“Festas, ventos ruins, chuva e temporal”:
A viagem Fortaleza-Rio de Janeiro.
(14 de Setembro – 15 de Novembro de 1941)
Berenice
Abreu de Castro Neves
Universidade
Estadual do Ceará
Era uma quarta feira do ano de 1941,
debaixo dos cajueiros da Praia de Iracema palestravam quatro pescadores:
Jacaré, Mestre Jerônimo, Mané Preto e Tatá.
Dentre outros assuntos, analisavam a situação de penúria de sua classe.
Terminaram o assunto do dia com uma decisão: chegara a hora de realizar o projeto
da viagem até o Rio de janeiro, centro das decisões políticas do país. Há
mais de três anos alimentavam a idéia e entenderam que o momento oportuno era
aquele. Iriam, portanto, se entender diretamente com o Presidente Getúlio
Vargas – e mais: iriam de jangada!
A decisão de que “a hora tinha
chegado”, para Jacaré e seus companheiros, estava informada pela leitura que
fizeram no contexto político em que viviam, o Estado Novo e a política
trabalhista então em voga. Tinham notícias dos benefícios da legislação social
e das realizações do governo em relação à pesca: a criação do Código de Pesca,
de 1938, e a incorporação oficial da Escola de Pesca Darcy Vargas, na restinga
de Marambaia, estado do Rio de Janeiro. Com tudo isso, entenderam que aquele
presidente “inteligente e bom” sabia olhar “pelos pequeninos”, como eles.
Dentro, então, desse campo de possibilidades, eles iriam até o Rio,
“lutar pelos direitos”, como disse Jacaré a um jornalista carioca.
Procuraram os “amigos” da cidade
para contar a decisão e buscar apoio, afinal era uma viagem que demandava
custos para a confecção da jangada, para os suprimentos alimentares e outros
itens necessários durante o deslocamento, e, ainda, para manter as extensas
famílias que ficariam sem seus provedores durante um bom tempo. Os “amigos”, de
pronto, aceitaram apoiar a “temerosa” iniciativa dos pescadores. Afinal, os
jangadeiros eram admirados por todos por sua coragem e “afoitesa”, domando o
oceano como titãs modernos. Uma ampla campanha foi acionada para obter as
condições matérias imprescindíveis.
Enquanto a campanha em favor dos
pescadores seguia com grande sucesso, uma primeira “tempestade”, ainda em
terra, teve que ser vencida. A autorização oficial para a partida da “Jangada
São Pedro” não era concedida. A justificativa era de que a viagem contrariava
normas de segurança, os riscos eram muito altos. Para os pescadores e seus
amigos da Imprensa dos Diários Associados o motivo era bem outro: temiam-se, de
fato, as denúncias a serem feitas pelos jangadeiros. Depois de algum tempo, após
intervenção pessoal de Menezes Pimentel, Interventor Federal no Ceará, junto ao
Ministro da Marinha, finalmente a autorização chegou, mas os pescadores tiveram
que assinar um documento isentando todas as autoridades competentes de
responsabilidades sobre a viagem.
Durante 61
dias, enfrentando tempestades, ventanias, falta de ventos, baleias, tubarões e
muitas festas, os jangadeiros escalaram pela costa brasileira, travando contato
com outros pobres pescadores. Da viagem, tiraram um aprendizado único em suas
vidas: se deram conta de que a pobreza não era exclusiva dos cearenses. Era um
aprendizado de classe, que não estava previsto, nem para eles, nem tampouco
para os amigos graúdos. Decidiram que falariam com Vargas também em nome desses
“companheiros de palhoça e de sofrimento”. Saíram do Ceará como cearenses e
chegariam ao Rio como brasileiros.
Chegaram ao Rio de Janeiro debaixo
de papéis picados e toques de sirenes no dia 15 de Novembro; afinal, o clima de
nacionalismo reinante no período levou os profissionais da imprensa a
consagra-los como “autênticos representantes do povo”. Falaram com o presidente
“ombro a ombro”, bem ao estilo político de Vargas e, plenamente aprovado pelos
pescadores, obtiveram do Estado Novo o tal “direito” de que tanto falavam. A
jangada São Pedro permaneceu por alguns dias “musealizada” na Cinelâdia, sob os
olhares curiosos dos transeuntes, uns louvando, outros vislumbrando sua breve
sepultura. Voltaram do Rio de Janeiro em um avião da Navegação Aérea
Brasileira, num vôo, segundo os diretores dessa empresa, de “forte cunho
nacionalista”.
Tentarei desenvolver em minha
participação nesse simpósio uma narrativa densa da viagem desses quatro
pescadores, articulando alguns eventos que se sucedem às estruturas que os
informam, problematizando assim: 1) a leitura que os pescadores faziam da
política trabalhista de Getúlio Vargas; 2) as teias paternalistas em que estão
envolvidos os populares, seu alcance e limites; 3) o significado do espetáculo
e da festa no universo da política; 4) a estrutura de sentimentos de
matriz nacionalista que se desenvolve a partir da viagem e em torno da figura
dos jangadeiros e da jangada.
Servirão de fontes nessa narrativa:
1) dois diários elaborados durante a viagem, o “diário de bordo da Jangada São
Pedro”, escrito por Jacaré e seus “companheiros de palhoça e de sofrimento”, e
o “diário do raid”, registro de várias autoridades políticas, civis,
religiosas, nos lugares por onde passaram os pescadores (hoje objeto
museológico); 2) os filmes produzidos no período ou a partir da viagem: “A
Jangada Voltou Só”, realizado pelo DIP em Fortaleza em outubro de 1941, e o
episódio “Quatro Homens em uma Jangada”, de Orson Welles; 3) os jornais que
circularam no período em Fortaleza, Salvador e Rio de Janeiro, que cobriram
amplamente o episódio.