O NORDESTE DO BRASIL EM SITES PARA TURISTAS À PROCURA DE SEXO

 

Adriana Piscitelli

 

Nesta apresentação comento a maneira como a Internet está sendo utilizada para difundir novas localidades nos circuitos turísticos voltados para viajantes ä procura de sexo.  Tomando como referência o World Sex Archives, um dos sites voltados para esse tipo de turismo mais “ricos” e detalhados da web, exploro como nele são criados e transmitidos “saberes” e códigos de conduta que orientam as ações desse tipo de visitantes internacionais e, quais são os aspectos específicos atribuídos ao Nordeste do Brasil nessa transmissão de saberes. 

          Situo essas questões no marco das discussões sobre a os efeitos da nova ordem global sobre a sexualidade e, de maneira específica, sobre os efeitos da intensificação de meios tecnológicos e da mídia como formas de comunicação. Uma das idéias presentes nesse debate é que essa intensificação conduz ao isolamento, à solidão e à falta de contato físico e sexual.  Nesse sentido, a cyber-sexualidade, a Internet e a tecnologia são percepbidos como substitutos da sexualidade.  No que se refere aos sites de sexo, afirma-se, com freqüência, que eles conduzem ao isolamento ou que representam a possibilidade extrema de contatos sexuais “des-incorporados”.

          Tendo como referência essas discussões, meus argumentos centrais nesta apresentação são dois: o primeiro é que, no caso específico destes sites, a Internet conduz à viabilização do contato físico e sexual.  O segundo é que,  neles, a re-criação de códigos da sexualidade é orientada por uma “educação” coletiva, na qual se transmitem códigos de conduta e “saberes” que, atravessados por gênero, traçam fronteiras etno-sexuais (fronteiras que estabelecem limites entre grupos caracterizados pela intersecção e interação entre sexualidade e etnicidade).  Essas fronteiras são fundamentais na delimitação de novos espaços turísticos para o consumo de sexo.

          Exploro as especificidades alocadas ao Brasil, e, de maneira particular, ao Nordeste, através de um levantamento do material relativo a diversos países, colhido durante 12 meses, em 2004. Analisei o material relativo a diversos países da América do Sul, escolhidos por serem considerados “tradicionais” espaços de atração de turismo sexual, como Brasil e Colômbia, ou, ao contrário, por apresentarem a particularidade de serem percebidos como “novíssimos” alvos dos viajantes à procura de sexo, como Argentina.  Outros foram selecionados por serem considerados como alvos “menos atraentes” pelos freqüentadores do site, como  Peru e Bolivia. 

            O World Sex Archives apresenta na página inicial uma imagem com os rostos superpostos de mulheres das mais diversas características, anunciando assim a diversidade étnica e racial presente no material nele veiculado. Apresentando-se como um espaço destinado à discussão de acompanhantes de todo o mundo, o site esclarece que se diferencia de outros espaços virtuais voltados para o sexo, seja daqueles destinados à pornografia ou dos que promovem sexo com menores de idade, no sentido de oferecer informações úteis para viajantes. 

Inserindo-se na lógica presente não apenas no mundo da prostituição mas, sobretudo, na que perpassa os universos turísticos e é característica do turismo sexual , o site realiza um verdadeiro apelo à criação de novos espaços para os viajantes à procura de sexo.  Solicita-se aos assinantes contribuições no sentido de enviarem informações sobre áreas ainda não “descobertas” e, portanto, ainda não incluídas nas correspondências.  E, de fato, os assinantes se esforçam em responder a esse apelo.

Assim, no que se refere ao Brasil, lugares muito conhecidos tais como Rio, que concentram a maior parte da informação, são positivamente avaliados em termos da facilidade e economia de tempo e energia que a profusão de informação e a grande disponibilidade de mulheres profissionalizadas possibilita.  Mas, outros, pouco explorados, tais como Fortaleza e Salvador, parecem fascinar pelo caráter desbravador e aventureiro que marca a viagem: Inserindo-se na mesma lógica, as mensagens mostram a rejeição dos lugares com excesso de gringos e mostram a valorização de aqueles lugares freqüentados apenas por locais.

Os freqüentadores do site não constituem uma comunidade no sentido tradicionalmente acordado a esse termo no âmbito da antropologia, isto é, conformações de  agentes que compartilham uma origem, uma localidade com limites geográficos estabelecidos, vinculados por relações que envolvem circuitos de reciprocidade.  No entanto, apesar de sua heterogeneidade e de sua localização dispersa, constituem um grupo social com características distintivas, que envolve certo tipo de trocas. Eles criam corredores através do mundo nos quais circulam (e se encontram), e realizam favores mútuos que estão longe de restringir-se ao intercâmbio virtual de informações

Eles são viajantes ou expatriates, geralmente originários dos países do Norte, embora entre eles se contem também pessoas nativas dos países do Sul, há muito tempo residentes no Norte e compartilham uma linguagem diferenciada.  A heterossexualidade do site é marcada nos mails, nos quais há clara rejeição aos travestis. A cor implícita da apresentação desses agentes é a branca. 

Para os freqüentadores, o site, conectando pessoas que, antes de participar nele se sentiam isolados e até perversos, opera à maneira de espaço de legitimazação coletiva do interesse pelo consumo do sexo através das fronteiras. O site, convertido em um espaço de “socialização”, viabiliza a transimissão de “saberes” em termos de todas as práticas que constituem os turistas sexuais como tais.  Os itens básicos tratados no intercâmbio de correspondência virtual arquivada no site referem-se aos procedimentos necessários e aos lugares apropriados para procurar mulheres que oferecem serviços sexuais em diferentes  cidades e países (e que ofereçam a melhor relação entre “custo e serviço”).   Mas, tratam também de questões de interesse comum a todos os turistas: passagens econômicas;  qualidade dos restaurantes, e reços e qualidades dos hotéis.

Os mails revelam o interesse pela situação política e econômica dos diversos países e, também, questões associadas às leis vinculadas à prostituição, sobretudo envolvendo menores de idade.  Os intercâmbios de mensagens relativos a última CPI do turismo sexual em Fortaleza dão uma idéia dessa preocupação. Ocasionalmente, as discussões envolvem critérios morais. Contudo, as preocupações sobre o estatuto legal da prostituição em diversos países, a globalização das leis e os tratados internacionais, tendem a ser apenas um aspecto do interesse por garantir a segurança pessoal.  A esta preocupação somam-se cálculos em torno dos lugares nos quais dólares e euros rendem mais e a excitação suscitada pela abertura de “novos mercados” .  Esses freqüentadores realizam uma íntima associação entre pobreza, sobretudo pobreza recente, e o fato de novas mulheres se integrarem no mercado do sexo.  Assim, os países que acabam de ser afetados por problemas econômicos se tornam objeto de especial interesse.   Mas, a pobreza não é um fator suficiente para consolidar um novo espaço de turismo sexual.  Tampouco o fato de que em alguns dos países mais pobres, como Paraguay, seja mais fácil ter relacionamentos em preservativos, incide na consagração de um novo espaço.

As mensagens permitem perceber distinções no que se refere aos lugares escolhidos para o consumo do sexo.  Uma das diferenças principais é a maneira como neles as mulheres se inserem no mercado sexual, distinguindo prostitutas (pro’s),  não prostitutas (regulars ou no-pro’s), e semi-profissionais (semi-pros).  Para alguns viajantes a distinção entre umas e outras não faz diferença.  Para outros, os encontros com non pro’s são valorizados pelo fato de possibilitar sexo mais “econômico” e um plus de prazer (com uma pro se negocia, uma non-pro apresenta o desafio de ter que ser seduzida).

            Nessa correspondência, as distinções entre o conjunto de mulheres dos lugares visitados costuma ser expressada em uma hierarquia que se aplica a todas as mulheres, tanto às consideradas prostitutas como às que não.  Ela se baseia em diversos aspectos, a qualidade da pessoa (um ítem no qual participam o aspecto, a juventude) e a qualidade do serviço, integrando aqui as práticas sexuais permitidas e, inclusive, o fato de se dispor, ou não, a passar a noite, ou um certo tempo, junto ao consumidor.  Mas, esse conjunto de qualidades está sempre vinculado a características associadas a regiões e nacionalidades.  Essas distinções são articuladas traçando delimitações nas quais sexualidade, etnicidade, cor, regionalidade e nacionalidade se intersectam. 

            Os países e regiões são singularizados em uma perspectiva comparativa.  Os países são tratados como um todo homogêneo, sobretudo nas comparações implementadas em linhas de conversação sobre outras nações.   Aparecem classificações hierárquicas nas quais os estilos corporais não são avaliados de maneira uniforme.  Alguns freqüentadores deixam clara sua preferência pelas mulheres dos países do Norte, nas quais o fato de terem peitos grandes converge com a brancura.  No entanto, elas são percebidas como inacessíveis, por não estarem disponíveis para o sexo.

Os viajantes que desprezam os tipos considerados “latinoamericanos” tendem a valorizar os traços europeus atribuídos a algumas chilenas e argentinas. Eles chamam a atenção para esses traços e para o elevado nível educacional dessas mulheres.  Mas, essa combinação aparece como tendo um elevado preço. Esses mesmos traços são considerados determinantes para tornarem essas garotas, “as mais espertas e manipuladoras no mundo, ainda mais que as russas ou ucranianas”.

A valorização positiva dos corpos mais “claros” é evidente também nos e-mails que tratam do Brasil, nos quais são comparadas as cidades de São Paulo e Rio de Janeiro. São Paulo é descrita como oferecendo mulheres mais belas e com grande diversidade, loiras e castanhas, enquanto que o Rio apresenta muitas mais mulatas ou negras, que embora menos belas, aparecem como mais disponíveis para o sexo.   Isto não significa, porém que as “outras” cores não sejam apreciadas.

As relações entre cor, etnicidade e sexualidade se tornam mais claras nas distinções entre regiões e cidades, estabelecidas pelos freqüentadores mais experientes, que realizam escalas na base dos tipos de mulheres encontradas em cada local.  A classificação das cidades brasileiras não é necessariamente convergente.  Nas opiniões de alguns é Rio e não Fortaleza, a favorita no Brasil.  Mas, no site, a partir de 2003, Fortaleza e outras cidades do Nordeste passam a ser valorizadas por viajantes que, percebendo as variações regionais dentro do Brasil, privilegiam relacionamentos a mais longo prazo com mulheres consideradas semi-profissionais ou não profissionais.  A classe social, um fator ignorado nas comparações nas quais os países são homogeneizados, aparece como diferenciação crucial nas comparações regionais. Nos relatos dos freqüentadores mais experientes, a classe social, intersectando-se com cor e etnicidade, assume um lugar preponderante no traçado de fronteiras regionais.

            Os usuários familiarizados com o Brasil detectam a rejeição aos estrangeiros, percebidos como inferiores, por parte de mulheres bem posicionadas na escala de classes das cidades mais ricas.  Nesse sentido, as regiões mais ricas e percebidas como tendo forte influência européia são consideradas particularmente “duras”.  Classe, cor e etnicidade, imbricando-se na criação das desigualdades regionais, são implementadas no mapeamento dos lugares que oferecem mulheres disponíveis para as diferentes categorias de usuários.  Neste marco, o Nordeste do Brasil, para além do encanto do ainda pouco conhecido, surge como destino a ser privilegiado.

            Comparadas com a quantidade impressionante de material sobre o Rio e, em grau um pouco menor, sobre São Paulo, as linhas de discussão sobre o Nordeste do Brasil ainda parecem incipientes. Esparsas, algumas mensagens tratam de Fortaleza, outras de Recife, outras, um pouco mais numerosas, de Salvador.  A característica comum a esses  intercâmbios é que, longe de apresentarem longas listas de escorts e mulheres profissionais como no Rio, encaminham os usuários para espaços abertos tais como setores da Praia, e para bares e discotecas  dão cuidadosas explicações para aceder as experiências de quase noivado.  E, em todas elas, destaca-se o fato de tratar-se de garotas tidas como mais escuras. 

Encerrando, diria que, estimulando a procura por uma “autenticidade” turística corporificada nas mulheres nativas, sites como este, longe de operarem como substituto da sexualidade, viabilizam encontros “reais” entre turistas à procura de sexo e mulheres e orientam a re-criação de códigos da sexualidade. Dentro do traçado de fronteiras etnosexuais, o Brasil aparece claramente dividido em regiões marcadas pelas desigualdades sociais e pela cor.  No que se refere ao Nordeste do país, estilos de feminilidade associados a uma intensa sensualidade e somados à clara percepção de como estas desigualdades afetam as jovens locais, viabilizando o acesso a mulheres não profissionais, aparecem como as linhas que traçam essas fronteiras dentro do Brasil.