A ÉTICA
NA ASSISTÊNCIA DA ENFERMAGEM
ÉTICA EM SAÚDE E EM ENFERMAGEM – Utopia ou mil passos a
caminhar?
ROSENEY BELLATO[1]
A
amplitude e complexidade da temática proposta para este Simpósio não nos
permitem esgotá-la nesta primeira aproximação, incita-nos a fazer, no entanto,
alguns direcionamentos para discussões futuras junto aos profissionais
enfermeiros e demais membros da equipe de saúde e de enfermagem. Como
contribuição para essa reflexão urgente e necessária, pautar-me-ei em minha
experiência como docente de enfermagem atuando na assistência, no ensino e na
pesquisa, lócus mais que privilegiado para o fomento de tal discussão. Entendo
ser importante explicitar desde o inicio que considero a Ética em saúde não
como uma disciplina, mas como temática a ser problematizada constantemente por
todas as pessoas envolvidas no processo de cuidar em saúde e em enfermagem. Ela
não pode, portanto, ser unidisciplinar, nem tampouco vista como normativa e
meramente teórica, ou, o que nos parece mais impróprio, abordada como escolhas
a serem feitas entre o bem e o mal, o certo e o errado. Também não podemos
“ensiná-la”, visto que não se trata de um conteúdo didático que aponte “o que
fazer” e o que “não fazer” em determinadas situações. Podemos, entretanto,
“vivê-la” quotidianamente através da discussão e da sensibilização das pessoas
envolvidas no processo de cuidar em saúde, de maneira que considerem sempre o
valor humano dentro das relações, buscando torná-las mais simétricas e voltadas
ao respeito à autonomia do outro, apontando a responsabilização de cada
elemento no processo.
Considerada
nesse sentido a Ética em saúde e em Enfermagem é menos da ordem da introdução
de mais um conteúdo programático no currículo de formação dos profissionais da
saúde do que da necessidade de mudança paradigmática voltada para o
entendimento do ser humano como ser múltiplo, complexo e não redutível à
dimensão biológica. Nesse contexto, o Código de Ética Profissional precisa ser
visto não como um conjunto de normas a serem seguidas, com caráter
eminentemente prescritivo e punitivo a ser aplicado àqueles que, em última
instância, se responsabilizam pelo cuidado à saúde, mas como um parâmetro de
responsabilização crescente dentro do sistema de saúde, que se inicia com o
profissional e abarca, em graus concêntricos de amplitude, as políticas de
saúde e quem as institui e executa.
Tais
políticas, explicitadas ou implícitas no texto constitucional, nos princípios
constitutivos do Sistema Único de Saúde, na organização dos modelos de atenção
à saúde e do trabalho em saúde e em enfermagem entre outros, ganham ou não
materialidade através dos serviços de saúde e das ações profissionais que aí se
desenvolvem. Não há, pois, como pensar Ética em saúde e em Enfermagem sem nos
reportarmos à justiça social, direito à saúde, cidadania, qualidade de vida,
responsabilização, condições adequadas de trabalho para o cuidador, caso
contrário ela passa a ser apenas um discurso vazio de significados e isento de
concretude. E é essa concretude que precisa ser construída ao se discutir Ética
em saúde e em Enfermagem junto aos profissionais e futuros profissionais,
alunos, portanto, de saúde e enfermagem.
E nada
mais concreto e eivado de significados do que as experiências quotidianas dos
profissionais da saúde no exercício do seu trabalho. Desconstruir as situações
vividas nas instituições de saúde, por mais banais que pareçam a princípio, tem
se mostrado uma profícua maneira para situarmos os diversos graus de
responsabilidade ética dos sujeitos/instituições envolvidos em cada situação.
Dessa maneira, podemos “enxergar” o processo como um todo, fazendo uma “revisão
ética” das decisões tomadas, individual ou coletivamente, da não-ação como
posição defensiva do status quo, da
busca por soluções inovadoras como forma de mudança da situação desfavorável ou
discriminatória, enfim, da necessidade de tomar posições mais responsáveis
frente à saúde das pessoas que cuidamos profissionalmente e da nossa própria
saúde como trabalhadores-cuidadores.
Assim,
é preciso entender a saúde como direito e como possibilidade de conquista da
cidadania, ou seja, a saúde é um direito e um bem público e todo esforço –
individual ou coletivo – no sentido de conquistá-la e/ou mantê-la deve ser
considerado um exercício de Ética e de cidadania. Compreendemos, portanto, que
os traços principais da competência profissional em saúde e em Enfermagem atual
ultrapassam marcadamente a posição passiva e repetitiva de gente apenas “bem
treinada”, sendo que precisamos buscar a formação de profissionais não apenas
hábeis tecnicamente, mas de profissionais-cidadãos éticos, comprometidos com o
exercício da Ética e da cidadania própria e do outro e responsável por suas
ações, ainda que efetuadas no âmbito do trabalho coletivamente empreendido.
Consideramos,
entretanto, que, para a construção de uma atuação profissional voltada para a
cidadania e tendo por base a Ética, necessitamos propiciar aos profissionais de
saúde e Enfermagem, ainda no período de sua formação, condições para
desenvolvimento da competência humana que considera não apenas os
aspectos técnico-instrumentais envolvidos na prática profissional, mas que se
torna o pano de fundo onde se desdobram todas as demais competências voltadas
para o cuidado. É necessário, portanto, compreendê-la como um processo de
articulação e mobilização gradual e contínuo de conhecimentos gerais e
específicos, de habilidades teóricas e práticas, de hábitos, atitudes e, acima
de tudo, de valores éticos, que possibilite ao profissional o exercício
eficiente de seu trabalho, a participação ativa, consciente e crítica no mundo
do trabalho e na esfera social, além de sua efetiva auto-realização. Ou, nas
palavras de Deluiz1, a competência humana se apresenta como um outro
nome para a cidadania e, como esta, aponta para o processo emancipatório que
significa o processo histórico de conquista da condição de sujeito coletivo e
autônomo.
Utopia???
Talvez!!! Mas, nesse sentido pensamos como Boff2, que em seu livro
“Saber cuidar – Ética do humano – compaixão pela Terra”, afirma que a utopia
não pode ser utopista, pois, se assim fosse, transformar-se-ia em pura fantasia
e fuga irresponsável da realidade. Ela deve realizar-se num processo histórico
que tente dar corpo ao sonho e construir, passo a passo, os mil passos que o
caminho exige. E, com certeza, nesse caminhar os passos iniciais já estão sendo
dados, restando-nos, portanto, trilhar os próximos e os outros a seguir...
1.
Deluiz,
N. Qualificação, competências e certificação: visão do mundo do trabalho. Rev. Formação, Brasília (DF), 2001;
1 (2): 7-15.
2.
Boff,
L. Saber cuidar – Ética do humano –
compaixão pela Terra. Petrópolis: Vozes, 2002.
[1] Doutora em Enfermagem. Professora Adjunto da
Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Mato Grosso. Membro do Grupo
de pesquisa “Enfermagem, Saúde e Cidadania”
Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004 |