CULTURA, CIÊNCIA E TECNOLOGIA: O BRASIL DIANTE DO CRESCIMENTO DAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS NO MUNDO

 

Cláudia Sousa Leitão

 

Se buscássemos imprimir uma marca que caracterizasse o século XXI, poderíamos dizer que ele nasce sob o signo da desconstrução. Impossível negar que o arcabouço de idéias, que fundamentou a organização das sociedades até o século passado, demonstra hoje sua exaustão. Os dois grandes pilares do pensamento moderno fundamentaram-se na crença da existência de uma razão universal e única, igual para todos os homens em todos os tempos.

 

O primeiro pilar diz respeito à construção racional do Estado-nação. O segundo se refere à visão da cultura como produto desta razão universal e única, como um elemento superior definidor dos processos ditos civilizatórios.

 

Todos nós somos testemunhas do fracasso destes modelos. De um lado, nacionalismos produziram o terror e a intolerância, do outro, a visão de uma cultura ocidental hegemônica, conduziu-nos a genocídios, à escravidão e à exclusão.

 

Mas estamos no século XXI. É hora de revisitar conceitos e questionar velhos dogmas. È hora de olhar o mundo não mais a partir do conflito entre Estados e suas soberanias jurídico-politicas. É chegada a hora de repensar a subordinação das culturas aos ditames de uma razão única.

 

Transformações são sempre bem-vindas em tempos de crise, tempos contraditórios de conquistas cientificas e ódios ancestrais, tempos que os avanços tecnológicos que forjaram a atual “sociedade do conhecimento” ou da “informação” não conseguem garantir a liberdade de expressão, o pluralismo de idéias e o acesso de todos a estas mesmas conquistas.

 

A conferência Geral da UNESCO, logo após o dramático atentado do 11 de setembro de 2001, virá formatar a “Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural”. Este documento ratifica o esforço dos países na construção de um dialogo intercultural, capaz de contribuir para uma cultura de paz entre os povos, considerando a diversidade cultural, um patrimônio comum da humanidade.

 

Identidade, diversidade, criatividade, solidariedade são as palavras chaves destes novos tempos, palavras presentes nos discursos internacionais, nacionais e locais, em contextos políticos, educativos, econômicos, jurídicos ou sociais.

 

Ao mesmo tempo, agências de desenvolvimento, tais como o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) passam a priorizar o financiamento de projetos, a partir da capacidade de mobilização do capital social e da dinâmica cultural específicos às populações as quais estes projetos se aplicam.

 

Ao se levar em conta a diversidade cultural, abole-se a concepção hierárquica do desenvolvimento, dando-se voz a populações que até então não constituíam parte integrante deste “capital social”.

 

Vale aqui conceituar capital social a partir da visão de Pierre Bourdieu, ou seja, “um atributo individual e coletivo de distinção e, com isso, de domínio dos membros das categorias privilegiadas”. O capital social, segundo o sociólogo francês se apóia no capital econômico (na segurança material), no capital cultural (no manejo do idioma) e no capital social (na constituição de relações). Estes capitais convertem-se, por sua vez, em um capital simbólico, instrumento maior da garantia de sobrevivência dos discursos dominantes.

 

 

Este quadro, aqui sucintamente apresentado pode servir-nos de ante-sala para as nossas reflexões acerca da temática da atual edição da SBPC: ciência e cultura- do sertão olhando o mar”, ao mesmo tempo em que também introduz nossa reflexão sobre a economia criativa e seus novos papéis para os países em desenvolvimento.  Gostaria em um primeiro momento de revisitar o conceito de desenvolvimento para que em um segundo momento possamos conectar as palavras desenvolvimento e criatividade.

 

A primeira grande vinculação entre cultura e desenvolvimento propõe uma espécie de doutrina de predestinação de determinadas sociedades à pobreza ou à riqueza a partir de determinantes ditas culturais. A partir dos anos 80, afirma Guy Hermet, “começam a se produzir dois tipos de inversão dos sentimentos, não menos discutíveis, embora de sentido exatamente oposto: uma delas é fruto do fracasso da ajuda à África e a outra da popularidade que adquiriu, por compensação, a ação humanitária. De repente, graças a amálgamas abusivos sugeridos pelo primeiro desses fatores, tanto os programas de macrodesenvolvimento adotaram a aparência de ilusões onerosas e, às vezes, nefastas, alimentadas pela nostalgia colonialista das grandes potências ou pela inesgotável mas ingênua caridade de organizações vinculadas, em particular, às Igrejas... As organizações humanitárias difundiram a idéia de que os países pobres não tinham a possibilidade de sair de sua indigência a não ser por seus próprios esforços, com um mínimo possível de  intromissão exterior, tendo em conta suas especificidades culturais”.

 

Em 1999, em Paris, o Fórum “Desenvolvimento e Cultura”, organizado pelo BID, vai trazer novos significados a estas duas expressões. A cultura passa a ser percebida como uma matriz dinâmica das formas de ser, estar, se relacionar e perceber o mundo. Neste caso, como seria possível imaginar que os atores do desenvolvimento poderiam desinteressar-se por esta matriz ou mesmo negá-la? Deste modo, desenvolver não significa nada se comprendermos ou associarmos esta palavra a meras construções voltadas à infra-estrutura das comunidades (saneamento, estradas etc). Urge se pensar nas reações e intervenções das pessoas atingidas por estes benefícios. O desenvolvimento não se resume, portanto, ao desenvolvimento econômico, embora o crescimento e a distribuição menos desigual da riqueza material sejam decisivos para a qualidade de vida dos indivíduos. O consumo exagerado de um país de um emirado rico em petróleo, por exemplo, não significa que sua população viva em um país desenvolvido, pois este insumo depende de importações condicionadas à uma renda que arrisca-se a ser efêmera. Ao mesmo tempo, o chamado desenvolvimento autocentrado, que pode aqui ser exemplificado por Cuba, também não permite saltos fundamentais para a riqueza de um país. Como se vê, desenvolvimento não se confunde com “desenvolvimentismo”, tônica da América Latina dos anos 50 e 60, tão presentes no projeto militar que resultou do golpe de 64 neste país.

 

 Ora, vale a pena repensar os modelos de desenvolvimento definidos ou praticados em países com grandes desigualdades. A desigualdade suscita desconfiança, assim como é produtora de uma lógica de distanciamento entre grupos e estratos sociais. E nós, habitantes de países em desenvolvimento, podemos nos perguntar: como reaver o capital social de comunidades excluídas, de ex-colônias submetidas à domesticação de suas culturas, despossuídas de auto-estima e de capacidade de mobilização?. Estas perguntas referem-se não somente a continentes desiguais como a América Latina ou a África, mas dizem respeito a todo planeta. Com os altos fluxos migratórios e uma economia globalizada, os países transformam-se em complexos patchworks culturais, espaços de eterna e conflituosa construção e reconstrução de identificações e de sociabilidades.

 

Como já foi dito anteriormente, e como enfatiza sempre o nosso ministro Gilberto Gil em seus discursos, quando nos referimos à cultura, ou à diversidade cultural, nós a interpretamos como uma matriz primordial de valores e comportamentos que dão sentido a vida de uma população. Cultura não se restringe à “cultura dita erudita”, ou ainda às atividades do espírito ou às linguagens artísticas. Esta compreensão é fundamental para que se compreenda o potencial das indústrias criativas em países como o Brasil, a China e a Índia.

 

Os questionamentos são muitos e as respostas ainda insatisfatórias. A nossa desigualdade avassaladora, a histórica ausência de políticas públicas para o setor cultural neste país, nos motiva a repensar os papéis dos gestores públicos na construção de um novo modelo de desenvolvimento que leve em conta a nossa riqueza e diversidade cultural. E mais, que leve em consideração nossa criatividade como fator estratégico de desenvolvimento local e regional. Desenvolvimento como alavanca para a dignidade, cidadania, autoestima, respeito à diversidade. É com esta visão de desenvolvimento que trabalha o Ministério da Cultura e é o que temos buscado empreender no Ceará.

 

Em nosso Plano Estadual da Cultura 2003-2006, definimos uma política pública em que a cultura fosse compreendida de forma transversal, estando presente em todos os eixos do governo: Ceará Empreendedor, Ceará Vida Melhor, Ceará Integração e Ceará- o Estado a serviço do cidadão.

 

Eixo 1 - Ceará Empreendedor

 

Um dos aspectos mais relevantes da cultura neste novo século é a constatação de que as sociedades da informação, que privilegiam a indústria do lazer, do entretenimento e do mercado de bens simbólicos, movimentam uma economia cada vez mais significativa, criando empregos e redistribuindo renda. Não há como negar a existência de uma economia da cultura, constituída de amplas cadeias produtivas cujos elos merecem ser identificados e estimulados. Considera-se que o empreendedorismo cultural representa uma das importantes opções para o Estado, no sentido de permitir a reconfiguração do perfil do trabalhador cearense, que poderá desenvolver novos negócios e profissões voltadas ao mercado de bens simbólicos.

 

Eixo 2 - Ceará Vida Melhor

 

O plano de governo elege a melhoria da qualidade de vida dos cearenses como um dos seus eixos, compreendendo a cultura como elemento fundamental nesse processo. Experiências têm demonstrado que as ações culturais podem enfrentar o esgarçamento do tecido social das cidades. A violência urbana, o vandalismo, o tráfico de drogas, enfim, grande parte das mazelas das nossas sociedades poderia ser neutralizada a partir da compreensão de que a cultura conforma ações relativas a inúmeras pastas governamentais, como segurança pública, turismo, educação, saúde, esporte e juventude, desenvolvimento econômico etc. Por outro lado, a cultura poderá facilitar as ações públicas no sentido da regionalização, isto é, a cultura poderá rever a tradicional relação “centro / periferia”, revelando vocações regionais, revertendo a macrocefalia da capital em relação às diversas regiões do Estado.

 

Eixo 3 - Ceará Integração

 

A cultura constitui uma pasta estratégica na criação de canais de interlocução dos diversos grupos sociais, para que se atinja uma real integração entre regiões a partir da valorização do território. Pelo seu caráter transversal, a cultura deve ser compreendida como este instrumento facilitador das ações das diversas secretarias estaduais e municipais. Não se pode buscar integração entre regiões se não se compreender que todas elas, independentemente de terem alcançado bons índices de educação formal, são protagonistas de suas próprias culturas. É neste sentido que não se pode falar de “interiorização da cultura” como se pode falar de interiorização da indústria, do turismo da ciência e tecnologia etc.

 

Eixo 4 - Ceará- Estado a serviço do cidadão

 

A transversalidade da cultura também produz seus efeitos na gestão pública. A cultura é um campo fértil para criar sociabilidades, para originar laços de solidariedade e fortalecer o sentimento de pertença a uma determinada coletividade. Assim, as ações culturais serão instrumentos para o estabelecimento do diálogo entre a sociedade civil e o poder público, auxiliando na construção de processos integrados e solidários, formando extensa rede de cooperação. Posicionar o Estado a serviço do cidadão é compreender a pluralidade de interesses, compreensão esta baseada no conhecimento das culturas locais. O campo cultural permite trabalhar as subjetividades, elementos fundamentais para a criação de “espaços de diálogo” com o diverso, na busca dos interesses coletivos.

 

Nós que estamos no alto da América do Sul e a meio caminho entre a América do Norte, África e a Europa, passamos a construir a partir desta privilegiada geografia novos caminhos e oportunidades de encontro entre culturas que nos tem enriquecido e renovado. Sabemos que o Ceará é um estado pobre mas também sabemos da nossa riqueza e diversidade cultural e, em conseqüência do potencial da economia criativa em nosso Estado. Se o conceito de indústria criativa surge na Austrália na década de 90, temos, a partir de então ampliado o seu significado, afinal de contas, as indústrias ou artesanias culturais são por natureza de natureza criativa posto que trabalham na produção de bens simbólicos. Além das tradicionais indústrias fonográfica, cinematográfica, editorial, de software, e do setor de comunicação, devemos estender o raio das indústrias criativas ao mundo das artes, da cultura e da ciência e tecnologia. Neste sentido, os saberes e fazeres populares, as artes performáticas (a dança, o teatro), a literatura, as artes visuais, a música, a publicidade, o design são exemplos de setores que produzem bens e serviços para as indústrias criativas.

 

Sabemos que no Ceará temos ainda um longo caminho a percorrer, no sentido de associar aplicação tecnológica ao capital social e intelectual de nossos artistas e produtores culturais. Em um mundo globalizado, cuja competição é acirrada e muitas vezes injusta, necessitamos profissionalizá-los, através da informação e da capacitação. Afinal, sabemos que as indústrias criativas constituem cadeias ou arranjos produtivos por sua vez constituídos por elos. Não há como pensar em desenvolvimento sustentável no setor cultural sem pensar nas diversas etapas entre a criação, a produção, a distribuição e o consumo de bens e serviços culturais. Se quaisquer destes elos se rompe ou não é devidamente considerado, corremos o risco de abortar o grande potencial de produção e distribuição de riquezas que estas indústrias podem provocar.

 

Entre os programas do Plano Estadual da Cultura, gostaria de apresentar aqui projetos relativos ao fomento da economia criativa no Ceará. Gostaria de realizar a capacitação em parceria com a Secretaria de Ciência e Tecnologia de mestres da cantaria, (formação de 600 horas) cujos professores vieram a Escola de Cantaria do Mosteiro de Batalha em Portugal. Neste momento, trabalhamos em uma primeira incubadora com os profissionais formados no curso em Limoeiro do Norte e acreditamos que as diversas aplicações da pedra da cantaria, presente no Vale do Jaguaribe, junto ao talento e à criatividade dos cearenses, permitirá uma importante contribuição da cultura para o desenvolvimento regional. Também com a Secretaria de Ciência e Tecnologia, nos Centros de Vocação Tecnológica construídos em cada macro região do Estado, a Secult oferece hoje formação profissional em várias áreas típicas à indústria criativa: o desenho para histórias em quadrinhos em Limoeiro do Norte, os cursos para a produção de curtas metragens em Limoeiro do Norte, Sobral, Juazeiro do Norte e Fortaleza ( cursos de audiovisual modular e edição não linear) os cursos de design para a transformação do nosso artesanato em Fortaleza, Juazeiro do Norte e Itapipoca (cursos de serigrafia artística e de desenho, de patchwork/bordados, pintura e gravura) além de oficinas de criatividade com joalheiros e aprendizes em Quixeramobim. 

Gostaria ainda de ressaltar que o Ceará tem enfatizado em seus projetos a preservação de sua memória a partir de seu patrimônio cultural. Neste sentido, regulamentou de forma pioneira no país uma legislação de apoio à ação dos mestres da cultura popular. Hoje 24 mestres são sustentados pelo Estado em troca da transmissão para os mais jovens de seus saberes e fazeres. Esta política de editais em todas as linguagens artísticas (música, dança, teatro, literatura, artes visuais, audiovisual) e nas diversas manifestações culturais (gastronomia, festas etc) tem sido uma marca de nossa gestão no sentido de fomentar de forma contínua as diversas produções culturais do Estado, permitindo aos seus atores a possibilidade de aperfeiçoamento de seus produtos e serviços culturais.

Consideramos ainda que nossa ação deve ter uma importante intersecção com o turismo. Por isso criamos 11 fóruns regionais de turismo e cultura em todo o Ceará, para que a indústria do turismo e da cultura possam otimizar suas ações promovendo de forma coordenada o desenvolvimento das diversas regiões cearenses. Assim todas nossas ações estruturantes passam a compor o calendário turístico do Estado. Referimo-nos aqui ao Festival de Música Popular Brasileira na Serra da Ibiapaba, o Festival Internacional de Violeiros, Trovadores e Repentistas no Sertão Central, o Festival Internacional dos Mestres do Mundo no Vale do Jaguaribe, o Festival Nordestino de Teatro no Maciço de Baturité, a Festa do Livro no Litoral Leste, o Festival de Dança e Artes Visuais no Litoral Oeste, o Festival de Música de Câmara no Vale do Salgado, além do Cine Ceará, a Feira da Música, entre outros festivais que começam a produzir transformações significativas nas vidas dos seus habitantes.

Vale ainda ressaltar a parceria da Secult com o Sebrae na área do empreendedorismo cultural. No Ceará, em cada feira do Sebrae o Sesc e a Secult estão presentes numa ação de profissionalização de artistas e produtores culturais. Chamamos a este projeto de Circuito Ceará de Cultura. Aos poucos, estas feiras passam não somente a vender produtos agrícolas ou do setor de pecuária, mas também começam a agregar produtos simbólicos.

Temos um longo caminho a percorrer para o desenvolvimento das indústrias criativas. Certamente nosso modelo não será exatamente o proposto pela indústria cinematográfica aos moldes de Hollywood, mas podemos, nós brasileiros, ousar construir novas experiências que produzam novos impactos para as relações humanas, a tolerância, a qualidade de vida e a cultura de paz. O desafio está posto. Talento e Criatividade não nos faltam . Mãos à obra.

Muito Obrigada.

 

Cláudia Leitão