Cláudia Sousa Leitão
O primeiro pilar diz respeito à
construção racional do Estado-nação. O segundo se refere à visão da cultura
como produto desta razão universal e única, como um elemento superior definidor
dos processos ditos civilizatórios.
Todos nós somos testemunhas do
fracasso destes modelos. De um lado, nacionalismos produziram o terror e a
intolerância, do outro, a visão de uma cultura ocidental hegemônica,
conduziu-nos a genocídios, à escravidão e à exclusão.
Mas estamos no século XXI. É hora de revisitar conceitos e
questionar velhos dogmas. È hora de olhar o mundo não mais a partir do conflito
entre Estados e suas soberanias jurídico-politicas. É chegada a hora de
repensar a subordinação das culturas aos ditames de uma razão única.
Transformações são sempre bem-vindas em tempos de crise,
tempos contraditórios de conquistas cientificas e ódios ancestrais, tempos que
os avanços tecnológicos que forjaram a atual “sociedade do conhecimento” ou da
“informação” não conseguem garantir a liberdade de expressão, o pluralismo de
idéias e o acesso de todos a estas mesmas conquistas.
A conferência Geral da UNESCO, logo após o dramático
atentado do 11 de setembro de 2001, virá formatar a “Declaração Universal sobre
a Diversidade Cultural”. Este documento ratifica o esforço dos países na
construção de um dialogo intercultural, capaz de contribuir para uma cultura de
paz entre os povos, considerando a diversidade cultural, um patrimônio comum da
humanidade.
Identidade, diversidade, criatividade, solidariedade são as
palavras chaves destes novos tempos, palavras presentes nos discursos
internacionais, nacionais e locais, em contextos políticos, educativos,
econômicos, jurídicos ou sociais.
Ao mesmo tempo, agências de desenvolvimento, tais como o BID
(Banco Interamericano de Desenvolvimento) passam a priorizar o financiamento de
projetos, a partir da capacidade de mobilização do capital social e da dinâmica
cultural específicos às populações as quais estes projetos se aplicam.
Ao se levar em conta a diversidade cultural, abole-se a
concepção hierárquica do desenvolvimento, dando-se voz a populações que até
então não constituíam parte integrante deste “capital social”.
Vale aqui conceituar capital social a partir da visão de
Pierre Bourdieu, ou seja, “um atributo individual e coletivo de distinção e,
com isso, de domínio dos membros das categorias privilegiadas”. O capital
social, segundo o sociólogo francês se apóia no capital econômico (na segurança
material), no capital cultural (no manejo do idioma) e no capital social (na
constituição de relações). Estes capitais convertem-se, por sua vez, em um
capital simbólico, instrumento maior da garantia de sobrevivência dos discursos
dominantes.
Este quadro, aqui sucintamente apresentado pode servir-nos
de ante-sala para as nossas reflexões acerca da temática da atual edição da
SBPC: ciência e cultura- do sertão olhando o mar”, ao mesmo tempo em que também
introduz nossa reflexão sobre a economia criativa e seus novos papéis para os
países em desenvolvimento. Gostaria em
um primeiro momento de revisitar o conceito de desenvolvimento para que em um
segundo momento possamos conectar as palavras desenvolvimento e criatividade.
A primeira grande vinculação entre cultura e desenvolvimento
propõe uma espécie de doutrina de predestinação de determinadas sociedades à
pobreza ou à riqueza a partir de determinantes ditas culturais. A partir dos
anos 80, afirma Guy Hermet, “começam a se produzir dois tipos de inversão dos
sentimentos, não menos discutíveis, embora de sentido exatamente oposto: uma
delas é fruto do fracasso da ajuda à África e a outra da popularidade que
adquiriu, por compensação, a ação humanitária. De repente, graças a amálgamas
abusivos sugeridos pelo primeiro desses fatores, tanto os programas de
macrodesenvolvimento adotaram a aparência de ilusões onerosas e, às vezes,
nefastas, alimentadas pela nostalgia colonialista das grandes potências ou pela
inesgotável mas ingênua caridade de organizações vinculadas, em particular, às
Igrejas... As organizações humanitárias difundiram a idéia de que os países
pobres não tinham a possibilidade de sair de sua indigência a não ser por seus
próprios esforços, com um mínimo possível de
intromissão exterior, tendo em conta suas especificidades culturais”.
Em 1999, em Paris, o Fórum “Desenvolvimento e Cultura”,
organizado pelo BID, vai trazer novos significados a estas duas expressões. A
cultura passa a ser percebida como uma matriz dinâmica das formas de ser,
estar, se relacionar e perceber o mundo. Neste caso, como seria possível
imaginar que os atores do desenvolvimento poderiam desinteressar-se por esta
matriz ou mesmo negá-la? Deste modo, desenvolver não significa nada se
comprendermos ou associarmos esta palavra a meras construções voltadas à
infra-estrutura das comunidades (saneamento, estradas etc). Urge se pensar nas
reações e intervenções das pessoas atingidas por estes benefícios. O
desenvolvimento não se resume, portanto, ao desenvolvimento econômico, embora o
crescimento e a distribuição menos desigual da riqueza material sejam decisivos
para a qualidade de vida dos indivíduos. O consumo exagerado de um país de um
emirado rico em petróleo, por exemplo, não significa que sua população viva em
um país desenvolvido, pois este insumo depende de importações condicionadas à
uma renda que arrisca-se a ser efêmera. Ao mesmo tempo, o chamado
desenvolvimento autocentrado, que pode aqui ser exemplificado por Cuba, também
não permite saltos fundamentais para a riqueza de um país. Como se vê,
desenvolvimento não se confunde com “desenvolvimentismo”, tônica da América
Latina dos anos 50 e 60, tão presentes no projeto militar que resultou do golpe
de 64 neste país.
Ora, vale a pena
repensar os modelos de desenvolvimento definidos ou praticados em países com
grandes desigualdades. A desigualdade suscita desconfiança, assim como é
produtora de uma lógica de distanciamento entre grupos e estratos sociais. E
nós, habitantes de países em desenvolvimento, podemos nos perguntar: como
reaver o capital social de comunidades excluídas, de ex-colônias submetidas à
domesticação de suas culturas, despossuídas de auto-estima e de capacidade de
mobilização?. Estas perguntas referem-se não somente a continentes desiguais
como a América Latina ou a África, mas dizem respeito a todo planeta. Com os
altos fluxos migratórios e uma economia globalizada, os países transformam-se
em complexos patchworks culturais, espaços de eterna e conflituosa construção e
reconstrução de identificações e de sociabilidades.
Como já foi dito anteriormente, e como enfatiza sempre o
nosso ministro Gilberto Gil em seus discursos, quando nos referimos à cultura,
ou à diversidade cultural, nós a interpretamos como uma matriz primordial de
valores e comportamentos que dão sentido a vida de uma população. Cultura não
se restringe à “cultura dita erudita”, ou ainda às atividades do espírito ou às
linguagens artísticas. Esta compreensão é fundamental para que se compreenda o
potencial das indústrias criativas em países como o Brasil, a China e a Índia.
Os questionamentos são muitos e as respostas ainda
insatisfatórias. A nossa desigualdade avassaladora, a histórica ausência de
políticas públicas para o setor cultural neste país, nos motiva a repensar os
papéis dos gestores públicos na construção de um novo modelo de desenvolvimento
que leve em conta a nossa riqueza e diversidade cultural. E mais, que leve em
consideração nossa criatividade como fator estratégico de desenvolvimento local
e regional. Desenvolvimento como alavanca para a dignidade, cidadania, autoestima,
respeito à diversidade. É com esta visão de desenvolvimento que trabalha o
Ministério da Cultura e é o que temos buscado empreender no Ceará.
Em nosso Plano Estadual da Cultura 2003-2006, definimos uma
política pública em que a cultura fosse compreendida de forma transversal,
estando presente em todos os eixos do governo: Ceará Empreendedor, Ceará Vida
Melhor, Ceará Integração e Ceará- o Estado a serviço do cidadão.
Um dos aspectos mais relevantes da cultura neste novo século
é a constatação de que as sociedades da informação, que privilegiam a indústria
do lazer, do entretenimento e do mercado de bens simbólicos, movimentam uma
economia cada vez mais significativa, criando empregos e redistribuindo renda.
Não há como negar a existência de uma economia da cultura, constituída de
amplas cadeias produtivas cujos elos merecem ser identificados e estimulados.
Considera-se que o empreendedorismo cultural representa uma das importantes
opções para o Estado, no sentido de permitir a reconfiguração do perfil do
trabalhador cearense, que poderá desenvolver novos negócios e profissões
voltadas ao mercado de bens simbólicos.
Eixo 2 -
Ceará Vida Melhor
O plano de governo elege a melhoria da qualidade de vida dos
cearenses como um dos seus eixos, compreendendo a cultura como elemento
fundamental nesse processo. Experiências têm demonstrado que as ações culturais
podem enfrentar o esgarçamento do tecido social das cidades. A violência
urbana, o vandalismo, o tráfico de drogas, enfim, grande parte das mazelas das
nossas sociedades poderia ser neutralizada a partir da compreensão de que a
cultura conforma ações relativas a inúmeras pastas governamentais, como
segurança pública, turismo, educação, saúde, esporte e juventude, desenvolvimento
econômico etc. Por outro lado, a cultura poderá facilitar as ações públicas no
sentido da regionalização, isto é, a cultura poderá rever a tradicional relação
“centro / periferia”, revelando vocações regionais, revertendo a macrocefalia
da capital em relação às diversas regiões do Estado.
A cultura constitui uma pasta estratégica na criação de
canais de interlocução dos diversos grupos sociais, para que se atinja uma real
integração entre regiões a partir da valorização do território. Pelo seu
caráter transversal, a cultura deve ser compreendida como este instrumento
facilitador das ações das diversas secretarias estaduais e municipais. Não se
pode buscar integração entre regiões se não se compreender que todas elas,
independentemente de terem alcançado bons índices de educação formal, são
protagonistas de suas próprias culturas. É neste sentido que não se pode falar
de “interiorização da cultura” como se pode falar de interiorização da
indústria, do turismo da ciência e tecnologia etc.
Eixo 4 - Ceará- Estado a serviço
do cidadão
Nós que estamos no alto da América do Sul e a meio caminho
entre a América do Norte, África e a Europa, passamos a construir a partir
desta privilegiada geografia novos caminhos e oportunidades de encontro entre
culturas que nos tem enriquecido e renovado. Sabemos que o Ceará é um estado
pobre mas também sabemos da nossa riqueza e diversidade cultural e, em
conseqüência do potencial da economia criativa em nosso Estado. Se o conceito
de indústria criativa surge na Austrália na década de 90, temos, a partir de
então ampliado o seu significado, afinal de contas, as indústrias ou artesanias
culturais são por natureza de natureza criativa posto que trabalham na produção
de bens simbólicos. Além das tradicionais indústrias fonográfica,
cinematográfica, editorial, de software, e do setor de comunicação, devemos
estender o raio das indústrias criativas ao mundo das artes, da cultura e da
ciência e tecnologia. Neste sentido, os saberes e fazeres populares, as artes
performáticas (a dança, o teatro), a literatura, as artes visuais, a música, a
publicidade, o design são exemplos de setores que produzem bens e serviços para
as indústrias criativas.
Sabemos que no Ceará temos ainda um longo caminho a
percorrer, no sentido de associar aplicação tecnológica ao capital social e
intelectual de nossos artistas e produtores culturais. Em um mundo globalizado,
cuja competição é acirrada e muitas vezes injusta, necessitamos
profissionalizá-los, através da informação e da capacitação. Afinal, sabemos
que as indústrias criativas constituem cadeias ou arranjos produtivos por sua
vez constituídos por elos. Não há como pensar em desenvolvimento sustentável no
setor cultural sem pensar nas diversas etapas entre a criação, a produção, a
distribuição e o consumo de bens e serviços culturais. Se quaisquer destes elos
se rompe ou não é devidamente considerado, corremos o risco de abortar o grande
potencial de produção e distribuição de riquezas que estas indústrias podem
provocar.
Entre os programas do Plano Estadual da Cultura, gostaria de
apresentar aqui projetos relativos ao fomento da economia criativa no Ceará.
Gostaria de realizar a capacitação em parceria com a Secretaria de Ciência e
Tecnologia de mestres da cantaria, (formação de 600 horas) cujos professores
vieram a Escola de Cantaria do Mosteiro de Batalha em Portugal. Neste momento,
trabalhamos em uma primeira incubadora com os profissionais formados no curso
em Limoeiro do Norte e acreditamos que as diversas aplicações da pedra da
cantaria, presente no Vale do Jaguaribe, junto ao talento e à criatividade dos
cearenses, permitirá uma importante contribuição da cultura para o
desenvolvimento regional. Também com a Secretaria de Ciência e Tecnologia, nos
Centros de Vocação Tecnológica construídos em cada macro região do Estado, a
Secult oferece hoje formação profissional em várias áreas típicas à indústria
criativa: o desenho para histórias em quadrinhos em Limoeiro do Norte, os
cursos para a produção de curtas metragens em Limoeiro do Norte, Sobral,
Juazeiro do Norte e Fortaleza ( cursos de audiovisual modular e edição não
linear) os cursos de design para a transformação do nosso artesanato em
Fortaleza, Juazeiro do Norte e Itapipoca (cursos de serigrafia artística e de
desenho, de patchwork/bordados, pintura e gravura) além de oficinas de
criatividade com joalheiros e aprendizes em Quixeramobim.
Gostaria ainda de ressaltar que o Ceará tem enfatizado em
seus projetos a preservação de sua memória a partir de seu patrimônio cultural.
Neste sentido, regulamentou de forma pioneira no país uma legislação de apoio à
ação dos mestres da cultura popular. Hoje 24 mestres são sustentados pelo
Estado em troca da transmissão para os mais jovens de seus saberes e fazeres.
Esta política de editais em todas as linguagens artísticas (música, dança,
teatro, literatura, artes visuais, audiovisual) e nas diversas manifestações
culturais (gastronomia, festas etc) tem sido uma marca de nossa gestão no
sentido de fomentar de forma contínua as diversas produções culturais do
Estado, permitindo aos seus atores a possibilidade de aperfeiçoamento de seus
produtos e serviços culturais.
Consideramos ainda que nossa ação deve ter uma importante
intersecção com o turismo. Por isso criamos 11 fóruns regionais de turismo e
cultura em todo o Ceará, para que a indústria do turismo e da cultura possam
otimizar suas ações promovendo de forma coordenada o desenvolvimento das
diversas regiões cearenses. Assim todas nossas ações estruturantes passam a
compor o calendário turístico do Estado. Referimo-nos aqui ao Festival de
Música Popular Brasileira na Serra da Ibiapaba, o Festival Internacional de
Violeiros, Trovadores e Repentistas no Sertão Central, o Festival Internacional
dos Mestres do Mundo no Vale do Jaguaribe, o Festival Nordestino de Teatro no
Maciço de Baturité, a Festa do Livro no Litoral Leste, o Festival de Dança e
Artes Visuais no Litoral Oeste, o Festival de Música de Câmara no Vale do
Salgado, além do Cine Ceará, a Feira da Música, entre outros festivais que
começam a produzir transformações significativas nas vidas dos seus habitantes.
Vale ainda ressaltar a parceria da Secult com o Sebrae na
área do empreendedorismo cultural. No Ceará, em cada feira do Sebrae o Sesc e a
Secult estão presentes numa ação de profissionalização de artistas e produtores
culturais. Chamamos a este projeto de Circuito Ceará de Cultura. Aos poucos,
estas feiras passam não somente a vender produtos agrícolas ou do setor de
pecuária, mas também começam a agregar produtos simbólicos.
Temos um longo caminho a percorrer para o desenvolvimento
das indústrias criativas. Certamente nosso modelo não será exatamente o
proposto pela indústria cinematográfica aos moldes de Hollywood, mas podemos,
nós brasileiros, ousar construir novas experiências que produzam novos impactos
para as relações humanas, a tolerância, a qualidade de vida e a cultura de paz.
O desafio está posto. Talento e Criatividade não nos faltam . Mãos à obra.
Muito Obrigada.
Cláudia Leitão