ESPAÇO, PODER E TURISMO: NOVAS CONFIGURAÇÕES GEOGRÁFICAS
LUZIA
NEIDE MENEZES T. CORIOLANO.
Universidade Estadual do Ceará
Faculdade da Grande Fortaleza
Compreender as relações de poder na produção do espaço turístico implica
necessariamente compreender o espaço como algo socialmente produzido que
expressa as contradições do modo de produção capitalista ou as contradições do
espaço-mercadoria. Ele é a um só tempo o lugar das estratégias para o capital e
das resistências do cotidiano para os habitantes. O turismo é uma das mais novas modalidades do processo de
acumulação, que vem produzindo novas configurações geográficas e materializando
o espaço de forma contraditória, pela ação do Estado, das empresas, dos
residentes, e dos turistas. Compreender essa dinâmica significa entender as
relações produtivas do espaço e o exercício de poder do Estado, das classes
empresariais e trabalhadoras em movimento e conflito. O turismo para se
reproduzir segue a lógica do capital, quando poucos se apropriam dos espaços e
dos recursos neles contidos apresentando-os como atrativos transformados em
mercadorias.
O espaço geográfico não é suporte nem é
reflexo da ação da sociedade, mas um produto social. “O espaço reproduz a
totalidade social na medida em que essas transformações são determinadas por
necessidades sociais, econômicas e políticas. O espaço reproduz-se, ele mesmo,
no interior da totalidade, quando evolui em decorrência do modo de produção e
de seus movimentos sucessivos e contraditórios” Santos (1979) A partir dessa
compreensão, o espaço físico em si passa a ser considerado a partir de sua
organização e o seu sentido são produtos sociais, são espacialidades, ou seja,
espaços produzidos através das relações de forças e de poder que se estabelecem
de forma contraditória, transformando a chamada primeira natureza em segunda
natureza.
Espaço é a principal categoria da análise geográfica e nele estão
contidos uma série de outras categorias e conceitos de apoio tais como:
território, lugar, região e paisagem,
dentre outras. Enquanto o território é “o resultado histórico do relacionamento
da sociedade com o espaço, o qual só pode ser desvendado por meio do estudo de
sua gênese e desenvolvimento” (Moraes, 2002) visto como uma forma de relação de
poder que remete a soberania, ao Estado-Nação e a fronteira, é o lugar o espaço
das resistências, onde se travam as lutas cotidianas, a exploração das forças
de trabalho, o fluxo da mais valia e a reestruturação produtiva da acumulação
capitalista. As lutas que antes pareciam apenas das classes sociais ampliam-se
e chegam aos lugares. Os espaços tornam-se competitivos e ameaçadores,
ocorrendo o que Santos (1999) denominou de “guerra dos lugares”.
O turismo
é um dos eixos desencadeadores dessa espacialização, age desterritorializando e
produzindo novas configurações geográficas. Assim, é que regiões litorâneas
originalmente ocupadas pelos indígenas, pescadores, comunidades tradicionais,
os chamados “povos do mar” são expropriadas para dar lugar às segundas
residências, aos grandes resorts, as cadeias hoteleiras, aos restaurantes e
demais equipamentos turísticos, como parques temáticos, por exemplo. Nessa
produção espacial faz-se necessário considerar a luta dos diferentes atores
locais: os nativos usuários do espaço litorâneo que tentam defender suas
propriedades, ou bens de usos, contrapondo-se aos interesses dos empresários,
dos agentes imobiliários e do próprio Estado, estes que se interessam pelo
valor de troca do espaço, pois o transformaram em mercadoria.
É no conteúdo do espaço de relações sociais que se engendram os
processos, pois é nessa formação histórica que se estabelecem, se recriam, se
transformam as relações sociais e espaciais. Mas esse produto social não se faz
sem conflitos, contradições e resistências. Explica Carlos que “as relações sociais têm uma existência real
enquanto existência espacial concreta, na medida em que produzem e assim efetivamente a sociedade produz o
espaço. Cada local, região ou país tem
sua formação própria, sua cultura, valores e costumes e deste modo o espaço vai
sendo produzido conforme essas relações mais amplas, em um processo articulado
a produção geral da sociedade. Diz Chesnais (1996) que os “serviços são a nova
fronteira para a mundialização do capital” A reestruturação produtiva
industrial desenvolveu uma infinidade de serviços funcionais à sua produção, ou
seja, a cada bem produzido ligado às
novas tecnologias desencadeiam-se os serviços de suporte e
sustentação, sendo o turismo um desses serviços, voltado especialmente a
reprodução da força de trabalho e ao
consumo.
As redes de serviços destinadas ao turismo levam em consideração as
vantagens de localização representadas pela dotação em riquezas naturais (sol,
mar , montanhas) bem como pelo valor do patrimônio cultural e histórico de um
país (arquitetura, museus). São estes fatores e também as decisões das
multinacionais especializadas, que determinam a capacidade de o país receber
turistas. As atividades ligadas a industria do turismo (hotéis, restaurantes,
clubes de férias) são intensivas em mão de obra; e é por isso que as
multinacionais do setor obtêm consideráveis vantagens por uma localização em
países que combinem atrações naturais
com mão de obra barata. As
grandes cadeias de hotéis e de restaurantes funcionam como empresas-rede,
utilizando o regime de franquia. As multinacionais deixam os franqueadores,
seus parceiros subalternos, suportarem todo o peso dos investimentos locais e
os imprevistos das flutuações da demanda, além de tudo o que diz respeito aos numerosos problemas da administração cotidiana da força de
trabalho mal remunerada e por isso migrante, de forma que consigam menores
custos e o máximo de lucro passível. O
valor de uso do espaço submeteu-se ao valor de troca e assim novas contradições
vão aparecendo. O espaço do residente e os espaços dos turistas, o espaço
esquecido do cidadão local e o espaço elitizado e luxuoso dos turistas entram
em conflito. Lugares lutam entre si para atrair empreendimentos, obedecendo à
lógica do capital. Ressalte-se o papel determinante do Estado burguês nesse
processo, posicionando-se abertamente a favor das classes dominantes, dos
empresários do turismo, dos proprietários de terra, dos agentes imobiliários.
Há os que lutam pelo espaço, lugares e territórios e são favoráveis à troca e à
acumulação capitalista, e aqueles que resistem com movimentos sociais e urbanos
e rurais, às vezes fazendo alianças ou contando com a solidariedade de outros
grupos que passaram pelo mesmo processo de resistência à aniquilação, em
permanentes conflitos. As resistências juntas com a capacidade de mudanças são
mediadas pelos usos e costumes para determinarem a produção do espaço
articulado entre o lugar, o nacional e o global. O capital ao transformar o
espaço em mercadoria, faz surgir novas atividades econômicas, como o ramo
econômico das atividades do lazer e do turismo e do lazer. O turismo provoca
profunda mudança sócio-espacial, redefine as singularidades espaciais além de
reorientar os usos. Diz Oliveira (1999) que no caso da transformação do tempo
de ócio em negócio, entra em jogo o que Lefebvre (1976) chama de emergência das
novas raridades (a luz, o ar, o espaço
e tempo). O que antes era
abundante torna-se raridade e entra no circuito das carências tão necessárias à
economia política, por isso objeto de estratégias governamentais e privadas. O
espaço passa ser raridade, sobretudo, se acompanhado de atributos como
“natural”, “verde”, “rural”, “conservado”.
No caso específico do Ceará, Brasil, até meados do século XX, a região
costeira não era valorizada em termos de espaço urbano para o turismo. Apenas
as atividades portuárias e de pesca artesanal ocupavam esse espaço, além das
ocupações de residências e de atividades socialmente marginalizadas, como a
boemia, o artesanato, e a cultura popular. Com a valorização do litoral e
implantação de projetos financiados pelas agências financeiras internacionais e
nacionais, a partir da década de 70, esse espaço foi redirecionado para o
turismo.A partir da década de 80, a população local disputa palmo a palmo o
espaço construído e urbanizado para o turismo, com os seus espaços residenciais
e para atividades econômicas, recreativas e esportivas. As populações moradoras
nas áreas litorâneas, sustentam uma luta de resistência para permanecerem
nesses lugares apesar do avanço da especulação imobiliária tendo o Estado como
indutor de investimentos e da infra-estrutura implantada. Várias foram às
favelas desmontadas e retiradas das dunas e lugares para serem direcionadas ao
turismo, ao lazer e à moradia das classes mais favorecidas, quando aquelas são
expulsas para áreas periféricas da Grande Fortaleza. O movimento dos moradores
de bairros e favelas foi testemunha de uma trajetória de deslocamentos
compulsórios, seguidos de conflitos, às vezes armados e sangrentos, e as
comunidades litorâneas cearenses também contam suas lutas com os especuladores
imobiliários. A cada necessidade de modernização imposta pela reestruturação
produtiva, sob influência do Estado, a orla marítima de Fortaleza especialmente
e todo o litoral do Estado do Ceará passa por novos usos e apropriações.
Ao defender o turismo o Estado
retira as populações historicamente assentadas nesses lugares, sob a desculpa
de que estes lugares estão degradados e agredidos por ser ponto de prostitutas,
vendedores e desocupados. A respeito dessas lutas mais recentes pela
apropriação das áreas litorâneas de interesse turístico Silva, (2001)
posiciona-se criticamente quanto à desocupação de uma área nas imediações do
Farol Novo, nas dunas da Praia do Futuro. Diz ele: “Se o Estado, através de
medidas moralizantes, resolvesse buscar tudo o que é seu, teria que desocupar
não só os lotes como este do Farol Novo, deveria reaver porções imensas de
nossa cidade, especialmente no litoral. Os ocupantes são certamente, pessoas
“ricas” e “respeitáveis”. Ninguém mexe com elas. Os pobres, alijados desse
mercado, insistem na ocupação nas dunas e várzeas de nossa cidade, lugares
únicos de possibilidade de abrigo”
Os mais pobres criam alternativas de espaços de usos que cedem as forças
de mercado quando são compulsoriamente deslocados. Essa experiência em
Fortaleza faz lembrar Lefebvre que mostrava duas possibilidades de ação pela
manutenção de territórios: A vida programada no e pelo espaço tende a reduzir
os ‘usadores’ à passividade e ao silêncio, salvo se eles se revoltam, sua
revolta pode e deve levar à apresentação de contra-projetos, de contra-espaços,
de reivindicações algumas vezes violentas.
Conclui-se que a produção do espaço é
determinada por relações sócio espaciais e de poder. Que o direito à cidade e
ao espaço reclamado pelo filósofo francês, há pelo menos quatro décadas
continua sendo motivação para a luta de muitos no Ceará e que essas utopias só
se concretizam quando essa parcela da população mantendo relações de poder,
possa fazer valer seus direitos, para se impor diante dos conflitos e
contradições geradas pelo capitalismo em suas novas formas expressas nos
artefatos modernos, dentre eles os do turismo.
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