Cidmar Teodoro Pais (USP/UBC)
0. Introdução
Retomamos, aqui, algumas
observações e reflexões, de uma pesquisa iniciada há algum tempo, sobre
discursos etno-literários, que exige novas abordagens (Barbosa e Pais,
2003).
Questão relevante relevante
na teoria semiótica é a da tipologia dos discursos e dos universos de discurso.
Paraelaborar uma taxionomia mais satisfatória, autores têm utilizado critérios
diversos: modo de existência e produção, estruturas de poder, relações de
enunciação e enunciado, efeitos de sentido, dentre outros, ou a combinação de
vários deles (Pais, 1982, 1984).
É necessário distinguir o discurso, enquanto processo discursivo de produção – que
compreende enunciação de codificação e decodificação – e o texto, enquanto produto,
enunciado.
Preliminarmente, considerando-se apenas as
semióticas-objeto verbais ou eminentemente verbais, as línguas naturais e seus
discursos – embora sejam acompanhados de outras semióticas-objeto, em sua
manifestação –, costuma-se classificar os discursos em dois grandes tipos: os
discursos literários e os não-literários.
Os estudos de semiótica
literária são os mais antigos na construção da semiótica científica. Nos
anos 70 há desenvolvimento de numerosas pesquisas nesse domínio. Entretanto,
muitos dos primeiros trabalhos voltavam-se para a Etno-semiótica. Contudo, atualmente, em função do avanço das
teorias semióticas e lingüísticas, há uma profunda renovação do estudo dos
discursos etno-literários.
A partir de 1978, desenvolveu-se na Escola de Altos
Estudos em Ciências Sociais de Paris nova disciplina da Semiótica, a Sociossemiótica. Despertou esta grande
interesse no Departamento de Lingüística da USP, em que se produziram
trabalhos, publicados no Brasil e no exterior, em expressivo número, e muitas
dissertações e teses foram defendidas nessa especialidade.
A Sociossemiótica
estuda os discursos sociais não-literários, como o científico, tecnológico,
político, jurídico, jornalístico, publicitário, pedagógico, burocrático,
religioso, dentre outros. Esses universos
de discurso são ditos sociais, porque, embora tenham emissor e receptor
individuais, caracterizam-se por enunciador e enunciatário coletivos, um grupo
ou segmento social, partido políticos, legisladores, comunidade científica,
grupos profissionais, etc. Denominam-se não-literários, porque a função
estética, conquanto neles exista, com características específicas, não é
determinante de sua eficácia, nem de
seu estatuto sociossemiótico,
conferido pela sociedade.
Esses universos de discurso definem-se, por sua vez,
como conjuntos de discursos manifestados e manifestáveis, que tendem ad infinitum, reunidos por critérios de equivalência,
caracterizados por constantes e coerções, suscetíveis de configurar norma discursiva frástica e transfrástica, discursos que mantêm
entre si redes de relações intertextuais e interdiscursivas, inseridos num
contexto lingüístico e sociocultural,
pertencentes à macrossemiótica de uma
cultura.
Os universos de discurso sociais não-literários,
sempre produzidos por grupos ou segmentos sociais que, através deles, se
sustentam, caracterizam-se por estruturas
de poder próprias, mecanismos de argumentação/veridicção
específicos, processos de manipulação
peculiares, relações inter-subjetivas
e espaço-temporais de enunciação e
enunciado igualmente específicas. Definem-se, assim, seus modos de
existência e de produção.
Na sociedade contemporânea, sobretudo da segunda
metade do século XX e no século XXI, o critério de valorização social dos
universos de discurso sociais não-literários é a eficácia. Pense-se, por exemplo, nos discursos político e
publicitário.
Os universos de discurso literários apresentam certas
características muito diferentes. A verossimilhança,
retomada da Antigüidade greco-romana, no Renascimento, ainda desempenha algum
papel entre os sujeitos-enunciatários-leitores. Trata-se do princípio estético
grego da mýmesis: "a arte imita
a vida". É o caso da apreciação de romances e de novelas televisivas, por
parte do grande público. Contudo, a veridicção,
a produção do efeito de verdade – fundamental quando se trata do discurso
científico ou do discurso jurídico –, não é levada em conta, no julgamento dos
discursos literários. A modalidade complexa que se salienta é a do poder-fazer-crer. Os universos de
discurso literários seduzem o
leitor/ouvinte.
Assim, os discursos literários parecem ter outras
atribuições na sociedade. Caracterizam-se como ficcionais, despertam emoções,
suscitam o prazer do texto e
constituem, geralmente, não 'imitações da vida' mas metáforas da vida, que conduzem a uma melhor compreensão desta. A função estética é elemento determinante
de sua eficácia e de sua valorização social.
1. Os
universos de discurso etno-literários
Os critérios de classificação dos discursos e dos
universos de discurso acima vistos têm grande poder de explicação e permitem
circunscrever satisfatoriamente muitos aspectos de uma tipologia discursiva. Contudo, revelam-se ainda insuficientes,
quando se examinam os discursos etno-literários.
Neles se encontram narrativas que por certo não
ocorreram ou, pelo menos, não teriam acontecido como explicitadas. Falta-lhes,
numa primeira leitura, a verossimilhança. Desconhecem-se seuss autores, ou, se
há nomes, não podem ser atestados. O sujeito-enunciador é comumente apagado ou
substituído por um ente imaginário ou virtual. As marcas de tempo e espaço do
enunciado inexistem ou são vagas. Essas características produzem um efeito de
sentido de atemporalidade e remetem a
um espaço que é o da utopia, do não-lugar.
Assim, os discursos etno-literários, de modo geral,
e, particularmente, a literatura oral, a assim chamada literatura popular, os
contos populares regionais não se submetem exatamente aos critérios que
permitem tipificar os discursos literários, da literatura formal, escrita, ou
os discursos sociais não-literários.
Tudo indica que, no caso dos discursos
etno-literários, o sujeito-enunciador é um ente coletivo, que ressurge sempre,
à medida que os textos são retomados, conservados e modificados, e transmitidos
ao longo de gerações.
Por outro lado, não são ficcionais, no sentido estrito do termo, porque lhes falta, como
vimos, a verossimilhança, a uma primeira leitura. Não são documentais, como os textos da História, enquanto ciência, não
contam 'fatos' históricos comprovados. Contrapõem-se à memória oficial,
idealizada, construída pelos historiadores e recriam outro tipo de memória
social.
Entretanto, guardados na memória e repetidos – com
alterações – durante séculos, por pessoas especiais, os contadores, como os
equivalentes a trovadores medievais, e as contadoras, como mulheres do Nordeste
brasileiro, dedicadas a essa prática, tais textos são percebidos pelos
sujeitos-enunciatários-ouvintes simultaneamente como fábulas e como veredictórios,
portadores de 'verdades' gerais e universais. Têm, também, esses textos um
efeito de sentido de permanência,
dizem da natureza humana e podem, por
isso, ser considerados como representantes de formas de humanismo.
Com efeito, muitos desses textos têm sido
registrados, analisados e publicados por pesquisadores. Podem ser encontrados e
lidos em fontes acadêmicas. Citem-se
os valiosos trabalhos de Francisca Neuma Fechine Borges sobre a literatura de
cordel, sobre o Romanceiro do
Nordeste, notavelmente bem estudado por Maria de Fátima Batista, sobre o conto
regional francês e a tradição oral, estudados por Jean-Baptiste Martin.
Convém lembrar que os textos etno-literários são preservados, ao longo de séculos, pela memória coletiva das comunidades e transmitidos de uma geração a outra pelas
populações. Fazem parte da tradição
popular, ou guardados na memória ou registrados em publicações artesanais
e, logo em seguida, transmitidos oralmente.
Os discursos etno-literários sustentam importantes
facetas dos sistemas de valores, dos sistemas de crenças, que integram o imaginário coletivo de uma comunidade
humana. Mostram uma visão do mundo, apresentam as grandes linhas de um mundo semioticamente construído.
Constituem documentos altamente
significativos, reveladores de uma cultura
e do seu processo histórico.
Cantados ou recitados, como foi dito, por contadores
da Idade-Média e, por exemplo, por contadoras do Nordeste brasileiro até os
dias de hoje, relatam 'eventos' inverossímeis, como Chaperon rouge (Chapeuzinho
vermelho) e Robert Le diable, que
têm origem na França, na Provença, no Languedoc e/ou da Península Ibérica, como
também aventuras 'ocorridas' em tempos e lugares incertos ou remotos. Servem
para rir, para a diversão e, concomitantemente, são levados a sério (Greimas, 1978). Trazem, de fato, lições
que as populações facilmente transpõem para a vida contemporânea. Muitos
sujeitos-enunciatários sequer se dão conta da antigüidade dos textos, eis que
os sentem como válidos comentários da vida atual.
Nessas condições, parece legítimo afirmar que os
discursos etno-literários incorporam, sustentam, caracterizam uma identidade cultural. Representam um saber compartilhado sobre o mundo,
traduzido em amplas sucessões de metáforas.
Constituem, pois, os discursos etno-literários um
patrimônio cultural, por sua riqueza, complexidade e diversidade.
2. Os discursos etno-literários e
sua função mítica
Essas
considerações conduzem a observar que os discursos
etno-literários, a literatura oral,
a literatura popular, certos contos regionais conservados pela tradição oral e/ou por uma imprensa
artesanal, popular, e sustentados por um sujeito-enunciador coletivo,
assemelham-se, em muitos aspectos, ao mýthos
da cultura grega antiga. Têm seus textos importantes funções culturais e
socais. Desempenham, um papel na socialização dos membros da comunidade e, além
disso, uma função estética, uma função didática, uma função mítica.
Assim
como forma que os mitos gregos, os mitos dos indígenas da América do Norte, dentre
muitos outros, aqueles discursos e seus textos oferecem subsídios importantes
para os estudos antropológicos e para as reflexões psicanalíticas. Ensinam ao
sujeito-enunciatário individual e/ou coletivo elementos cruciais da natureza
humana, da alma, dos impulsos, da afetividade, em suma, da psyché humana.
De
certo ângulo, esses discursos etno-literários poderiam ser considerados ficcionais, na medida em que os
‘eventos’ narrados são ou parecem ser inverossímeis,
se tomados denotativamente, e não correspondem a fatos historicamente
comprovados. Aproximar-se-iam, então, da fábula.
De
outro ângulo, porém, esses discursos, como vimos, revelam e sustentam sistemas
de valores, sistemas de crenças, um ‘saber’ compartilhado sobre o ‘mundo’ que
integram o imaginário coletivo de uma
cultura, de uma sociedade. Contribuem, assim, para o sentimento de sua permanência no eixo da História e para a
configuração de uma identidade cultural,
intuitivamente, ao menos, reconhecida pelos membros da comunidade em causa. Levando-se
em conta a sua continuidade no tempo, a sua presença nos dias que correm,
parece legítimo vê-los como documentos do
pensamento e dos valores coletivos, imprescindíveis, portanto, para a
compreensão do processo histórico da
cultura.
Nesses
termos, foi possível elaborar um modelo semiótico que permitiria situar os
discursos etno-literários, em relação aos discursos literários na concepção
tradicional e aos discursos sociais não-literários. Esquematicamente, temos:
Tensão dialética
Discursos etno-literários
Documentais Ficcionais
Discursos sociais Discursos
não-literários literários
Não-ficcionais Não-documentais
Æ
Documentais
e ficcionais são termos de
metalinguagem, devem ser lidos, aqui, como duas tendências contrárias. Os discursos
sociais não-literários têm um estatuto sociossemiótico, conferido pela
sociedade, que os caracteriza como documentais
x não-ficcionais, de acordo com o seu modo de existência e produção
socialmente aceito, de forma que constituem a dêixis positiva do modelo. Os discursos literários stricto sensu são
vistos pela sociedade como aqueles que tendem
a ser a combinação de ficcionais x
não-documentais, o que lhes dá a posição da dêixis negativa, no mesmo
modelo. Nessa perspectiva, os discursos
etno-literários sustentam-se numa tensão dialética entre os dois termos, documentais x ficcionais, por todas as
razões acima expostas. Confirma-se, uma vez mais, a sua função mítica.
3.
Considerações finais
Parece, portanto, que a proposição
de uma tipologia dos universos de discurso e dos discursos-ocorrência que os
manifestam teria de levar em conta, necessariamente, os diferentes aspectos que
definem as constantes e coerções das normas discursivas que os sustentam. Por
outro lado, na medida em que os discursos e os seus textos só significam nas
relações de interdiscursividade e de intertextualidade, torna-se imprescindível
levar em conta essas relações.
Sabe-se, por exemplo, que o discurso
científico, quanto às estruturas de poder, qualifica-se como um poder-fazer-saber; o discurso
tecnológico se define como um poder-saber-fazer;
o discurso jurídico, como um
poder-fazer-dever; o discurso religioso, como um poder-fazer-crer; o discurso publicitário apresenta uma combinatória
modal mais complexa, por exemplo, poder-fazer-saber
Þ
poder-fazer-crer Þ poder-fazer-querer.
Referência bibliográfica:
PAIS, Cidmar Teodoro e BARBOSA,
Maria Aparecida. Tradition orale, littérature
populaire et discours ethno-littéraire: approche sémantique et lexicale. Textures, Cahiers du CEMIA. Lyon,
Université Lumière Lyon 2, v. 10, p. 11-25, 2003.