PLANEJAMENTO URBANO E PROFISSÃO DE ARQUITETO: O FEITIÇO CONTRA O FEITICEIRO?

 

Sônia Marques (*)

 

A hipótese da minha intervenção é a de que o campo do planejamento urbano foi uma faca de dois gumes para a profissão do arquiteto a no Brasil. Na esteira de Brasília este campo abriu-se para os arquitetos, acrescentando um brilho a mais na profissão, mais intenso e politicamente mais correto. Atuar como planejador era oferecer a arquitetura modernista para além do consumo das elites, para a sociedade como um todo e, sobretudo, para os menos favorecidos. Este era o entendimento que animava os espíritos dos jovens arquitetos quando reunidos com a reivindicação pela reforma urbana e por uma política habitacional no Seminário do Hotel Quitandinha, de 1963. 

 

Mas estas reivindicações não deixavam de trazer aspectos tipicamente corporativistas como os que se associavam a questões de uma abertura de mercado alternativo para os profissionais que se formavam e que eram desprovidos de recursos para enfrentar o mercado de projetos de edificação das elites. (Serran). A necessidade transformava-se assim em virtude e, no pós-golpe militar, uma certa clivagem intraprofissional começou a ser estabelecida. De maneira tal, que os arquitetos de prancheta seriam os “alienados”, enquanto que os urbanistas eram os “engajados”. Tratava-se de uma clivagem extremamente maniqueísta como as que costumam emergir em regimes ditatoriais. Além disto, uma clivagem paradoxal: ela escondia ou ignorava o fato de que até o golpe militar o urbanismo dos arquitetos brasileiros era basicamente como havia sido no concurso para Brasília, o urbanismo de desenho de cidades, e que a própria figura do arquiteto planejador, inserido numa equipe multidisciplinar no interior de uma equipe do governo, foi uma figura típica do planejamento erguido após o golpe militar.

 

O governo militar foi hábil na recuperação das reivindicações anteriores, como bem demonstrou há muito tempo Otávio Ianni. No caso da política urbana, isto significava a recuperação dos ideais da SAGMACS, do grupo do padre Lebret, etc. ( cf. Nunes, 2004; Vasconcelos, 1999; Marques,1996).  Do ponto de vista dos indivíduos ou grupos de esquerda, para além o fato de que todos teriam que trabalhar ou sobreviver, exercendo seu métier - mesmo sob uma ditadura -, a pílula dourada do engajamento social do planejamento urbano pode ser mantida por várias razões. Entre elas: a) possibilidade de brincar de progressista dentro de um governo militar ou a estratégia de “aproveitar as brechas” foi possível por ser um tipo de estratégia já recorrente nas esquerdas brasileiras e, em particular, do Partido Comunista Brasileiro, o famoso “partidão”; b) o fato de a política urbana ditatorial ter como parceiro internacional privilegiado os franceses, geógrafos de inclinação política progressista, sensível aos desafios do terceiro mundo; c) a abertura proporcionada pela área de pesquisa, um local dito de resistência “crítica”, onde os livros de um Manuel Castells - então contestador e ainda baseado em solo francês - se somavam aos de Lefebvre, Lojkine e aos demais marxistas franceses pensadores da questão urbana.

 

Este é o contexto que marca a ambivalência dos compromissos políticos de um campo profissional: ao mesmo tempo em que o BNH financiava a expansão periférica de nossas metrópoles, no padrão de conjuntos de baixa renda, caixotes de quatro pavimentos, formaram-se os nosso doutores no urbano e para este campo foram – por motivações políticas e/ou profissionais - todos os arquitetos que gostavam de estudar, de pesquisar, uma vez que as primeiras pesquisas sólidas organizadas se davam neste campo. A situação hoje, na primeira década do século vinte e um é, no entanto, bastante diferente. 

 

Os vários setores das ciências sociais que investiram na questão urbana se retiraram para outros temas, ou em busca de uma especificidade de seu campo, ou na busca de outras práticas multidisciplinares, com outros temas. A retração da sociologia e da economia, neste caso, é evidente. As pesquisas no urbano acompanhando a prática intervencionista como desde o seu nascedouro aparecem, assim, de um lado altamente especializadas, como o caso da questão fundiária ou das pesquisas da demografia. Por outro lado, elas também podem ser associadas ao campo prático político, acompanhando as diretrizes governamentais. Neste campo da pesquisa, com vistas a uma aplicação diretamente aplicada, vale destacar dois sub-campos: o da conservação, onde o campo do planejamento urbano associou-se ao da preservação de bens culturais e o das práticas legislativas regularizadoras que se associam a instrumentos urbanísticos físicos territoriais.  Mas estas atividades não são específicas da profissão do arquiteto que, nestes últimos trinta anos, desvalorizou-se crescentemente.

 

O brilho inicial do arquiteto urbanista perdeu-se. Sem possibilidade de recuperação. O arquiteto urbanista nem é mais politicamente correto, nem mais engajado que o de elite, as clivagens são outras, as metamorfoses profissionais efêmeras. As atividades interdisciplinares recentes não conseguem dar legitimidade à profissão. O discurso multidisciplinar, ou interdisciplinar, ou ainda trans-disciplinar, que faz apelo a uma complexidade pós-moderna, por sedutor que seja, não pode esconder o drama profissional. De qualquer forma, se o arquiteto urbanista não brilha mais, tampouco triunfa o arquiteto de projetos. Ao contrário, o sistema de vedetes internacionais, dos Gehry aos Bilbao da vida, só evidenciam as fraquezas de uma profissão cujo modelo de sucesso não é exercido nem por 3% de seus membros! O drama não é apenas corporativo, pois ele remete à dimensão específica da qualidade da arquitetura e à sua repercussão no quadro de vida. Dimensão específica que talvez não possa ser diluída na questão ambiental ou urbana ou mensurada, pelo menos apenas com os instrumentos do campo da pesquisa urbana e ambiental.  Pois afinal, o que é qualidade de arquitetura e quem tem autoridade para dizê-lo, numa época de permissividade inclusiva, em que o mundo assume o visual de Las Vegas e da Disneylândia?

 

Um esforço de desenvolvimento da pesquisa específica em arquitetura poderia vir a contribuir para trazer os arquitetos a falarem de seu lugar devido, depois de um desvio, enfeitiçados pelas falas e saberes alheios sobre a cidade. Talvez este seja o bom momento, como mostram iniciativas internacionais recentes nos EUA e na Europa. É o que poderia ser tentado com mais afinco no Brasil – se as falsas oposições e clivagens fossem realmente e, sobretudo na prática do controle da pesquisa, diluídas - como procuro discutir nesta intervenção.

 

(*) Departamento de Arquitetura e Urbanismo

Universidade Federal do Rio Grande do Norte

UFRN

 


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004