a aquela visão humanista e comunitária. Os governos
propalam o discurso do mercado neoliberal, ao afirmar ser o turismo o caminho para
o desenvolvimento; de que é o caminho certo, pois não há outro; e que os
obstáculos serão vencidos; omitindo-se da missão com que foi criado, de regular
o mercado. O que se esperava do Estado democrático era a interlocução das
críticas, sem ceder, facilmente, aos pontos de vistas da classe dominante. Ao incorporar
em seus discursos a idéia de comunidade e de inclusão social, o faz para se
legitimar, mais que isso, para cooptar os movimentos e as resistências sociais,
posicionando-se pelas minorias dominantes, ao contrário do que se esperava de
ficar a favor da maioria excluída. As sociedades sem capacidade crítica para
perceber a falácia do discurso governamental submeteram-se a ação estatal de
construção de uma forma de turismo segregado, aquele que impede o turista de
conhecer de fato o local que visita. Estados neoliberais se comprometem com o
turismo internacional, esperando a entrada de divisas, sem verificar seus
resultados sobre as “exclusões sociais”, pois, na prática, as formas de se
obter emprego e renda que garantam a grande maioria da população são poucas. Muitos
acreditaram no discurso da atividade ser introduzida nos países periféricos
como alternativa de oferta de emprego e renda, e isso virou um mito. Aqueles
que ainda não se inseriram nos roteiros lutam para sua inclusão. O
planejamento, a administração, as políticas e gestões tão solicitadas no
turismo não foram suficientes para superar as crises. Afinal, o cerne da
questão não está nessas ausências, mas nos conteúdos desses instrumentos, que
são o próprio conteúdo das crises, seja no turismo ou outro setor da sociedade.
É preciso superar os problemas das territorialidades turísticas antes de
resolver as questões da gestão. Portanto, o caos não está nele próprio, mas no
conteúdo que se deu a ele. As práticas da sociedade civil organizada e das
comunidades tomaram duas direções distintas: daqueles que não acreditando no
turismo, por acharem superestimadas as possibilidades de extraordinários ganhos
pelo setor, e os que acreditaram e buscaram-no como perspectiva de
desenvolvimento e solução para o lugar. Mas, o que se constatou, foi que o
turismo não é diferente de nenhuma atividade capitalista, não é maldição nem
benção; é resultado das práticas políticas dos discursos hegemônicos e dos de
resistência. Para obter sucesso a nível comunitário com o turismo não significa
desconhecer a presença do Estado ou da mundialização do capital. Não se trata
de desconectar dessas realidades, implica, contudo, em redirecionar a política
estatal para os interesses das economias populares, enquanto alternativa de
resultado social mais amplos e continuados. O turismo comunitário é uma
estratégia de sobrevivência, e de entrada daqueles de menores condições
econômicas na cadeia produtiva do turismo. Uma forma de turismo que pensa o
lugar, a conservação ambiental e a ressignifica a cultura.