INSTRUMENTOS PARA AVALIAÇÃO DO AMBIENTE FAMILIAR VISANDO À INCLUSÃO.
ANA LÚCIA ROSSITO AIELLO
UFSCar - Universidade
Federal de São Carlos.
O objetivo desse trabalho é apresentar dois
instrumentos de avaliação do ambiente familiar: o HOME e o RAF e algumas
dificuldades quando se traduz instrumento.
Desde a década de 70, o ambiente
domiciliar tem ocupado uma posição central nas avaliações de desenvolvimento
infantil. Debates têm sido relacionados a avaliar em que medida a criança é
afetada pelo seu ambiente, se experiências durante qualquer período do
desenvolvimento (principalmente na infância) tem efeitos ao longo da vida e se
a correlação observada entre medidas do ambiente e medidas do desenvolvimento
infantil representa apenas efeitos ambientais ou se é parcialmente mediada por
fatores genéticos. Independente destes debates, há um acordo quase universal
sobre a importância de se compreender a dinâmica entre a criança e o ambiente
(Bradley, Corwyn, McAdoo & Coll , 2001).
Além
disso, crianças estão cada vez mais expostas a risco ambiental para atrasos de
desenvolvimento e subseqüente fracasso escolar devido à pobreza, educação
parental limitada, mais do que três crianças na casa, um estilo parental
autoritário, conflito entre os pais, mudanças de escola e trocas de professor
durante o ano letivo, etc (Glacoe, 2000; Marturano, 2004). A existência de
poucos instrumentos válidos e padronizados capazes de detectar o impacto
adverso desses fatores de risco possibilita que muitas crianças não sejam
detectadas e conseqüentemente, não encaminhadas a programas de intervenção
precocemente.
Desta forma, continua o interesse em
construir e usar medidas do ambiente domiciliar tanto para a pesquisa como para
a intervenção no desenvolvimento infantil. O HOME (Home Observation
for Measurement of the Environment) proposto por Caldwell e
Bradley (2001) é um dos inventários mais amplamente usado para avaliar o
ambiente domiciliar. Há quatro versões do HOME, avaliando o ambiente desde a
infância até a pré-adolescência, sendo esse um aspecto interessante.
Cada
versão do HOME tem sido utilizada em vários países do mundo, sendo submetida a
processos de padronização e validação, permitindo que diferentes pesquisadores
comparem seus estudos. No geral, o inventário HOME tem demonstrado padrões de
relação com outras medidas ambientais, de desenvolvimento e parentais (Bradley,
Corwyn, McAdoo & Coll, 2001).
Segundo
Cadwell e Bradley (2001) o Inventário HOME é útil para avaliar comportamentos
dos pais e outros aspectos físicos e sociais do ambiente domiciliar, visando
pontuar a qualidade e quantidade de estimulação e apoio disponível à criança no
ambiente domiciliar. O HOME utiliza
observação e entrevista realizadas durante visitas domiciliares de uma hora e o
avaliador age de forma a permitir interações naturais entre os pais e a
criança. Cada item é avaliado quanto a sua presença ou ausência durante essas
visitas domiciliares. Quanto maior o escore total em qualquer versão do HOME,
melhor a qualidade e quantidade de estimulação oferecida à criança.
No
Brasil, alguns estudos fizeram uso do HOME. Por exemplo, Bastos, Urpia, Pinho e
de Almeida Filho (1999) utilizaram o HOME em conjunto com outras medidas de
ajustamento psicossocial para avaliar o poder preditivo de variáveis ambientais
e sócio-econômicas de 56 adolescentes, quando esses participantes tinham entre
zero e cinco anos. De maneira geral, altos escores no Inventário HOME foram
associados a mais altos índices de ajustamento. A aplicação do HOME para
avaliar o ambiente domiciliar, tanto para mães com deficiência mental
(Buonadio, 2003) quanto para crianças contaminadas por chumbo (Almeida, 2005),
revelou que esse ambiente é pobre em estimulação para as crianças,
principalmente em termos de “materiais de aprendizagem”.
Alguns problemas associados com a tradução de instrumentos
Um dos maiores
problemas associados com a utilização de instrumentos diz respeito a sua
validade e confiabilidade para uma nova população (e cultura), diferente
daquela para a qual o instrumento foi elaborado. Nas palavras de Pasquali
(2003) “a comunidade científica desenvolveu uma série de parâmetros mínimos que
a medida psicométrica deve apresentar para se constituir em instrumento
legítimo e válido. Os parâmetros mais básicos referem-se, além da análise dos
itens (dificuldade e discriminação), à validade e a confiabilidade do
instrumento (p.66)”. Garantir esses parâmetros mínimos implica em pesquisas por
si só, com procedimentos e delineamentos específicos.
No caso do
HOME, um estudo demonstrou preocupação em obter indicadores psicométricos para
a população brasileira. Martins, da Costa, Saforcada e Cunha (2004) realizaram
um estudo prospectivo de caráter populacional, incluindo 630 crianças. Entre
outras medidas, utilizaram o HOME para avaliar a qualidade do ambiente. Por
meio de análises estatísticas pertinentes constataram que 97 crianças (15%)
viviam em ambiente negativo. Além disso, oito fatores de risco foram associados
à qualidade do ambiente. Com base nos resultados desse estudo, os autores
afirmam que o HOME possui alta confiabilidade e todos os itens da escala medem
os aspectos do constructo.
Uma
segunda dificuldade com instrumentos estrangeiros diz respeito a sua tradução.
Após a compra do instrumento (as
vezes, onerosa), normalmente é realizada uma tradução seguida por uma
retrotradução por profissional capacitado na língua original do instrumento.
Tal procedimento visa identificar problemas com tradução de termos técnicos e
adequação à nova linguagem. Ainda em relação à tradução é comum os autores do
instrumento original, ao permitirem a tradução, o fazerem mediante a tradução
da obra completa envolvendo o instrumento, o manual e algum livro referente aos
resultados de pesquisas ou referencial teórico no qual o instrumento se insere.
Embora essa solicitação seja adequada possibilitando uma visão ampla, tanto
teórica quanto prática do instrumento, ela acarreta maior volume de trabalho ao
pesquisador. Um outro aspecto interessante envolvido na tradução de
instrumentos é a duplicação dessa tarefa uma vez que vários pesquisadores de
diferentes universidades importam e traduzem o mesmo instrumento. (Nos estudos
citados aqui há pelo menos três traduções do HOME: uma realizada por
pesquisadores do Rio Grande do Sul, outra por pesquisadores da Bahia e outra
por São Paulo).
Terminada
a etapa de tradução, uma tentativa de avaliar a fidedignidade do instrumento
para uma nova população é realizar um procedimento de teste-reteste. Esse
procedimento consiste em aplicar duas vezes o instrumento com um intervalo de
um mês entre as aplicações e posteriormente realizar os cálculos de
correlações. Um complicador ao executar tal tarefa é que, quase sempre, o
cronograma da pesquisa que utiliza o instrumento como uma de suas medidas, não
permite essa espera ou precisa ser ajustado para tal acomodação.
Mesmo
se for realizada essas etapas, ainda ficam faltando várias outras análises,
como apontadas por Pasquali (2003), para que o instrumento seja válido e
fidedigno para a nova população. Assim, o pesquisador pode optar por um de dois
caminhos: realizar todos os procedimentos exigidos pelos parâmetros
psicométricos ao utilizar um instrumento estrangeiro (em parceria ou não com
outros pesquisadores) ou criar seu próprio instrumento (também seguindo os
mesmos parâmetros psicométricos). A seguir encontra-se um exemplo desse último tipo.
Considerando
que é importante determinar os recursos do ambiente familiar que favorecem o
desempenho escolar, incluindo materiais educacionais e envolvimento parental em
crianças com dificuldade de aprendizagem, Marturano (1999) elaborou o Inventário
de Recursos do Ambiente Familiar (RAF). “Ele é um roteiro que se aplica sob
forma de entrevista semi-estruturada em que cada tópico é apresentado à mãe
oralmente. O entrevistador inicia cada tópico com uma questão aberta e, em
seguida, apresenta os itens de questões fechadas. O RAF é constituído
por 14 tópicos, semelhantes ao HOME, com um número variável de itens, reunidos
em três módulos: supervisão e organização de rotinas; oportunidades
de interação com os pais e presença de recursos no ambiente físico.
O escore total corresponde à soma das médias dos 17 escores obtidos nos 14
tópicos do RAF, sendo essas médias o resultado da divisão do escore em cada uma
das medidas pelo número de itens que compõem essa medida (p.137)”.
Segundo
Marturano (1999) a análise estatística entre os dados da entrevista com a mãe e
o texto elaborado a partir de um desenho da criança incluiu análise de
regressão, correlação e comparação entre médias de subgrupos constituídos
segundo idade, atraso escolar e desempenho na escrita. Os resultados indicaram
que o nível de elaboração da escrita está positivamente associado à
disponibilidade de livros e brinquedos, enquanto o atraso escolar está
negativamente associado à organização das rotinas e à diversidade de atividades
compartilhadas com os pais. Circunstâncias adversas têm associação positiva com
atraso escolar.
Um estudo
sobre a fidedignidade do RAF foi realizado por meio do procedimento
teste-reteste com três mães e forneceu índices de 100%, 99% e 92% de
estabilidade entre aplicações feitas com 20 dias de intervalo (Santos, 1999).
Ferreira
e Marturano (2002) empregaram o RAF (entre outras medidas) para documentar a
associação entre comportamentos externalizantes (comportamentos marcados por
hiperatividade, impulsividade, oposição, agressão, desafio e manifestações
anti-sociais) e contexto de adversidade ambiental em crianças com desempenho
escolar pobre. Participaram meninas e meninos, com idade entre sete e 11 anos,
referidos para atendimento por dificuldades escolares. Dois grupos de crianças
foram formados com base na pontuação da Escala Comportamental Infantil: G1
(crianças sem problema de comportamento, n= 30) e G2 (crianças com
problemas de comportamento, n= 37). As mães foram entrevistadas com o
RAF. Os resultados indicaram que o ambiente familiar de G2 apresentava menos
recursos e maior adversidade, incluindo problemas nas relações interpessoais;
falhas parentais quanto à supervisão, monitoramento e suporte; indícios de
menor investimento dos pais no desenvolvimento da criança; práticas punitivas e
modelos adultos agressivos.
Evidentemente,
a escolha de instrumentos dependerá dos objetivos da pesquisa ou da
intervenção. Entretanto, ao se utilizar instrumentos de medida, eles devem se
válidos e fidedignos. Somente assim, é possível documentar o que está ocorrendo
e identificar as variáveis responsáveis por essa ocorrência.
Referências:
Almeida, S.H. (2005). Análise do desenvolvimento de crianças de um a
três anos de idade contaminadas por chumbo. Dissertação de Mestrado não-publicada,
Programa de Pós-Graduação em Educação Especial, Universidade Federal de São
Carlos, São Carlos, SP.
Bastos, A. C. S., Urpia, A. C. M., Pinho, L., & de Almeida Filho, N.
M. (1999). O impacto do ambiente familiar nos primeiros anos de vida: Um estudo
com adolescentes de uma invasão de Salvador, Bahia. Estudos de Psicologia, 4 (2), 239-271.
Bradley, R. H., Corwyn, R. F.,
McAdoo, H. P., & Coll, C. G. (2001). The Home environments of children in
the United States Part I: Variations by age, ethnicity, and poverty status. Child Development, 72 (6), 1844-1867.
Buonadio, M.C. (2003). Análise da
interação de mães com deficiência mental e seus filhos: Intervenção domiciliar.
Dissertação de Mestrado não-publicada. Programa de Pós-Graduação em Educação
Especial, Universidade Federal de São Carlos, São Carlos, SP.
Caldwell, B., & Bradley, R.H.
(2001). HOME Inventory Administration Manual. Little Rock: University of
Arkansas at Little Rock (3a. ed).
Ferreira, M. C. T., & Marturano, E. M. (2002). Ambiente familiar e os
problemas do comportamento apresentados por crianças com baixo desempenho
escolar. Psicologia: Reflexão e Crítica,
15 (1), 35-44.
Glascoe, F. P. (2000). Early detection of developmental and behavioral
problems. Pediatrics in Review, 21 (8), 272-280.
Martins, M. F. D., da Costa, J. S. D., Saforcada, E. T., & Cunha, M.
D. C. (2004). Qualidade do ambiente e fatores associados: Um estudo em crianças
de Pelotas, Rio Grande do Sul, Brasil.
Cadernos de Saúde Pública, 20 (3), 710-718.
Marturano, E. M. (1999). Recursos no ambiente familiar e dificuldades de
aprendizagem na escola. Psicologia:
Teoria e Pesquisa, 15,135-142.
Marturano, E. M. (2004). Fatores de risco e proteção no desenvolvimento
sócio-emocional de crianças com dificuldade de aprendizagem. In E. G. Mendes,
M. A Almeida, & L. C. A. Williams (Orgs.), Temas em educação especial:
Avanços recentes (pp. 159-165). São Carlos, SP: EduFSCar.
Pasquali, L. (2003). Psicometria: Teoria dos testes na Psicologia e
na Educação.Petrópolis, RJ: Vozes.
Santos, L. C. (1999). Crianças com dificuldade de aprendizagem:
Estudo de seguimento. Dissertação de Mestrado não-publicada, Curso de
Pós-Graduação em Saúde Mental, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.