ZONA DE
LITÍGIO: FRONTEIRAS DA NORMALIDADE MENTAL
Vera Regina Martins e Silva (UNEMAT)
Seja qual for a
materialidade da fronteira pode-se contar com dois fatores constitutivos:
trata-se de uma área de risco e, conseqüentemente, ou por isso mesmo, seu
estudo reveste-se de complexidade e desafio. E essa complexidade apenas inicia
aqui, pois para defini-la (Houais eletrônico 2001)
são usadas expressões como parte
limítrofe, área contígua, linha divisória, região de separação... que nos
remetem a sentidos outros produzidos no entorno de acontecimentos quase sempre
polêmicos. Embora sejam inúmeras as relações parafrásticas
realizáveis, podemos verificar que não se distanciam de limite, separação. Do francês frontière – front
(frente, fronte) + -ière, vem fazendo sentido como "a vanguarda das tropas militares"
(c.1213); "praça fortificada que está em frente do inimigo"
(1292) e "os limites do território
de um estado" (fins do sXIV), sendo que essa
terceira acepção, mais familiar a nós, procede já da substantivação do feminino
do adjetivo frontier (limítrofe). Vê-se
que esse espaço imaginário representado pela fronteira funciona indicando o
que separa uma coisa da outra, o que fica entre uma coisa e outra; o que fica
do lado de cá, o que fica do lado de lá, o que fica de cá e de lá; o que
pertence a este lado, o que pertence ao outro lado, o que pertence a ambos os
lados; o que é de todos e não é de ninguém... Se num primeiro momento os
sentidos de fronteira nos fazem sentir como se estivéssemos em terreno
movediço, ao adentrarmos a área da saúde mental as inseguranças se tornam
extremamente mais contundentes. Este trabalho procura evidenciar como, em relação ao sujeito deficiente
mental, esta "zona de litígio"
foi historicamente utilizada na produção de sentidos, instaurando dicotomias
que a representam na sustentação de discursos e procedimentos político-científicos. Temos, por exemplo,
os pares normal/anormal, inclusão/exclusão,
igual/diferente, que circulam e funcionam como
sentidos cristalizados, interferindo nos processos de subjetivação e
identificação desses sujeitos. A consolidação e institucionalização da
Psiquiatria, como uma área de conhecimento especializado ocorre, no Brasil, a
partir da década de 1830, com a exigência médica de criação de um hospício no
Rio de Janeiro. Entre os aspectos que caracterizaram esse processo destaca-se a
abordagem dos mais variados temas, palco da fixação das fronteiras que
separariam doença/saúde,
normal/patológico. Para tanto, alienistas e
psiquiatras brasileiros elegeram, por exemplo, a civilização, a raça, a
sexualidade, o trabalho, o alcoolismo, a delinqüência/criminalidade,
o fanatismo religioso, a contestação política, como espaços passíveis de atos,
atitudes, hábitos, comportamentos, crenças e valores "desviantes".
Assim definidas essas áreas, confere-se uma abrangência extrema à utilização da
noção de anormalidade, que enquadra do homicida, o ladrão, o alienado, ao
político, a prostituta, o religioso, o enamorado como "anormais".
Produz-se e instala-se, desde então, um código de normas que identifica e/ou associa à doença mental todo o indivíduo que ameaça a
integridade social. A tendência a fazer comparações é muito antiga, mas é a
modernidade que instaura a noção de norma e normalidade. Canguilhem
ressalta a etimologia de norma enquanto palavra latina que significa
esquadro e normalis, que significa
perpendicular. Metaforicamente o termo é retomado para designar regra de
direito, e como sinônimo de regra
vai ainda permanecer definindo valores. A partir do início do século XIX
vai se processar uma alteração nas relações entre regra e norma, que vai
culminar com norma tendo como referência a média. O conceito de média
se refere ao nascimento da Estatística como ciência das coisas do Estado. É
esta ciência que vai definir as características do "homem médio", o
ideal da população. A norma, pois, é estabelecida para controlar e regular as
populações (Foucault chama de biopoder), ou seja, uma população saudável, perfeita, normal é constituída de
sujeitos governados e adestrados para a produção e o consumo.
A loucura, concebida como o avesso
desse padrão, funciona como matriz das teses que o saber psiquiátrico vai
construindo em relação às questões, de raça, sexo, religião, etc. Nesse
decorrer, aliada ao saber médico, a escola vem desempenhar papel fundamental na
fixação identitária de normal e anormal.
Normal é a designação que a instituição pedagógica tomou como "protótipo
escolar"; inversamente, a própria norma estabelece para anormal um
conceito de não-valor, que abrange todos os valores negativos possíveis: ser
anormal é ser desvalorizado e indesejável (Gardou,
2003). Os "não-conformes à medida escolar", como o deficiente mental
e o aluno com dificuldade de aprendizagem, entre outros, constituem dois grandes "coringas"
das instituições de saúde mental e pedagógica, sem os quais a tarefa de normalizar e as discussões
sobre o estabelecimento das fronteiras mentais, talvez perdessem um pouco a razão de ser.
Assim como as margens e os fracassos instigam
os saberes médico e pedagógico, em que a produção dos primeiros
justifica a existência dos segundos, os efeitos de sentido produzidos pelos
discursos que essas mesmas áreas fazem circular, acabam por alimentar os
processos de normalização dos sujeitos "anormais". Ou seja, não se
deve perder de vista que a normalização se faz presente na língua, através dos
mecanismos de individualização, como a
exigência de clareza, desambigüização, legibilidade, critérios extremamente perseguidos pelos
discursos científico e pedagógico.
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |