VIOLÊNCIA: UMA PERSPECTIVA ANTROPOLÓGICA

 

Gilberto Velho*

           

            I.

Em 1986, na Reunião da SBPC em Curitiba, presidi um simpósio sobre violência no Brasil que resultou em uma publicação que, na época, teve bastante repercussão[1]. Foram três mesas redondas que reuniram cientistas sociais e outros profissionais voltados para a problemática de segurança pública. Já havia, naquele momento, um consenso sobre a extrema gravidade do problema. Uns dos pontos fundamentais foi salientar e distinguir vários tipos de violência, procurando complexificar a abordagem ao evitar reificar aquela noção. Assim, foram discutidos, entre outros temas, a desigualdade e a pobreza, a violência no campo, a violência contra as minorias étnicas e os gays, o racismo e o aparato e características do sistema prisional.

            Passados quase vinte anos ficamos, ao reler esses textos, com sentimentos ambíguos e contraditórios. De um lado, poderíamos desenvolver uma certa satisfação intelectual ao verificar que as observações e análises mantiveram, em geral, sua consistência e propriedade. Ainda nessa linha, fica evidente que os cientistas sociais não só perceberam e identificaram a gravidade do problema, que só se avolumou nos anos que se seguiram, como também apresentaram sugestões e propostas concretas em termos de implementação de políticas públicas. Em contrapartida, ficamos com um doloroso sentimento de que nossos trabalhos e denúncias muito pouco efeito tiveram junto às autoridades públicas responsáveis, em diversos níveis, no que toca à questão da violência e da segurança pública. Do mesmo modo, não fomos capazes de sensibilizar e mobilizar a sociedade civil para que atuasse de modo mais vigoroso e conseqüente em sua própria defesa. Frise-se que nessas quase duas décadas a SBPC retomou, em várias ocasiões, a discussão e a denúncia dessa crescente ameaça à sociedade brasileira.

 

            II.

            Hoje gostaria de chamar atenção para uma das conseqüências mais sérias diante da generalização da violência, entendida como ameaça física produtora de risco de vida para os diferentes grupos e segmentos que compõem a nossa sociedade. Refiro-me à sociabilidade, base constitutiva da vida social. O que se chama, às vezes toscamente de “sensação de insegurança”, nos leva a uma sociologia ou antropologia do medo. As experiências diretas ou indiretas com episódios violentos de natureza física e/ ou simbólica como furtos, roubos, assaltos, ameaças, seqüestros, agressões, tortura e assassinato compõem um quadro de radical alteração nas expectativas e padrões de sociabilidade. Cada vez mais, especialmente nos grandes centros urbanos, evidencia-se uma extrema cautela chegando à desconfiança e mesmo à rejeição diante da possibilidade de contatos e interações sociais diferenciados. Embora haja um esforço, em alguns casos, de estabelecer pontes entre diferentes categorias sociais, predomina crescentemente uma tendência endogâmica de retração e isolamento social. Esses processos, certamente, não são lineares e apresentam descontinuidades e contradições.

            É mais do que notório, embora nem sempre assimilado de modo conseqüente, que a situação das populações mais pobres, habitantes de favelas, conjuntos residenciais e periferias é a mais dramática. Estão sujeitas, de um lado, à ação direta e opressora de gangues de bandidos e traficantes. A sua vulnerabilidade evidencia-se mais ainda diante da ação policial, freqüentemente não seletiva, arbitrária e truculenta e, muitas vezes, em diferentes regiões do país associada a grupos de extermínio. As lutas entre as gangues e os confrontos com os órgãos de segurança produzem dezenas de milhares de mortes todo ano no Brasil. A vida nas áreas urbanas mais pobres fica sujeita a um toque de recolher, quase que permanente, em que fica flagrante a impotência de seus moradores. As associações tradicionais ou desaparecem ou se enfraquecem dentro desse quadro de grande violência física e pressão simbólica. Os supostos direitos elementares de ir e vir, por exemplo, não tem sustentação nem continuidade. As pessoas ficam cada vez mais retraídas e restringidas em seus movimentos[2].

            Nas pesquisas que realizo e coordeno sobretudo com as camadas médias da cidade do Rio de Janeiro, talvez um caso limite, fica, de outro modo, muito claro esse movimento de enclausuramento. Nas gerações mais velhas, a partir da meia idade, uma das mudanças de padrão mais visíveis é a redução de programas noturnos e a evitação de freqüência a lugares públicos. Ou seja, as ruas, à noite, mais do que nunca aparecem como lugares perigosos. Ir ao cinema, ao teatro, a um evento musical passa a ser uma operação cercada de precauções e de elaboradas estratégias que envolvem desde a organização de verdadeiras expedições coletivas, até a contratação de seguranças particulares para proteção. Os shoppings e as residências particulares passam a ser os locais considerados menos inseguros e, portanto, mais adequados às atividades sociais. As residências prédios e condomínios transformam-se em verdadeiros bunkers, repletos de barreiras e equipados com controles de mais variados tipos[3]. As gerações mais novas desenvolvem as suas próprias táticas para o seu deslocamento dentro da cada vez mais agressiva “selva das cidades”. Na realidade, a maioria das selvas, provavelmente,  envolve menos riscos do que hoje sair à noite em boa parte do Rio de Janeiro e de São Paulo. Mas os jovens elaboram, através de suas práticas, mapas sócio-culturais com trilhas e caminhos próprios. Negociam com suas famílias os seus modos de sociabilidade. Andam, principalmente, em grupos evitando se expor sós diante das ameaças mencionadas. Têm os seus celulares como instrumento fundamental de comunicação e defesa. As famílias procuram se organizar para que disponham de carros particulares ou táxis para facilitar o seu deslocamento mais seguro. Muitas vezes é preferível dormir fora, na casa de namorados ou de amigos, do que retornar à casa dos pais. Associando-se a outras mudanças na sociabilidade é relativamente comum que namorados e namoradas durmam nas residências de seus pais com a tolerância e mesmo apoio destes, para evitar ou diminuir os perigos a que seus filhos estariam dispostos.  

            Antropologicamente o que salta aos olhos é o que poderíamos chamar de uma crescente tendência à redundância nas relações sociais. Os grupos se fecham e as redes sociais se restringem, ficando cada vez menos permeáveis ao contato e a interação com indivíduos e categorias sociais diferentes. Esse fechamento implica, portanto, um empobrecimento das relações sociais, diminuindo as possibilidades de contatos e trocas entre distintos grupos e categorias sociais. Sem dúvida, há algumas áreas e situações que ainda possibilitam e apresentam interessante potencial de quebra desse padrão como aparece na área da cultura e da música popular. Outra atividades artísticas, lúdicas e esportivas podem também, mesmo que de modo limitado, contrabalançar essa pressão do enclausuramento. A capoeira, o hip hop, o forró, o heavy metal, o funk e o pagode, por exemplo, têm possibilitado, à vezes de forma bastante polêmica e controvertida, contato e relacionamento, sobretudo nos universos jovens[4]. Mas, é inegável que hoje nas grandes cidades brasileiras o medo aparece como variável constante e determinante do comportamento e das escolhas de quase todos os indivíduos em seu cotidiano.

            Finalmente, há que se constatar o desalento, o ceticismo e também o medo diante da atuação do poder público. Constata-se, no dia-a-dia, a falência do Estado em garantir mínimas condições de cidadania para a população do país, desde o mercado de trabalho, passando pela educação, saúde, e transporte, para desaguar de modo fragoroso na insegurança generalizada. Os níveis federal, estadual e municipal revelam-se muito pouco capacitados para organizar e coordenar atividades básicas que garantam minimamente a qualidade de vida da sociedade. A crescente percepção da corrupção generalizada só agrava o referido quadro em que indivíduos e categorias sociais vivem sob a permanente sensação de desmoralização e ameaça à sua integridade física e moral.

            Como falar de cidadania nessa conjuntura? A deterioração e perda dos espaços públicos e o enquistamento social não condizem com um diálogo básico e necessário para a vida da polis. Convém lembrar que Sólon e Clístenes foram políticos e legisladores gregos que não devem ser confundidos com os filósofos, embora existam óbvias e importantes relações entre eles. Como homens públicos preocuparam-se em dar a lei à polis, voltados que estavam para o controle da violência existente entre clãs e linhagens da antiga Atenas. Seu objetivo era criar e consolidar uma ordem pública que não só controlasse a violência, mas que fornecesse um espaço público que viabilizasse a cidadania. Isto, portanto, está nas origens do pensamento democrático da tradição ocidental, precariamente incorporada à vida brasileira.

            Assim, além de protestar, pressionar e cobrar do poder público, cabe à sociedade civil, através de seus diferentes setores e segmentos, organizar-se e procurar novos caminhos para essa tão maltratada cidadania. Em caso contrário, a herança dos nossos descendentes será de uma sociabilidade cada vez mais pobre e limitada, onde a interação e o diálogo serão cada vez mais escassos e parciais.

 

* Professor titular de Antropologia Social e Decano do Departamento de Antropologia do Museu Nacional/ UFRJ e Membro da Academia Brasileira de Ciências.

 

           



[1] Ver Revista Ciência Hoje, Encarte Especial sobre Violência, janeiro/ fevereiro, 1987.

[2] Ver por exemplo Alba Zaluar. A Máquina e a revolta: as organizações populares e o significado da pobreza. Rio de Janeiro, Brasiliense, 1985 e Integração perversa: pobreza e tráfico de drogas. Rio de Janeiro: Editora da FGV, 2004.

[3] Ver Cristina Patriota de Moura. Ilhas Urbanas: Novas Visões do Paraíso. Uma discussão etnográfica dos condomínios horizontais. Rio de Janeiro: Museu Nacional/ UFRJ, tese de doutorado, 2003.  

[4] Ver Sônia Duarte Travassos. Capoeira – Difusão & Metamorfose culturais entre Brasil e EUA.  Rio de Janeiro: Museu Nacional/ UFRJ, tese de doutorado, 2000; Sandra Regina Soares da Costa. Bricoleur de rua: um estudo antropológico da cultura hip-hop carioca. Rio de Janeiro: Museu Nacional/ UFRJ, dissertação de mestrado, 2002 e “Uma experiência com autoridades: pequena etnografia de contato com o hip hop e a política num morro carioca” In: VELHO, Gilberto e KUSCHNIR, Karina (orgs.).  Pesquisas Urbanas: desafios do trabalho antropológico. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003; Roberta Lana de Alencastre Ceva. Na Batida da Zabumba: uma análise antropológica do forró universitário. Rio de Janeiro: Museu Nacional/ UFRJ, dissertação de mestrado, 2002 e “Forró e mediação cultural na cidade do Rio de Janeiro” In: VELHO, Gilberto e KUSCHNIR, Karina (orgs.). Mediação, cultura e política. Rio de Janeiro, Aeroplano, 2001 e VIANNA, Hermano. O mundo funk carioca. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.