A SOCIOLINGÜÍSTICA NA ESCOLA

Stella Maris Bortoni-Ricardo ( UnB)

 

 

Em trabalhos recentes, voltados principalmente para a formação de professores alfabetizadores e de séries iniciais, tenho discutido muito a questão de erros de ortografia. Propus mesmo que seja feita uma distinção funcional entre erros de ortografia que resultam da integração dos saberes no domínio da oralidade na aprendizagem da escrita e erros que se explicam porque a escrita é regida por um sistema de convenções cujo aprendizado é lento e depende da familiaridade que cada leitor vai adquirindo com a língua escrita. No trabalho discuto primeiramente  este modelo e em seguida mostro como a Sociolingüística se posiciona diante dos chamados erros na língua oral e na escrita.

 

Diante da ênfase na análise de erros de ortografia, uma questão –que se apresenta é: por que falar em erros na escrita quando evitamos enfatizar erros na oralidade? De fato, a tradição da Sociolingüística, desde o seu nascedouro, amparada pelo conceito de competência comunicativa, (Hymes, 1966), rejeita veementemente a idéia de erros no repertório do falante nativo de uma língua. Todo falante nativo é competente em sua língua materna para nela desempenhar qualquer tarefa comunicativa.

 

O que a sociedade tacha de erro na fala das pessoas a Sociolingüística considera tão-somente uma questão de inadequação da forma utilizada às expectativas do ouvinte. Essas, por sua vez, decorrem das imagens que os interlocutores fazem uns dos outros, dos papéis sociais que estejam desempenhando e das normas e crenças vigentes na comunidade de fala. Em outras palavras, diante de um enunciado que a cultura dominante rejeita por conter um erro, a Sociolingüística analisa a variante ali empregada, avalia o prestígio a ela associado e mostra em que circunstância aquela variante é adequada considerando-se as normas vigentes. O erro na língua oral é, pois, um fato social. Ele não decorre da transgressão de um sistema de regras da estrutura da língua e se explica, simplesmente, pela (in)adequação de certas formas a certos usos. Por ser um fato social, só se corporifica quando a sociedade o percebe como um pecado no domínio das etiquetas sociais. A teoria sociolingüística substituiu a noção tradicional de erro pela noção de diferenças entre variedades e estilos. Um erro, como fato social, ocorre quando o falante não encaixa uma determinada variante ao contexto que é o seu habitat natural na ecologia sociolingüística de uma comunidade de fala.

 

Pois bem, se para a Sociolingüística não é produtivo – pelo contrário é altamente nefando – o conceito tradicional de erro, por que alguns lingüistas (entre os quais me incluo) transitam com facilidade pela metodologia de erros da língua escrita? Nesta palestra quero argumentar que as modalidades oral e escrita de uma língua, além das conhecidas distinções que mantêm entre si, distinguem-se ainda pelo estatuto do chamado erro. Vejamos. Na fala não enfatizamos erros enxergando-os como diferenças entre maneiras possíveis e competitivas de se falar. Na língua escrita o chamado erro tem uma outra natureza porque representa a transgressão de um código convencionado e prescrito pela ortografia. Podemos considerá-lo uma transgressão porque a ortografia é um código que não prevê variação. A ortografia de cada palavra é fixada ao longo de anos e até séculos no processo de codificação lingüística. Com raras exceções cada palavra tem apenas uma grafia.

 

Considerar uma transgressão à ortografia como erro não significa considerá-lo uma deficiência do aluno que dê ensejo a críticas ou a um tratamento que o deixe humilhado. O domínio da ortografia é lento e requer muito contato com a modalidade escrita da língua. Dominar bem as regras de ortografia é um trabalho para toda a trajetória escolar e, quem sabe, para toda a vida do indivíduo.

 

As pedagogias contemporâneas também nos têm ensinado que a aprendizagem da ortografia é, antes de tudo, um trabalho criativo. Quando vai escrever o aluno reflete sobre o que está fazendo e vai buscar subsídios na sua língua oral e nos conhecimentos que está adquirindo sobre a estrutura da língua escrita para construir hipóteses sobre a forma correta de se escrever. A construção dessas hipóteses vai-se tornando mais eficiente à medida que os alunos avançam na aprendizagem da escrita. Mas, desde o início, mesmo quando escrevem de forma muito diferente da forma ortográfica, os alunos estão construindo suas hipóteses. Os erros que cometem ao escrever ajudam o professor a entender como a hipótese heurística do aluno foi construída. Por isso, cada erro deve ser objeto de produtiva discussão entre professor e aluno. Ao discutir os erros com o aluno, este vai verbalizar o caminho do seu raciocínio na decisão de escrever de uma forma ou de outra. Estas questões estão desenvolvidas em nosso livro Educação em Língua Materna,  SP: Parábola, 2004

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004