Radioproteção na Pesquisa Biológica

 

 

Ademir Amaral

 

Grupo de Estudos em Radioproteção e Radioecologia (GERAR)

Departamento de Energia Nuclear, Universidade Federal de Pernambuco,

Av. Prof. Luiz Freire, 1000, CEP: 50740-540, Recife, PE.

amaral@ufpe.br

 

 

 

            É sabido que a radiação ionizante não interage com nossos sentidos, sendo esse um dos fatores que contribuem para aumentar os riscos de exposições acidentais. A interação da radiação ionizante com a matéria viva se traduz pela transferência de energia da radiação para o meio irradiado. A dose absorvida, definida como a quantidade de energia depositada pela radiação por unidade de massa do volume irradiado, é a grandeza física fundamental na avaliação dos efeitos biológicos que podem resultar de uma exposição. A unidade padrão de dose absorvida é o gray (1 Gy = 1 joule /quilograma) [1]. Embora 1 Gy aumente a temperatura da água em apenas 0,0002°C, este valor de dose é muito elevado em termos de conseqüências biológicas, devido ao fato de que a transferência de energia se faz diretamente ao nível atômico-molecular.

            Quando se leva em consideração o tipo de radiação (por exemplo: raios X ou gama, elétrons, prótons, nêutrons e partículas alfa), a grandeza dose absorvida passa a ser denominada de dose equivalente, atribuindo-se a mesma uma nova unidade: o sievert (Sv). Se, além disso, for considerada a radiosensibilidade do tecido ou órgão atingido, a dose equivalente recebe a denominação de dose efetiva, caracterizando a partir de então uma grandeza de radioproteção propriamente dita.

            O conhecimento dos níveis de doses em radioproteção é um passo importante para a avaliação dos riscos associados às exposições individuais ou coletivas. Com isso, instituições internacionais recomendam limites de doses para trabalhadores e membros do público, objetivando restringir esses riscos.

            A Tabela 1 apresenta alguns dos limites primários anuais de dose para o trabalhador e indivíduos do público adotados como referência no Brasil [2].

 

Tabela 1 – Limites primários anuais de dose equivalente [2]

Dose Equivalente

Trabalhador

Indivíduo do Público

Efetiva (corpo inteiro)

  50 mSv (*)

1 mSv

Cristalino

150 mSv

50 mSv

Pele

500 mSv

50 mSv

Extremidades (**)

500 mSv

50 mSv

(*)  mSv = milisievert = 0,001 Sv.

(**) mãos, antebraços, pés e tornozelos.

           

            Numa análise rápida da tabela acima, pode-se inferir, por exemplo, que as extremidades (mãos, antebraços, pés e tornozelos) são mais resistentes que o cristalino aos efeitos indesejáveis de uma irradiação localizada.

Tipos de Exposição à Radiação Ionizante

            Os tipos de exposição resultantes da manipulação de substâncias radioativas são geralmente classificados em: externa e interna.

            As exposições externas à radiação ionizante podem ser:

I)                    À distância – esta é a forma mais comum, pois mesmo distanciado das substâncias radioativas, todas as partes do corpo do manipulador estão geralmente expostas à radiação, exceto quando da utilização de acessórios de proteção (avental de chumbo, protetor de tiróide, etc.);

II)                   Por Contato – a manipulação de substâncias radioativas leva o pesquisador a entrar em contato com recipientes (pipetas, seringas, beckers, provetas, etc.) contendo essas substâncias, podendo ocasionar o depósito do material radioativo sobre a pele;

III)                 Por imersão – ocorre durante a manipulação de fontes radioativas gasosas, em particular em atividades envolvendo elementos radioativos de meia-vida curta.

 

            Por outro lado, as formas mais comuns de exposição interna (ou incorporação) de substâncias radioativas são:

I)                    Inalação – ocorre após disseminação de aerossóis, vapores e gazes na atmosfera;

II)                   Ingestão – resultado da contaminação das mãos, objetos e alimentos levados à boca;

III)                 Difusão através da pele – seja através de cortes associados a uma contaminação corporal, seja pelo contato com substâncias químicas agressivas, tais como soluções ácidas e solventes contendo material radioativo.

Medidas de Radioproteção

            Podemos definir a radioproteção como o conjunto de medidas que devem ser seguidas para a manutenção dos níveis de radiação ionizante dentro dos limites estabelecidos pelos institutos oficiais, visando a proteção do homem e do meio ambiente contra os efeitos indesejáveis causados pela exposição à radiação. No Brasil, a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN) e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) são complementares na regulamentação das práticas relacionadas ao manuseio de substâncias marcadas com radioisótopos (2-5). Essas regras são, em sua maioria, baseadas nas recomendações de órgãos internacionais, tais como a International Commission on Radiological Protection (6) e a International Atomic Energy Agency (7).

A gestão da radioproteção tem significativa importância no processo de controle de qualidade em pesquisas envolvendo aplicação de material radioativo. Essa gestão passa necessariamente pela monitoração, tanto da área de trabalho quanto individual. Os instrumentos de monitoração de área devem ser escolhidos em função do radioisótopo utilizado. De um modo geral, um detector Geiger-Müller simples constitui ferramenta importante na investigação das condições de radioproteção laboratorial.

No que tange a monitoração individual, o uso de dosímetros compatíveis com as condições de exposição (i.e., dosímetros fotográficos e termoluminescentes) faz parte das normas de radioproteção [4]. Neste contexto, o emprego de tecnologias modernas para a dosimetria operacional e individual permite uma melhor estimação da dose absorvida para cada procedimento. Neste sentido, a utilização de detectores semicondutores possibilita a obtenção de medidas de dose e taxas de dose em tempo real, melhor definindo as precauções a serem tomadas diante dos riscos associados às diferentes tarefas desempenhadas.

            Além disso, nos laboratórios onde ocorre manipulação de material radioativo, o uso de equipamentos de proteção individual deve constituir uma prática corrente. Protetores faciais (óculos e máscaras), roupas de proteção, luvas de látex ou vinil são alguns dos assessórios essenciais para diminuir os riscos de contaminação. O uso de protetores de sapatos evita a contaminação de outras áreas externas ao laboratório de pesquisa, uma vez que são retirados e descartados em locais apropriados.

A escolha do Radioisótopo

            Alguns dos radioisótopos mais utilizados na pesquisa biológica são: 3H, 14C, 35S, 32P e 33P, 125I e 131I, 99mTc. A maioria destes são emissores beta puros, exceto os isótopos do tecnécio metaestável (99mTc) e do iodo-125 que emitem radiação gama e elétrons, enquanto o iodo-131 emite radiações beta e gama. A Tabela 2 exemplifica determinados parâmetros a serem considerados em radioproteção quando da utilização desses radioisótopos.

 

Tabela 2 – Exemplos de limites anuais de incorporação e de espessuras de blindagens para radioisótopos comumente usados na pesquisa biológica.

 

Radioisótopo

Limite Anual de incorporação

(MBq*)

Espessura (mm) para total absorção de beta e elétrons

CDR**

(mm)

vidro

Plástico

Chumbo

Trício (3H)

3000

< 0,1

< 0,1

-

Carbono-14 (14C)

90

0,2

0,3

-

Enxofre– 35 (35S)

80

0,2

0,3

-

Fósforo-32 (32P)

10

3,4

6,3

-

Iodo-125 (125I)

1

< 0,1

< 0,1

< 1

Iodo-131 (131I)

1

0,9

1,6

11

Tecnécio-99m (99mTc)

3000

0,1

0,2

1

  (*) MBq = megabecquerel = 106 Bq  (**)CDR = camada décimo redutora

            Para um dado radioisótopo, o limite anual de incorporação (LAI) é o valor máximo de atividade incorporada para a qual a dose comprometida não ultrapassará o valor de referência anual. Esse valor varia em função dos modos de incorporação: inalação ou ingestão. Na Tabela 2, os valores de LAI mostrados correspondem ao menor dentre os dois modos de incorporação. Ainda em relação a esta tabela, deve-se lembrar que a camada décimo redutora corresponde ao valor da espessura de um dado material que, em termos de blindagem, permite a redução da intensidade do feixe de radiação a um décimo de seu valor.

            Além das propriedades físico-químicas, fatores econômicos influenciam a escolha do radioisótopo na pesquisa biológica. Por exemplo, a decisão pela investigação de um nucleotídeo marcado com o 33P, em lugar do 32P, embora seja uma opção mais onerosa, é mais judiciosa do ponto de vista de radioproteção, uma vez que o fósforo-33 é um emissor beta de energia menor (Emax = 167,5 keV) que a 32P (Emax = 1710 keV). Ademais, experimentos envolvendo autoradiografias com fósforo-33 apresentam melhor resolução que aqueles desenvolvidos com o fósforo-32.

            A decisão quanto à utilização de radioisótopos na pesquisa biológica deve depender basicamente da inexistência de técnica não-radioativa, igualmente eficaz, para o experimento planejado. Se o emprego de um radioisótopo é essencial, com benefício significativo, sua escolha estará preenchendo um dos requisitos gerais de radioproteção, ou seja, o princípio da justificativa. Uma vez escolhido o radioisótopo, é necessário observar se as condições experimentais satisfazem os princípios da otimização e limites de dose individual e de risco. Com isso, as práticas relacionadas à pesquisa biológica com radioisótopos devem ser controladas de sorte a assegurar níveis de exposição tão baixos quanto razoavelmente exeqüíveis (princípio ALARA, acrônimo de “As Low As reasonably achievable”).

            As medidas de radioproteção na pesquisa biológica dependerão do tipo de radioisótopo e, certamente, do experimento a ser desenvolvido. Porém, em qualquer situação, os princípios básicos da radioproteção (tempo, distância e blindagem) em relação à fonte radioativa deverão nortear o protocolo experimental a ser adotado.

 

Referências

 

[1] International Commission on Radiation Units and Measurements – ICRU (1993), Quantities and Units in Radiation Protection Dosimetry, Report 51, MD: ICRU, Bethesda.

 

[2] Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN (1988), Diretrizes Básicas de Radioproteção. CNEN/NE-3.01, Brasil.

 

[3] Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN (1998), Requisitos para o Registro de Pessoas Físicas para Preparo, Uso e Manuseio de Fontes Radioativas. CNEN/NE-6.01, Brasil.

 

[4] Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN (1988), Serviços de Radioproteção. CNEN/NE-3.02, Brasil.

 

[5] Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA (2004), Regulamento Técnico para o Gerenciamento de Resíduos de Serviços de Saúde – Diretrizes Gerais.

 

[6] International Commission on Radiological Protection – ICRP (1991), Recommendations of the International Commission on Radiological Protection, ICRP-60, Pergamon Press, Oxford, UK.

 

[7] International Atomic Energy Agency – IAEA (1990), Recommendations for safe use and regulation of radiation sources in industry, medicine, research, and teaching. IAEA Safety Series N° 102, Vienna, Austria.