Luiz Cruz Lima*
As
duas últimas décadas do século XX foram muito significativas para o Estado do Ceará,
especialmente com dois fatos marcantes: 1. entrada de jovens empresários no
cenário político-administrativo, ligados a interesses urbano-industriais, com a
conseqüente saída dos políticos clientelistas, voltados à tradicional economia
agro-exportadora e 2. delineamento de novos rumos da vida econômica, em busca
de enquadrar-se no modo de acumulação capitalista que se configurava no mundo
de então.
Esses
dois eventos conduziram o Estado a grandes programas de ações que redesenharam
um novo quadro sócio-espacial do território cearense, como veremos a seguir.
Nessa perspectiva, o espaço banal, ou espaço de todos os homens, é transformado
no espaço da racionalidade técnica a serviço dos investimentos privados, dentro
dos parâmetros técnico-científicos requeridos pela modernidade atual.
Com
esse norteamento, optou o governo realizar todo um conjunto de grandes obras
que tornassem o Ceará uma vitrina para grandes investidores, embora excluíssem
comunidades, rurais e urbanas. A estas, o poder público ofertava espaços
opacos, sem interesse para os meganegócios, além de treinamentos para poucos
que seriam, em parte, absorvidos pelas atividades mais elementares, sem
exigências de requisitos técnicos sofisticados. Assim, ampliou-se a modernidade
excludente, materializada pelas migrações, desigualdade social extrema,
urbanização caótica, marginalidade, ao lado de grandes bolsões de riqueza e
abundância. Programas mediáticos reluziam um novo Ceará, de muitas belezas e
riquezas, de atração turística. No marketing, até o sol deixara de ser
inclemente para ser uma representação de dádiva para o turismo e a
fruticultura.
Como
uma das marcas do Ceará deixada pela secular política baseada na “indústria das
secas”, a semi-aridez era um forte impedimento aos projetos dos novos
governantes, a partir da segunda metade da década de 1980. Daí, os projetos
ambiciosos de recursos hídricos.
O
projeto Caminho das Águas vem nessa direção, através de um grande e articulado
conjunto de obras governamentais que objetivavam maximizar os potenciais
hídricos do Ceará. Uma de suas vertentes abrange o Canal de Integração do
Castanhão que interagirá diretamente com a Região Metropolitana de Fortaleza e,
adiante, incrementará a capacidade produtivo do Complexo Industrial Portuário
do Pecém, além de potencializar um novo pólo de desenvolvimento hidroagrícola
nas áreas de tabuleiros da Bacia do Rio Jaguaribe. Isso se faria através de um
sistema de canais de adução com quase 255 km de extensão.
Esse
caminho é iniciado na mais recente barragem de seis bilhões de metros cúbicos,
no médio curso do Rio Jaguaribe, o Açude Castanhão, iniciado em 1995 e
concluído em 2003. Para alocar esse novo objeto geográfico, múltiplas mudanças
territoriais foram realizadas: construção de uma nova cidade (Jaguaribara),
reconstrução de um trecho da BR 116, desterritorialização de comunidades rurais
e urbanas, redefinição territorial de vários municípios, criação de espaços
agrícolas tecnificados (Curupati, Mandacaru e Novo Alagamar), implantação de
novas rodovias etc.
Nesse mesmo diapasão, formula-se o Programa de Gerenciamento e
integração dos Recursos Hídricos – PROGERIRH, com o objetivo de promover o
fortalecimento da infra-estrutura hídrica do Estado, possibilitando o
deslocamento da água acumulada nos grandes açudes para os vazios hídricos,
ampliando a oferta e a garantia da água para uso múltiplo e aumentar a
eficiência da gestão do sistema integrado. A seleção para a localização das
obras baseia-se na política de desenvolvimento do Estado, notadamente com o desenvolvimento
de atividades econômicas da indústria, na agricultura irrigada. Dentre as ações
de gestão, destaca-se a execução de um projeto de sistema de recepção de dados
meteorológicos e ambientais com a aquisição de 70 estações automáticas de
monitoramento das condições meteorológicas e ambientais do Estado.
O Programa de Abastecimento
de Água e Esgoto Sanitário das Cidades completa esse projeto de futuro,
porquanto compreende-se que é no espaço urbano onde se alocam as bases para as ações
de comando e de algumas atividades da produção, com atenção ao locus da
força de trabalho. Esses serviços foram instalados em municípios
de médio porte do interior do Estado, além da capital. Estabelecida essa
condição de demanda, o governo fortaleceu
a reserva de recursos hídricos, não apenas com o Açude Castanhão, mas outros
açudes menores foram construídos e recuperados, além de instaladas adutoras,
dentro do programa do PROURB-HÍDRICO.
A seleção de 44 municípios
baseou-se, principalmente, na vinculação à política de desenvolvimento do
Estado, notadamente com o desenvolvimento de atividades econômicas de turismo,
indústria e agricultura irrigada, bem como da carência do abastecimento d'água
para a população residente na sede municipal.
Para essas cidades, a partir de 1995, também foram direcionadas outras
ações (drenagem, pavimentação, eletrificação, saneamento básico e condições de
habitabilidade para a população residente nas áreas de risco), dentro do
Programa PROURB–URBANO, como suporte para implantação dos vetores econômicos
nas áreas de turismo, agricultura irrigada e indústria, através do
fortalecimento do planejamento urbano e gestão municipal.
A seleção inicial dos municípios
requeria que a localidade tivesse mais de 20.000 habitantes e que demonstrasse
capacidade legal de endividamento. Posteriormente, por critérios de política
urbana, em que prevalecem a vinculação com a política de desenvolvimento do
Estado, notadamente com o desenvolvimento das atividades econômicas de turismo,
indústria e agricultura irrigada.
Dentre as inúmeras ações governamentais no setor urbano, uma tem
destaque: a construção de uma nova cidade, para abrigar 1.085 famílias
desalojadas pelas águas do Açude Castanhão. Dadas as pressões da população e de
outros grupos organizados, o governo construiu uma nova cidade, dentro das
exigências dos antigos moradores de Jaguaribara, com todas as condições
urbanas.
Como se pode verificar, tudo se faz para criar valor no espaço, tanto de
componentes materiais, como humanos, fatores indispensáveis para atrair
investimentos e participar, de modo efetivo, da “guerra dos lugares”. Para
capacitar a força de trabalho dos municípios interioranos, foram instalados,
sempre a partir de programas bem definidos, 40 escolas técnicas, cada uma
denominada Centro Vocacional Tecnológico (CVT) e 3 Centros Tecnológicos
(CENTEC) em cidades estratégicas (Juazeiro do Norte, Sobral e Limoeiro do
Norte). Aí se formariam jovens para atender as demandas de trabalho de cada
região do estado.
Não se olvidou em disponibilizar recursos eletrônicos nos centros
interioranos que viessem atender comunicações a grande distância. Isso se fez
com as "Infovias do Desenvolvimento" que, através da Internet e do
sistema de videoconferência, proporcionam os meios físicos, tecnológicos e de
pessoal necessários à implementação do ensino à distância, com ênfase no ensino
profissional em diversas áreas dos setores produtivos e de serviços. Essas
"estradas eletrônicas" permitem o trânsito de informações entre diferentes
regiões, com interatividade, em formas de imagem, som e texto, a partir de
salas de transmissão, utilizando-se equipamentos dos CENTECs.
O planejamento verificou a necessidade de capacitar o território
cearense para vincular-se com o mundo pelo transporte de massa. O porto do
Mucuripe, com meio século de funcionamento, já não atendia a atracação de
navios modernos, com calado de 15 m. Assim, projetou-se um novo porto, em águas
profundas, em uma faixa do litoral a oeste de Fortaleza, próximo de uma área
anteriormente prevista para um distrito industrial, prevendo-se como âncoras
uma siderúrgica (em processo de instalação), uma refinaria de petróleo (ainda
em projeto) e usina termelétrica (duas em funcionamento). Essas duas indústrias
de base são previstas como âncoras de formação de um pólo metal-mecânico e um
pólo petroquímico. Nasce o Projeto Complexo Industrial Portuário de Pecém
(CIPP), no município de São Gonçalo do Amarante que viera se incluir, no final
da década, à Região Metropolitana de Fortaleza, com projeções de influir de
forma direta em cerca de 350.000 ha. O Porto de Pecém, a pouco mais de 40 km da
capital, está em funcionamento desde 2002, conjugado à imensa área de reserva
para indústrias, com toda a infra-estrutura necessária: gasoduto de 383 km de
Guamaré, RN a Pecém, energia, água, pavimentação, ferrovia e
rodovia, sistema de comunicação. Em breve, por decisão de governo, será
transferido o parque de tancagem de combustíveis do Porto do Mucuripe para as
proximidades do novo porto.
Para a porção oeste da nova Região Metropolitana está se formando uma
zona industrial, especialmente a partir do município de Caucaia, limítrofe de
São Gonçalo do Amarante. O projeto da Companhia Cearense de Transportes
Metropolitano, iniciado em Fortaleza em 1997, conectará essa zona com os
Municípios de Fortaleza, Maracanaú, Pacatuba, Guaiúba e Maranguape, com um
sistema de metrô.
No que concerne à melhoria do sistema de transportes terrestres, o
governo se dispôs a construir, restaurar e melhorar rodovias do sistema
rodoviário estadual, permitindo um melhor escoamento da produção das regiões
beneficiadas, bem como o incremento às atividades sócio-econômicas. Na área
metropolitana, vem realizando duplicação das vias de ligação com os municípios
da RMF como Aquiraz, Eusébio, Maracanaú, Maranguape e Pacatuba. Essas ações
estão dentro dos compromissos com agências internacionais, no sentido de
favorecer a dinâmica almejada da fluidez e circulação de mercadorias e
serviços.
Dentro dos compromissos com agências internacionais, como o Banco
Mundial, o grupo que gerencia o Estado do Ceará nas duas últimas décadas vem se
dispondo a atender a tecnificação e normatização do território dentro dos
parâmetros da globalização, a fim de captar mais investimentos e atrair
empresas, em variados setores,como
agricultura, indústria e turismo. Neste último, ressalta-se o Programa
de Ação para o Desenvolvimento do Turismo no Nordeste – PRODETUR/CE que desde a
década passada vem atuando, de forma concreta, em investimentos no novo
aeroporto, em estradas e infra-estrutura dos pontos turísticos elencados pela
Secretaria de Estado do Turismo (SETUR), criada em 1995. Uma nova estação
aeroviária (Aeroporto Pinto Martins) com padrões internacionais acionou elevada
demanda de visitantes na última década. Eleita como zona prioritária, seis
municípios, a oeste de Fortaleza (Caucaia, São Gonçalo do Amarante, Paracuru,
Paraipaba, Trairi e Itapipoca), receberam uma rodovia especial para o fluxo
turístico, além de algumas melhorias urbanas.
Com isso, o Estado tem sido incluído na rota do turismo nacional e
internacional, elevando a arrecadação dos cofres públicos. Ano a ano, grandes
empresas, com elevados investimentos, vêm instalando resorts e hotéis no
litoral cearense, ocasionando múltiplas lutas pelas terras, em detrimento das
comunidades pesqueiras litorâneas, ao meio-ambiente e à cultura.
Postos os
objetos, há de indagar: quem os usa? Como
manejá-los? A
quem servem? Mirando o mar dos sertões ou do litoral vendo os sertões, ficamos
sem entender a modernidade que se instalou tão rápida, sem preparação do homem
do lugar. Os lugares modificados, as funções tradicionais destroçadas, o homem
fica desamparado de seu espaço de vida, desconhecendo as coisas novas que se
impõem, na linguagem muda do desconhecido.
Essas grandes
obras simbolizam a modernidade posta, não conquistada ou comandada, daí seu
desconhecimento para os que vivem o chão do litoral ou do amplo interior
elaborado pelos séculos da civilização cabocla.
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* Professor Doutor em Geografia. Coordenador do Mestrado Acadêmico em Geografia e do Laboratório de estudos do Território e do Turismo da Universidade Estadual do Ceará. cruzlima@uece.br