RISCOS SÓCIO-AMBIENTAIS AO LONGO DA ZONA COSTEIRA

 

Antonio Jeovah de Andrade MEIRELES

Prof. Dr. do Departamento de Geografia

Universidade Federal do Ceará – UFC

Departamento de Geografia, Bloco 911, Fortaleza/CE

 

Introdução

            Os riscos estão relacionados com a utilização e a ocupação desordenada dos sistemas ambientais que dão suporte à evolução morfoestrutural da zona costeira, à sustentação sócio-econômica e cultural das comunidades tradicionais e à conservação da biodiversidade. Os que irão ser destacados neste artigo foram relacionados com a utilização do ecossistema manguezal e do carnaubal (implantação de fazendas de camarão e a expansão das cidades e o turismo industrial) e a especulação imobiliária e a grilagem de terra em dunas e falésias.

            Os impactos ambientais, através de intervenções que não levaram em conta a interdependência existente entre os processos morfogenéticos, os ecossistemas costeiros e os povos do mar, acumularam-se em cada uma das unidades ambientais do litoral. Alteraram a quantidade e a qualidade da água nos estuários, dunas e  falésias, interferiram na diversidade biológica dos manguezais e da mata ciliar reduzindo o habitat de numerosas espécies e  diminuiu de forma contínua a disponibilidade de sedimentos ao longo da linha de praia. Vincularam-se com o deslocamento e migração das comunidades tradicionais, deterioração da qualidade de vida e da segurança alimentar. A especulação imobiliária e a indústria do camarão consomem vorazmente a paisagem, em detrimento da preservação e conservação dos sistemas que estruturam a base das reações geoambientais, ecodinâmicas e de subsistência dos pescadores, marisqueiras, agricultores e índios.

            Estas relações de uso e ocupação da zona costeira conduziram a um estado crítico de manutenção da qualidade sócio-ambiental. A relação socieade-natureza, pautada na exploração dos recursos naturais e na exclusão social, ultrapassou os limites da sustentabilidade. Foram amplamente descaracterizadas as conexões entre os fluxos de matéria e energia que fundamentam a interdependência entre as reações evolutivas que controlam a diversidade dos geossistemas e processos ecodinâmicos associados.

 

Carcinicultura

            O IBAMA (2005) realizou o mais completo estudo sobre os impactos ambientais da carcinicultura no Estado do Ceará. As 245 fazendas de camarão, com uma área total de 6.069,97 hectares, foram visitadas para a definição de aproximadamente 39 indicadores diretos de impactos ambientais.

            Verificou-se que do total das fazendas licenciadas pela Superintendência Estadual do Meio Ambiente SEMACE,  84,1%  impactaram diretamente o ecossistema manguezal (fauna e flora do mangue, apicum e salgado); 25,3% promoveram o desmatamento do carnaubal e 13,9% ocuparam áreas antes destinadas a outros cultivos agrícolas de subsistência. No rio Jaguaribe, 44,2% das piscinas de camarão foram construídas interferindo diretamente no ecossistema manguezal e 63,6% promoveram danos de elevada magnitude a um dos mais importantes carnaubais de nossas bacias hidrográficas. Dados mais assustadores ainda foram definidos nos estuários dos rios Pirangi, Acaraú, Coreaú e Timonha, com 89, 5%,  96,9%, 90,9% e 100% respectivamente, com as atividades de criação de camarão dentro do ecossistema manguezal (nos rios Acaraú, Coreaú e Timonha, 78,1%, 72,7% e 81,8% respectivamente, provocaram desmatamentos da vegetação de mangue).

            A grande maioria dos empreendimentos proporcionou a disseminação  espécies exóticas, pois não contavam com mecanismos de segurança eficientes para evitar a invasão de uma espécie de camarão (Litopenaeus vannamei) estranha aos manguezais do Brasil. Definiu-se que somente 21,6% dispunham de licença correspondente à sua fase de implantação e dentro da validade. Nas  fazendas abandonadas, os diques continuam como nas em operação, inviabilizando as reações ambientais que dão sustentação à diversidade de fauna e flora do manguezal e dos demais ecossistemas das bacias hidrográficas. Verificou-se também que 77% das fazendas de camarão não contam com bacias de sedimentação (lançam diretamente seus efluentes na água dos rios, lagoas e estuários), o que vem a confirmar os elevados danos ambientais já definidos por pesquisadores das Universidades, representantes de Comitês de Bacias, ambientalistas e comunidades tradicionais (pescadores, agricultores, índios e marisqueiras). Com tais níveis de insustentabilidade ambiental, 67,9% dos criatórios foram acometidos por enfermidades (63% no litoral leste e 90% no oeste), provocando a morte dos camarões e a provável contaminação de outros organismos nativos.

            Liberar investimentos sob a alegativa de que vai gerar empregos, considerada a mais forte argumentação dos empreendedores, não será mais justificativa, pois foi definido índice de até 3,20 vezes menor em média (empregos diretos observado na totalidade das fazendas) do que o divulgado pela Associação Brasileira de Criadores de Camarão ABCC (2004). No rio Acaraú, por exemplo, foi definido um índice 6,3 vezes menor do que o propalado pelos carcinicultores. Quando a SEMACE libera as fazendas de camarão, através de pareceres técnicos que orientaram o Conselho Estadual de Meio Ambiente COEMA, dentro do ecossistema manguezal (apicum e salgado) e demais unidades de preservação permanente (áreas úmidas, mata ciliar e carnaubal), está cometendo um grave dano socioambiental. A Resolução 02/2002, que orienta a carcinicultura no Ceará deverá ser completamente revista e suspenso os licenciamentos.

            Nas terras indígenas Tremembé de Almofala e de São José e Buriti, as fazendas de camarão desmataram o ecossistema manguezal e a mata ciliar. Utilizou um sistema lacustre de usufruto da comunidade indígena extinguindo uma importante fonte de alimento. Danos sócio-ambientais e culturais de elevada magnitude.

            Verificaram-se impactos de elevada magnitude relacionados com a salinização do aqüífero. Ao longo do estuário do rio Jaguaribe, comunidades de pescadores como Cumbe e Porto do Céu,  tiveram seus mananciais subterrâneos salinizados. Evidenciaram-se problemas desta natureza também nos estuários dos rios Pirangi e Acaraú. 

            Constatou-se que esta atividade levou em conta unicamente os custos de mercado, em detrimento dos danos ambientais, ecológicos, culturais e à biodiversidade. Comunidades foram expulsas de suas atividades tradicionais, índios estão em grave perigo de perda de suas bases alimentar e cultura, pescadores foram torturados, ameaçados de morte e impedidos de pescar. Agora resta exigir a paralisação das atividades, recuperação das áreas degradadas e, definitivamente, levar em conta os lamentos dos povos do mar e seus motivos para preservar ecossistemas que irão sustentar a qualidade de vida das futuras gerações.

Figura 1 – Danos ambientais ao ecossistema manguezal a partir da implantação das fazendas de camarão (Meireles e Vicente da Silva, 2003).

            Os principais danos ambientais relacionados com a carcinicultura foram (IBAMA, 2005; Meireles 2004; Araújo e Araújo, 2004; GT-Carcinicultura, 2004; Cassola et al., 2004; Meireles e Vicente da Silva, 2003; BIOMA/NEMA, 2002; Tupinambá, 2002; Coelho Jr. e Schaeffer-Novelli, 2000): desmatamento do manguezal, da mata ciliar o do carnaubal; extinção de setores de apicum; soterramento de gamboas e canais de maré; bloqueio do fluxo das marés; contaminação da água por efluentes dos viveiros e das fazendas de larva e pós-larva; salinização do aqüífero;  impermeabilização do solo associado ao ecossistema manguezal, ao carnaubal e á mata ciliar; erosão dos taludes, dos  diques e dos canais de abastecimento e de deságüe; empreendimentos sem bacias de sedimentação; fuga de camarão exótico para ambientes fluviais e fluviomarinhos; redução e extinção de  habitates de numerosas espécies; extinção de áreas de mariscagem, pesca e captura de caranguejos; disseminação de doenças (crustáceos); expulsão de marisqueiras, pescadores e   catadores  de caranguejo de suas áreas de trabalho; dificultar e/ou impedir acesso ao estuário e ao manguezal; exclusão das comunidades tradicionais no planejamento participativo; doenças respiratórias e óbitos com a utilização do metabissulfito; pressão para compra de terras; desconhecimento do número exato de fazendas de camarão; inexistência de manejo; não definição dos impactos cumulativos e biodiversidade ameaçada.

 

Dunas

            A implantação de empreendimentos hoteleiros sobre o campo de dunas (projeções para os próximos 10 anos apontam 73 hotéis cinco estrelas, dezenas de campos de golfe e lagos artificiais e vários condomínios multifamiliares), promoverá um colapso de sedimentos ao longo da zona costeira cearense e danos a uma reserva estratégica de água e de biodiversidade. A projeção dos equipamentos planejados de acordo com a dinâmica atual,  promoverá uma séria de alterações ambientais: a) bloqueio do fluxo natural de sedimentos eólico; b) erosão dos bancos de areia dispostos nos canais de maré e estuários; c) erosão acelerada nas margens dos estuários e faixa de praia; d) danos aos equipamentos urbanos existentes nas imediações das margens dos estuários e na faixa de praia; e) soterramento dos equipamentos projetados pela continuidade do processo de migração das dunas; f) impermeabilização do campo de dunas; g) danos aos exutórios de água doce; h) extinção de lagoas costeiras e interdunares e,  h) danos á fauna e flora.

As areias que alcançam os estuários e canais de maré, via campo de dunas,  retornam para a zona de estirâncio a partir da hidrodinâmica estuarina (Figura 2). Deste ponto, alimentam a deriva litorânea e mantêm um perfil de praia de acordo com a dinâmica imposta pelo clima de ondas, notadamente sem a presença de processos erosivos contínuos. As intervenções direcionadas para o bloqueio do bypass poderão regionalizar os efeitos erosivos, alterando a dinâmica dos processos morfogenéticos na plataforma continental proximal e nas praias.

            Um empreendimento hoteleiro de um grupo espanhol denominado de Cidade Nova Atlântida Ltda., planeja construir em terras tradicionalmente ocupadas pelos índios Tremembé de São José e Buriti, em uma primeira fase, 28 hotéis cinco estrelas, 3 campos de golfe, cinco marinas nas margens do manguezal e 6 condomínios residenciais. Os estudos para a implantação desta estrutura faraônica não levaram em conta a presença indígena, os impactos cumulativos, nem muito menos os custos sociais, ecológicos e culturais às comunidades tradicionais.

 

 

Figura 2 – Modelo de bypass de sedimentos associado aos estuários e canais de maré (Meireles 2001).       

 

            Campos de dunas móveis e eolianitos repletos de sítios arqueológicos, reservatórios de água potável, nascedouros de riachos de águas cristalinas, serão ocupados por uma elevada densidade de equipamentos hoteleiros. O tabuleiro litorâneo será utilizado justamente onde estão os riachos, as lagoas perenes e sazonais, a mata e uma diversificada fauna incluindo aves migratórias. Ao longo do ecossistema manguezal, lugar de pesca, mariscagem e coleta de caranguejos, foi projetada a construção de cinco marinas e ancoradouros. Foi também nas margens desse ecossistema de preservação permanente que ocorreram desmatamentos do manguezal e do carnaubal para a implantação de uma fazenda de camarão (atualmente abandonada). Ao conversar com um índio Tremembé (da aldeia São José, 70 anos) ao lado da tapera de seu bisavô na margem esquerda do rio Mundaú, disse da importância vital das relações ecológicas e de seu modo de vida interdependente com os demais sistemas costeiros da região: “a água nasce e se creia na nossa terra, quando desmata, a água se acaba; é a natureza quem agüenta a água”.

            Está em risco o direito à posse e ao usufruto exclusivo dos índios de São José e Buriti sobre as riquezas naturais de sua terra: serão impedidos de desenvolverem suas próprias relações produtivas, segundo seus usos, costumes e tradições; as atividades tradicionais eficientes e ecológicas de plantio de roçados e vazantes e a pesca, voltadas para a subsistência, poderão ser extintas para dar lugar a hotéis luxuosos direcionados para o mercado internacional.

            Em setores de campos de dunas associados a promontórios, as dunas que migram continente adentro, acabam alcançando a faixa de praia (Ponta do Mucuripe na década de 40, Ponta Grossa em Icapuí, Ponta do Pecém, entre outras), aportando areia para o transporte regido pelas ondas (Figura 3). Ao serem ocupados pelo crescimento das cidades e obras portuárias (praias da Caponga, de Sabiaguaba, do Futuro, da Barra do Ceará e do Pecém), produziu-se um déficit cumulativo de sedimentos em um extenso trecho de praia; com resultados erosivos de elevada magnitude.

 

Figura 3 – Modelo de bypass de sedimentos associado aos promontórios (Meireles, 2001).

 

            Campos de dunas nas proximidades dos centros urbanos estão fortemente impactados pela mineração e trânsito de veículos. Trata-se de um sistema ambiental que: a) protegem as praias contra os efeitos de marés altas e de ressacas; b) atuam como suporte de sedimentos para o  bypass de areia para a deriva litorânea e, a médio e longo prazos, para minimizar efeitos erosivos; c) representam depósitos de areia que regulam o aporte sedimentar para a faixa de praia durante eventos de ressacas, tempestades e ondas de “swell”; d) resguardam uma elevada biodiversidade associada à inter-relação com os demais ecossistemas; e) os campos de dunas estão vinculados a lagoas interdunares e costeiras; f) quando nas proximidades do ecossistema manguezal, atua como suporte sedimentar e de água doce para as reações ecodinâmicas do manguezal e da fauna associada; g) normalmente trata-se do mais importante reservatório de água doce (qualidade e quantidade de água armazenada) da planície costeira; h) além de uma reserva estratégica de água, a pressão hidrostática do aqüífero exerce uma função protetora contra a salinização da água; i) a variedade de habitats favorece a diversidade de fauna e flora e vínculos ecológicos com os demais ecossistemas da bacia hidrográfica; j) a reserva estratégica de água doce também é vital para a biodiversidade, dando suporte a uma cobertura vegetal arbórea e ecossistemas vinculados aos lagos sazonais e pequenos riachos.

            Este conjunto de funções geodinâmicas e ecológicas sustenta uma paisagem costeira exuberante, completamente integrada e controlando,  em grande parte,  a dinâmica evolutiva dos demais sistemas (praia, estuários, lagoas costeiras e tabuleiro litorâneo). Trata-se ainda de um ambiente de relevante interesse para pesquisas científicas e para o desenvolvimento de aulas de campo para as escolas e universidades. Verificou-se que os campos de dunas resguardam sítios arqueológicos (dunas de Sabiaguaba e das Terras Indígenas Tremembé e Jenipapo-Kanindé), com importantes registros das etnias e demais comunidades tradicionais que, utilizando a biodiversidade dos ecossistemas associados, povoaram amplamente a planície costeira cearense.

            Impactos socioambientais relacionados com a ocupação dos campos de dunas foram associados com a especulação imobiliária e a expulsão de pescadores que ancestralmente conviviam com a dinâmica dos campos de dunas. Deram lugar a empreendimentos que fragmentaram o sistema costeiro e que danificaram seriamente os ecossistemas que tradicionalmente garantiam a sua sustentabilidade das comunidades tradicionais.

 

Recomendações finais e conclusões.

            A atuação conjunta durante as etapas de licenciamento (União, Estados e Municípios), de monitoramento e de fiscalização, envolvendo os órgãos ambientais, o Ministério Público, as Universidades, as ONG’s e, principalmente, representantes das comunidades tradicionais direta e indiretamente atingidos pelos empreendimentos de carcinicultura, representa um importante passo para minimizar os danos ambientais. É importante salientar que as ações deverão ser fundamentadas no fortalecimento das políticas de fiscalização e de educação ambiental para o combate e a prevenção dos crimes contra a biodiversidade, de extinção de ecossistemas da zona costeira e de habitates vinculados diretamente às atividades de subsistência das comunidades tradicionais.

            Para o desenvolvimento da carcinicultura e a ocupação dos campos de dunas, os recursos das agencias públicas para financiamento não deverão ser liberados quando da utilização de áreas de preservação permanente. Deverão priorizar a produção consorciada, a aplicação de tecnologias limpas e o policultivo. Priorizar a demarcação das faixas marginais de preservação permanente (dunas, ecossistema manguezal, mata ciliar, carnaubal e demais sistemas ambientais vinculados) associada com projetos de revitalização de bacia e proteção integral do solo, da vegetação, da fauna e da flora.

            Com a seqüência de danos ambientais ao longo do ecossistema manguezal e dos campos de dunas, é urgente, por parte dos órgãos ambientais, a imediata proibição dessas práticas degradadoras e a aplicação das penalidades previstas em lei. Deverá ser seguida da elaboração de planos de manejo e de recuperação das áreas degradadas, com a delimitação das Terras da União, dos terrenos de marinha e seus acrescidos, a demarcação de terras das comunidades nativas e o reconhecimento das posses legítimas das comunidades tradicionais.  

 

 

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