A CIÊNCIA
E A EMANCIPAÇÃO HUMANA*
DE UM OBSCURANTISMO A OUTRO ?
Anselm Jappe**
Qual é a
posição na história da relação entre o que pode ser chamado, em sentido amplo,
"pensamento emancipacionista" (isto é, a liberação dos indivíduos da
coerção heterônima, da forma de vida não sujeita à discussão livre, portanto de
diversas formas de fetichismo social) de um lado, e a confiança na ciência e
nas suas aplicações tecnológicas do outro lado ?
Durante muito tempo -desde as primeiras manifestações do Iluminismo em diante- a crítica social via a ciência como sua aliada, concebida como o oposto da religião e da tradição, isto é, dos reinos estabelecidos sem discussão e sem justificativa.
O advento
de uma sociedade melhor era muitas vezes considerado como a conseqüência
inevitável do progresso da ciência e da sua aplicação à vida e às forças
produtivas. Progresso social e progresso científico pareciam marchar no mesmo
passo. Antes, o socialismo parecia a condição social necessária para que a
ciência pudesse verdadeiramente desenvolver o seu potencial de melhorar da vida
humana.
Vice-versa,
o contínuo progresso da ciência parecia garantir sozinho, com o passar do
tempo, o triunfo das idéias de emancipação. Já durante a Revolução Inglesa, um
dos grupos mais radicais propôs abolir a pregação dominical e substituí-la por
conferências sobre as ciências. Estas convicções encontravam-se tanto entre os
iluministas franceses como também entre os 'socialistas utópicos' no início do
século XIX, e o marxismo - que não por acaso - denominava-se
"científico" - formulava a "lei" histórica segundo a
qual o crescimento das forças
produtivas acaba sempre por derrubar as relações de produção. Mas, do mesmo
modo, as mais modestas tentativas das cooperativas de operários e de diversos
reformadores, filantrópicos e humanistas de melhorar a vida cotidiana das
classes populares com relação à saúde, à habitação e etc, referiam-se sempre
aos bens realizados pela ciência. A sociedade do futuro parecia essencialmente
consistir em uma aplicação rigorosa da ciência e tecnologia na vida de todos, e
esta convicção explica em parte o sucessivo desenvolvimento do leninismo e da
socialdemocracia - recordemos a afirmação de Lênin segundo a qual o comunismo
era o poder dos soviets mais a eletrificação do país inteiro". Muitas
vezes, estes esforços para difundir princípios científicos nas classes
populares viam objetivamente aliados os promotores (reformistas ou
revolucionários que fossem) de melhoramentos sociais de um lado, e as instituições
estatais do outro, no esforço de erradicar o "obscurantismo" no qual
certas camadas teimavam em viver. De fato, a introdução de medidas higiênicas,
a demolição de edifícios insalubres, a difusão de novos métodos educativos, não
mais entregues exclusivamente às famílias, e, geralmente, a escolarização, o
impulso em direção a novos hábitos alimentares, a luta contra o alcoolismo, a
medicação da vida a partir do parto e etc, foram sentidos por vastas camadas
populares como imposições nocivas e prejudiciais aos seus direitos ancestrais -
e não por acaso - porque estas novidades andavam, em geral, no mesmo passo, com
a introdução de novos ritmos de trabalho, a burocratização da existência e de
tantas outras amabilidades que acompanharam a imposição do capitalismo. Sabe-se
que Lênin, Antonio Gramsci e outros teóricos do movimento operário, nos anos
vinte, alegravam-se com a obra sã de disciplinamento que o trabalho
"fordista", com a sua esteira de montagem, empunha aos operários,
libertando-os da sua excessiva inclinação para o sexo e o álcool.
A tentativa
de desqualificar todas as críticas à ciência e à indústria, como nostálgicas de
uma ordem hierárquica e imutável da sociedade, não resiste a um exame
histórico.
Desde o
início, isto é, desde a época das Luzes, existiu quem formulasse críticas
semelhantes, sem por isso referir-se positivamente à religião ou desejar um
retorno à Idade Média. Mas é sobretudo no período entre as duas guerras
mundiais que se forma uma vasta corrente de crítica à sociedade industrial,
exatamente em nome da emancipação social, de Gustav Landauer à Escola de
Frankfurt, de Ernst Bloch a Walter Benjamim. Outras críticas agudas são
formuladas depois da Segunda Guerra Mundial por pensadores não-marxistas como
Ivan Illich, Jacques Ellul, GÜnter Anders ou Lewis Mumford, o que evidencia,
portanto, um crescente déficit da reflexão marxista.
Naturalmente,
o progressismo triunfante, aquele no qual o progresso social e progresso
tecnológico coincidiam, não poderia ignorar certos lados negativos da tecnologia.
Mas estes vinham atribuídos somente ao único fato da propriedade privada e
considerados corrigíveis em um regime "socialista"
- até a afirmação em voga antes de Chernobil, que as centrais nucleares dos
países do "socialismo real" fossem seguras, porque de propriedade do
povo, não estariam sujeitas à busca de proveito individual. Todas as críticas
da sociedade industrial e dos seus pressupostos técnico-cientificos vêm então,
imediatamente, acusadas de serem "reacionárias", "obscurantistas"
e "nostálgicas do passado" e de fazerem o jogo do atual retorno às
religiões. Geralmente, admite-se que exista somente um nocivo uso da ciência e
da tecnologia, enquanto uma crítica voltada à sua estrutura profunda, que fez
vir à tona a sua tendência intríseca de livrar-se de controle e a desenvolver
mecanismos totalmente autônomos, vem aceita, quando muito, nos casos mais
evidentes, como os caos nucleares e os casos de tecnologia genética. Um caso
típico desta atitude é opor a "nociva" pesquisa privada à
"boa" pesquisa pública no campo das biotecnologias, como se o
problema não fosse as biotecnologias enquanto tal, mas somente o uso delas pela
indústria privada.
Raramente,
chega-se a perguntar qual relação existe entre a complexidade científico-tecnológica
e a possibilidade de uma gestão democrática, e ainda menos coloca-se em
discussão as necessidades e os desejos, e a concepção de vida e do homem, que
estão na base do desejo a contínuos "progressos" científicos. Hoje é
necessário perguntar-se mais qual é a quantidade de ciência e tecnologia - e
quais - podem encontrar lugar na lógica da emancipação. Esse debate não se
deixa mais aprisionar nas categorias de "reacionário" e
"progressista", e nem de "direita" e "esquerda".
Se é impossível democratizar o aparelho produtivo, porque é demasiado complexo,
então é necessário resignar-se a uma necessária dose de opacidade autoritária,
para não renunciar a nenhuma oportunidade tecnológica, ou então seria este um
argumento para reduzir este aparelho reprodutivo ? A questão é: um novo
utensílio aumenta ou diminui o controle sobre as nossas vidas? Pode ser objeto
de uma apropriação emancipatória, ou aumenta a dependência aos peritos e especialistas?
Não se pode fazer um debate livre, se o saber é seqüestrado pelos técnicos, se
cada pequena ou grande decisão pode ser tomada somente no quadro já traçado
pelos "dispositivos técnicos". Não existe nenhuma emancipação sem
controle sobre uma parte da própria vida cotidiana.
O sistema
técnico-econômico - ao contrário de cada controle consciente sobre as nossas
condições de vida - nos mantém, de tal modo, reféns em um estágio em que não
somos mais capazes de mudar nenhum detalhe, por mais grave que pareça a questão
( seja o buraco na camada de ozônio, o amianto, a dioxina ou a questão nuclear
). Isso forma um entrelaçamento em que fatores técnicos e fatores socioeconômicos,
em sentido restrito, remetem sempre um ao outro. Mas os grandes problemas que
aflingem o mundo, há pouco pareciam resolvíveis através da ciência e da
tecnologia.
Sabe-se,
para citar somente dois exemplos gritantes, que a fome no mundo não é devida a
rendimentos agrícolas insuficientes que podem melhorar com técnicas agrícolas
mais eficientes, eventualmente genéticas. A fome no mundo tem, evidentemente,
causas sociais e econômicas. E sabe-se que se o objetivo é reduzir doenças e
sofrimentos no mundo, facilitar o acesso à água potável, seria infinitamente
mais eficaz - e mais fácil ao mesmo tempo - que alterar a organização dos
cromossomos ou fingir encontrar remédios para as doenças genéticas. A ciência
não é um instrumento neutro, da qual contam somente os seus gestores, mas é a
sua estrutura a ser, pelo menos em parte, determinada pela forma capitalista,
ou melhor, é em parte responsável por isso.
A objeção
mais evidente a esse discurso consiste então na afirmação de que a ciência,
enquanto exploração das leis da natureza é sempre um bem, uma simples ampliação
das consciências humanas enquanto o eventual problema reside nas suas
aplicações tecnológicas, ditadas pela circunstância social. Mas segundo o
primeiro e verdadeiro teórico da ciência moderna, o inglês Francis Bacon,
contemporâneo de Shakespeare, o método científico consiste " em colocar a
natureza sobre o banco da tortura para arrancar todos os seus segredos",
com o objetivo de " expugnar a natureza". Esta metáfora proposta nos
primórdios do desenvolvimento científico, na futura pátria da Revolução
Industrial e não por acaso na época da grande caça às bruxas, é de maneira
nenhuma casual.
Sem nos
perguntarmos o quê a pesquisa da natureza poderia ser na teoria, deve-se
constatar que há quatrocentos anos a pesquisa científica, assim como se
desenvolveu efetivamente, era concebida por seus mesmos autores como uma guerra
à natureza, como a violenta submissão de um objeto inimigo e rebelde, que
necessita privar-se de cada vontade própria e capacidade de resistência.
Pode-se notar o quanto essa imagem da natureza é consubstancial à imagem da
mulher e dos povos não-europeus formadora da época moderna, igualmente concebida
como parte de uma natureza estranha e inferior, e, por isso, a ser dominada.
A ciência moderna não é inteiramente neutra,
mas, desde o início, estruturalmente semelhante à nascente do capitalismo -
vê-se isso também no elemento mais fundamental desta ciência, isto é, a redução
das qualidades naturais a simples quantidades, a diversas expressões numéricas
da mesma "substância" indiferenciada, a partir da revolucionária
virada de Galileu.
A analogia
com a redução de todas as atividades humanas a uma simples quantidade de
força-trabalho gasta e representada no valor da mercadoria é evidente. Reduzir
a diversidade à unidade e fazer sumir as diferenças: eis o princípio de
equivalência que domina tanto a economia quanto a ciência.
Em uma
certa lógica, todo tipo de desenvolvimento pode ser somente quantitativo, mas
por este motivo tal desenvolvimento é necessariamente ilimitado: da tecnologia
como valor surge a acumulação infinita, a transformar todo o mundo concreto em
simples material para a manutenção da forma social.
Nas sociedades pré-capitalistas, a produção
material era naturalmente importante, mas essa era subordinada à reprodução da
sociedade. Produzia-se tanto quanto era necessário para que a sociedade
continuasse a existir do mesmo modo. Por isso, pode-se dizer, utilizando a
expressão de Karl Polanyi, que nesta sociedade, a economia era
"encravada" na sociedade. Somente na sociedade capitalista a produção
tornou-se, enquanto tal, um objetivo, e a sociedade inteira é aqui subordinada
à economia eàs suas exigências. Como demonstrou Karl Marx com a sua análise do
caráter duplo do trabalho, abstrato e concreto, no capitalismo existe uma
necessidade ilimitada de utilizar sempre mais trabalho para acumular capital.
Na sociedade moderna, o objetivo da atividade produtiva é o dinheiro, e não uma
utilidade ou um prazer concreto. E diferentemente da utilidade ou do prazer, o
crescimento do dinheiro é ilimitado porque é puramente quantitativo. Este
impulso ao autocrescimento infinito é inerente à forma mesma da mercadoria,
baseada no valor abstrato, isto é, na quantidade de trabalho indiferenciado,
abstrato. Mas a forma-mercadoria, que existe embrionariamente já na Antigüidade
e na Idade Média, não teria jamais podido conquistar praticamente o mundo a
partir do Renascimento, se a ciência e as suas aplicações tecnológicas não
tivessem permitido que a crescente quantidade de trabalho empregado se
realizasse também em quantidade sempre mais vasta de objetos.
* Tradução de Juliana Zanetti de Paiva
** Academia de Belas-Artes de Frosinone (Latium, Itália)