NOVA ESTRATÉGIA PARA BUSCA DE ALVOS QUIMIOTERÁPICOS PARA LEISHMANIA.
ANÁLISE DOS GENES E SEUS PRODUTOS UM A UM.
Lucile
Maria Floeter-Winter
Departamento
de Fisiologia IB USP
e.mail: lucile@ib.usp.Br
Os protozoários do gênero Leishmania, formam um grupo de organismos
que alternam seu ciclo de desenvolvimento entre dois hospedeiros obrigatórios,
um flebotomíneo e um mamífero. Nesse ciclo o homem aparece acidentalmente e
essa infecção pode resultar um complexo quadro de desdobramentos clínicos,
denominados genericamente como leishmaniose. Essa gama de manifestações
clínicas parece depender da resposta imune do hospedeiro e da espécie de Leishmania envolvida. As formas clínicas
vão desde assintomáticas até as deformantes, passando pela forma muco-cutânea,
até a forma visceral que pode, em casos graves, levar a óbito. Didaticamente
podemos dividi-las em dois grupos: a cutânea ou tegumentar, causadas pelas
espécies L. (Leishmania) amazonensis e L. (Viannia) braziliensis; e a visceral, conhecida como kala-azar,
causada pela espécie L. (Leishmania)
chagasi com comprometimento dos órgãos ricos em células macrofágicas, como
o fígado e o baço. Essa divisão contudo nem sempre corresponde ao que se
observa em campo. E a correta identificação do organismo ainda é um desafio ao
diagnóstico. Mais do que isso, a indicação de prognóstico e a verificação de
eficácia de tratamento também são dificultados pela falta de identidade do
agente infectante.
A incidência mundial de leishmanioses é próxima de 600.000 novos casos
por ano. Entretanto, acredita-se que essa cifra seja uma sub-estimativa,
estando o número real entre 1,5 e 2,0 milhões. Existem hoje no mundo cerca de
12 milhões de pessoas infectadas (WHO, fact sheet nº116, 2000 -
http: //www.who.int/inf-fs/en/fact116.html). Nas Américas estima-se que para
cada caso registrado por ano cerca de 4 a 5 casos não são conhecidos
(Ministério da Saúde, 1994, WHO, 1994 & Secretaria de Estado da Saúde,
1995). As leishmanioses são consideradas pelo Tropical Diseases Research
Programme Organização Mundial de Saúde (TDR/OMS), uma das seis doenças de maior
importância em Saúde Pública eleitas para o desenvolvimento desse programa.
Entre as protozooses, ocupam o segundo lugar, sendo superadas apenas pela
malária.
Do ponto de vista biológico, organismos do gênero Leishmania
apresentam características interessantes. São parasitas intracelulares
obrigatórios de células do sistema fagocítico mononuclear de um grande número
de hospedeiros vertebrados, os quais adquirem a infecção, na quase totalidade
das ocasiões, através do contato com o vetor flebotomíneo ([1]).
Nos mamíferos, a principal célula parasitada é o macrófago. O interessante é
que essa célula apresenta diversos mecanismos microbicidas: enzimas
lisossômicas, intermediários reativos de oxigênio (ROI) e nitrogênio (RNI) e
mediadores derivados de lipídeos. Esses intermediários reativos se mostraram
importantes no estabelecimento (ROI) e no controle (RNI) da infecção em
sistemas murinos ([2]).
Recentemente descreveu-se a potencialização da formação de ROI por
estibogluconato de sódio (Pentostam), um dos fármacos utilizados no tratamento
de leishmaniose ([3]).
Contudo o parasita é capaz, por diversas estratégias, algumas conhecidas, de
escapar desses mecanismos microbicidas e sobreviver no ambiente hostil.
Entender como se dá o escape do parasita envolve o estudo das interações
metabólicas entre a célula do parasita e a célula parasitada. Com o advento das
informações contidas em bancos de dados provenientes do seqüenciamento do
genoma de Leishmania, assim como com os dados do genoma humano e de
outros mamíferos, é possível estudar as vias metabólicas do parasita enfocando
aquelas exclusivas ou essenciais ao parasita.
Assim, nosso objetivo vem sendo caracterizar passos metabólicos
essenciais que possam resultar na sobrevivência da Leishmania nos
macrófagos infectados, escapando dos mecanismos de defesa dessas células. Na
era pós-genômica, já existe um consenso mundial, indicando que as informações
mais específicas de cada fenômeno devem ser obtidas na bancada, estudando-se
gene por gene, em experimentos que indiquem o papel funcional de cada produto.
Os instrumentos tecnológicos atuais permitem integrações com o conjunto de
informações que constituem o organismo para entendermos sua fisiologia como um
todo e daí podermos utilizar essas informações em nosso próprio proveito, tal
como no controle de uma parasitose.
Nosso primeiro alvo foi a enzima arginase. Essa enzima é integrante do
ciclo da uréia (Krebs-Henseleit) nos animais uricotélicos, e é expressa em
alguns tripanosomatídeos, entre eles Leishmania. A arginase utiliza como
substrato L-arginina, produzindo L-ornitina e uréia. Inicialmente seu papel
funcional foi associado apenas aos processos metabólicos envolvidos nessa
interconversão arginina-ornitina-citrulina.
Além disso, a expressão específica é uma das características utilizadas
na identificação de organismos da família ([4]).
Nos últimos anos, uma série de trabalhos vem sendo publicada relatando
as propriedades de uma outra enzima, a óxido nítrico sintase induzida (iNOS)
que, como a arginase, utiliza a L-arginina como substrato, produzindo citrulina
e óxido nítrico ([5], [6]).
Como a arginase, a iNOS é expressa em macrófagos e a produção de NO é uma
importante resposta microbicida dessas células. Como a iNOS é dependente de
L-arginina, a arginase pode atuar negativamente na regulação dos níveis de NO
produzidos, consumindo o substrato da iNOS ([7]).
Recentemente, foi demonstrado que a presença de um inibidor de arginase, a Nw-hydroxyl-L-arginina, diminui a capacidade de L. major em estabelecer a infecção em macrófagos ([8]).
Com base nesses resultados, postulamos que um dos papéis funcionais da
arginase de Leishmania estaria relacionado com a sobrevivência do
parasita no interior dos macrófagos, competindo com a iNOS pelo mesmo substrato. Nosso laboratório caracterizou o
segmento gênico que codifica a arginase de Leishmania, assim como seu
produto de transcrição ([9]).
As informações geradas por essa caracterização permitiram a construção de um
transfectante com apenas uma cópia do gene nocauteado e esse organismo mutante
foi utilizado em ensaios de infecção in vitro, com macrófagos da
linhagem J774, ou com macrófagos residentes oriundos de três linhagens de
camundongos, que apresentam diferentes sensibilidades à infecção por
Leishmania. Os resultados dos experimentos apontam para uma baixa taxa na
infectividade de macrófagos por L. (L.)
amazonensis com uma cópia do gene
de arginase nocauteado. Isso parece indicar que a arginase possa ser importante
para a virulência e viabilidade do parasita na célula hospedeira. Estudos complementares mostraram que a
diminuição da síntese de ornitina, também é responsável por uma diminuição na
taxa de proliferação dos parasitas, uma vez que esse composto é precursor na
síntese de poliaminas e portanto essencial para a replicação do DNA, o que
indica a importância da enzima para o parasita proliferar na célula hospedeira.
Em células de mamíferos foi verificado que os níveis de glutationa na sua
forma reduzida (GSH) decrescem quando ocorre exposição a RNI (especificamente o
óxido nítrico - NO – [10], [11]).
Sendo a remoção desses radicais livres (RNI e ROI) feita por mecanismos
dependentes de glutationa ou de tripanotiona, seu análogo em tripanossomatídeos
no sistema de ciclagem redox de tióis, utilizando NADPH ([10], [12]).
Esse último parece ser formado principalmente pela via das pentoses, ocorrendo
a ativação desta durante a exposição ou produção de NO em diversas células de
mamíferos, dentre elas macrófagos ([13], [14]) e
neutrófilos ([10]),
células hospedeiras das leishmânias.
Dessa forma, o outro alvo escolhido foi a glicose-6-fosfato
deshidrogenase, por sua capacidade de regenerar NADPH. Inicialmente o gene que
codifica a enzima foi clonado e sua caracterização apontou para um outro
potencial que se revelou interessante, sua utilização como alvo para
identificação de organismos do subgênero L. (Viannia) ([15]). A seguir, partiu-se para
obtenção do parasita nocaute, o que foi conseguido apenas em uma cópia,
indicando novamente e surpreendentemente ser um gene essencial. Mutantes
superexpressores também foram obtidos através de transfecção de vetor
extracromossômico. Todos esses
mutantes, mostraram em ensaios de infecção in vitro e in vivo o
envolvimento da enzima no estabelecimento e manutenção do parasita dentro da
célula hospedeira.
A apresentação de fosfatidil serina
no exterior do parasita, simulando uma condição de apoptose, também foi
demonstrada como importante para sinalizar a fagocitose pelo macrófago ([16]).
O gene que codifica uma das enzimas envolvida na síntese dessa molécula, a
fosfatidilserina sintase, bem como aqueles de codificam as proteínas de
membrana responsáveis pela translocação das moléculas de uma superfície a
outra, tais como translocases, foram então escolhidos como alvos de estudo.
Utilizando-se bancos de dados do genoma Leishmania major, um segmento
gênico com similaridade com a fosfatidilserina sintase de L. (L.) amazonensis
foi clonado e foram obtidas por PCR reverso as seqüências do mRNA
transcrito por esse gene. Construções de mutantes desse gene permitirão
descrever as vias de síntese de fosfatil serina, bem como entender o papel
dessa molécula na infecção.
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