O REGIME RETÓRICO DA ESTRUTURA ARTÍSTICO-CONSTRUTIVA DAS VILAS SETECENTISTAS NO BRASIL-COLÔNIA

 

Rodrigo Almeida Bastos

(FEA-FUMEC e PUCMinas)

 

O povoamento e a implantação de novas povoações – várias vilas e uma única cidade – na capitania de Minas Gerais na primeira metade do século XVIII serviu a propósitos bastante convenientes à política de cunho teológico e fiscalista empreendida por Portugal.

 

Para além das conveniências ordinárias advindas dessa política de acomodação permanente de populações, os núcleos urbanos eram entendidos naqueles tempos como partes hierarquicamente integrantes do corpo político do reino lusitano. Deviam, portanto, não apenas servir ao desígnio utilitário da demarcação de territórios conquistados e à arrecadação fiscalista facilitada pela concentração urbana, como também, e significativamente, servir à permanente representação da dignidade e da decência dos pressupostos contra-reformistas que caracterizavam a união entre a Igreja e o Estado nos regimes monárquicos ibéricos nos séculos XVII e XVIII. A representação desses pressupostos teológico-políticos era orientada por procedimentos e preceitos retóricos, em especial nas práticas artístico-construtivas que os colocavam em cena no cotidiano das aglomerações urbanas. Povoações cômodas, decorosas e decentes representavam a decência e a integridade do reino lusitano, estratégia imprescindível à manutenção da coesão e da concórdia responsáveis pela sustentação do pacto colonial de sujeição com o qual os colonos se alienavam do poder em favor da figura pública do rei – cabeça (caput) do “corpo místico” do reino (1).

 

Não foi por acaso que desde o século XVI Portugal investiu expressivamente na formação de um corpo técnico de mestres, arquitetos e engenheiros militares, a serem responsáveis pela fábrica artístico-construtiva não apenas na metrópole mas sobretudo nas colônias, levando alguns estudiosos como Eduardo Horta Correia a identificarem a consolidação de uma verdadeira “escola portuguesa de urbanismo” que veio se formando desde o século XVI e atingiu seu apogeu justamente no século XVIII na colônia brasileira. Não é também por acaso que em Portugal se dá a primeira tradução fora da Itália do importante tratado latino sobre arquitetura de Vitrúvio (séc. I A.C., o mais antigo tratado de arquitetura remanescente), empreendida em 1541 por Pedro Nunes, cosmólogo e matemático português, lente na Escola particular de moços fidalgos do Paço da Ribeira no final do século XVI. Vários outros tratados de arquitetura e engenharia militar foram traduzidos e escritos em Portugal entre os séculos XVI e XVIII, servindo-se daquele e de outros tratados também modernos, redigidos principalmente na Itália e na França (2). Na colônia brasileira, tivemos aulas oficiais de arquitetura a partir dos últimos anos do século XVII, em Salvador, Rio de Janeiro, Recife e São Luís. Minas Gerais não possuiu dessas aulas oficiais de arquitetura e engenharia, mas temos referências de “lições práticas” que mestres e engenheiros efetivavam nos canteiros de obras religiosas e oficiais.

 

Estudei a consideração de um dos importantes preceitos retóricos desenvolvidos nos tratados de arquitetura estrangeiros e portugueses – o decoro, ou a conveniência –, cotejando suas indicações nas fontes documentais primárias competentes à implantação de novas povoações na primeira metade do século XVIII. Reconhecer a consideração desses preceitos de tão extremada relevância e tradição – hiperônimos da arte e da arquitetura ocidental desde a antiguidade até o advento do romantismo – nos levou a criticar aquela noção disseminada de que as povoações mineiras teriam se desenvolvido e se configurado “espontaneamente”. Este é um diagnóstico problemático, consagrado por vários estudiosos como Sylvio de Vasconcellos, Paulo Ferreira Santos e Roberta Marx Delson, que diz respeito não apenas a Minas Gerais mas à generalidade das povoações das regiões mineradoras, inclusive Goiás e Mato Grosso, que precisam ser revistas à luz desses procedimentos e princípios considerados pelos agentes luso-brasileiros nas políticas e práticas de implantação de novas povoações que denominei como “a arte do urbanismo conveniente” (3).

 

A consideração do decoro foi decisiva para a efetivação de uma política de povoamento com a qual se procurou conciliar as conveniências coloniais e as conveniências metropolitanas, em um território onde a permanência de povos e povoações foi deveras problemática desde o final do século XVII e imprescindível a partir do século XVIII, com o sucesso das empresas mineradoras. O decoro serviu à consolidação de uma estratégia de “fundação”, “aumento” e “conservação” de “novas povoações” prudentemente atenta aos costumes, às circunstâncias locais e às condições dos sítios, inclusive às construções preexistentes.

 

Nas escolhas dos sítios para as novas fundações, atentou-se não apenas para suas capacidades e comodidades, mas também para as conveniências éticas, como por exemplo na escolha do sítio para ereção de Vila Rica, atual Ouro Preto. O então governador da capitania, Antonio de Albuquerque Coelho de Carvalho – que possuía a experiência militar e construtiva –, conciliou a recomendação do Rei D. João V, que havia determinado implantar a dita Vila no arraial de Nossa Senhora do Pilar, com as “conveniências que os povos tinham achado para o comércio” (4) no sítio do arraial de Nossa Senhora da Conceição de Antônio Dias, declaradas pelos moradores na Junta Geral que efetivou a ereção. Resultado: a vila foi erguida na conjunção dos dois arraiais, eleição decisiva para o futuro surgimento de uma das praças mais importantes de nossa história urbana, a atual Praça Tiradentes de Ouro Preto.

 

A partir das ereções das vilas, que concentravam em suas câmaras vários arraiais, uma série de processos povoadores, por assim dizer urbanísticos, se efetivavam através principalmente das atividades dos vereadores, compreendidos naqueles tempos como os “zeladores das conveniências do povo” (5):

 1°) Adequação das estruturas construídas preexistentes: concessão de aforamentos sobre propriedades já estabelecidas pelos moradores; licenças para “retificação”, reforma e reconstrução de casas mais seguras e decentes; realinhamento e “endireitamento” de ruas e “calçadas”;

2°)Aumento” da povoação (expansão física e “acrescentamento” de dignidade): abertura de novos arruamentos e logradouros; concessão de novos aforamentos para construção de novas casas; implantação de novos edifícios públicos, câmara e cadeia, pontes e chafarizes; ereção de capelas e igrejas, consolidação de largos e praças; 

3°)Conservação”: “reformas”, “reparos”, “consertos” e “correições urbanas parcelares [ou seja, em partes de cidade] que visavam a manutenção de sua estrutura física e a correção de seu aspecto; manutenção da “comodidade”, da “decência” aparente, da “limpeza” e do “asseio” da povoação (6).

 

Esses processos povoadores ocorriam simultaneamente e eram complementares. Concomitantemente à abertura de novos arruamentos, outros eram realinhados – se não fosse possível arruar com alinhamentos estritamente retilíneos, que se mantivessem pelo menos contínuos; novos aforamentos se concediam a moradores enquanto outros licenciavam as reformas de seus ranchos em casas, cobrindo-os de “de telha” – material bem mais digno e decente do que a palha. O aumento da povoação e sua conservação representavam a solidez de sua permanência; a eleição do sítio e a conservação das várias partes da povoação implicavam também aumento de dignidade; assim como a crescente inserção de ornatos, entendidos estes desde elementos ornamentais até mesmo edifícios, notadamente as igrejas de irmandades e ordens terceiras.

 

Esses processos povoadores eram conduzidos por agentes luso-brasileiros, através de procedimentos costumeiros e princípios operadores. Esse conjunto de processos, agentes, procedimentos e princípios conformam o que denominei estrutura artístico-construtiva, modelar não apenas em Minas Gerais, mas em todo território colonial como se pode verificar nas documentações já publicadas.

 

Dentre os seus agentes: vereadores, juízes (ordinários e de ofícios), ouvidores, corregedores, governadores, mestres, oficiais, artistas e artesãos, procuradores dos moradores e das irmandades, conselheiros e secretários do Conselho Ultramarino, porventura o próprio rei e o Bispo, como no caso de Mariana, elevada a cidade em 1745, objeto apurado de reformas, reparos e aumentos significativos desde 1740.

 

Dentre os procedimentos: além da arrematação e aceitação das obras, a redação das “condições” e “apontamentos”, que consistiam em verdadeiros projetos discursivos, nos quais se encontravam medidas, proporções, designações estilísticas, referência a modelos miméticos, materiais e técnicas construtivas competentes à execução da obra; as “medições” e “louvações”, com as quais se aferia a “conformidade ao risco” e a “competência” de execução, necessárias à aceitação das obras arrematadas pelos construtores; as “correições”, realizadas tanto por vereadores e juízes a respeito da coisa pública (res publica) edificada, arruamentos e construções aparentes, quanto também pelos mestres de ofícios (geralmente “louvados”) a respeito de obras particulares como as realizadas em igrejas de irmandades e edifícios oficiais como as casas de câmara e palácios de governadores; as “vistorias”, feitas por esses mesmos agentes ordinários e também por “visitadores” que chegavam da metrópole, corregedores e ouvidores – objetivando a escolha de sítios para edifícios públicos, aberturas de novos arruamentos e praças, providências para “limpeza” e “asseio” de becos e arruamentos; “ajustes”, que visavam várias retificações, referentes a preços de contratos e também às próprias obras que mereciam “correções” e “ajustes” em suas execuções.

 

Dentre os princípios: “conveniência”, “decência”, “conformidade”, “perfeição”, “femosura”, “dignidade”, “adequação”, “elegância”, “competência do ornamento”, “proporção”, “comodidade”, “necessidade”, “asseio”, “limpeza”, “compostura”, “engenho”, “prudência”, etc. Princípios bastante concernentes ao resguardo do decoro das edificações e da cidade como um todo composto de partes necessariamente integradas e representantes do decoro e da dignidade do corpo místico constituído do reino.

 

Pesquisei a compreensão de vários desses termos, cotejando suas denotações em função da orientação diretiva e conveniente do decoro e demais competências retórico-poéticas do período em tela. Mas muito é preciso ainda se fazer a respeito. É preciso não somente continuar os estudos, como necessariamente incrementá-los, visando compreender melhor esses termos cujas transformações de sentido implicam atenção redobrada do pesquisador. Há que se considerar o período de transição que caracteriza o século XVIII luso-brasileiro, as anunciações do iluminismo e também as transformações de sensibilidade e gosto ocorridas até o alvorecer do século XIX. Ademais, o estudo do regime retórico que fundamentou a estrutura artístico-construtiva setecentista no Brasil se coloca como um caminho bastante promissor ao melhor conhecimento dos processos que estão na base da invenção, da disposição e da elocução da arte e da arquitetura coloniais luso-brasileiras, imprescindível para que possamos melhor compreender os processos de formação de nossas cidades.

 

Notas

(1)   A analogia é com o corpo hierarquicamente constituído da Igreja, tendo em Jesus Cristo a sua cabeça (ratio).

(2)   Cf. BUENO, Beatriz Piccolotto Siqueira. Desenho e desígnio: o Brasil dos engenheiros militares (1500-1822). Tese (Doutorado)-Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.

(3)   BASTOS, Rodrigo Almeida. A Arte do Urbanismo Conveniente: o decoro na implantação de novas povoações em Minas Gerais na primeira metade do século XVIII. Dissertação (Mestrado em Arquitetura e Urbanismo)-Escola de Arquitetura, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2003.

(4)   Arquivo Público Mineiro APM SC (Seção Colonial) 06, f. 20, 20v, 21. “Termo de erecçao de Vª Rica”. Vila Rica, 08/07/1711.

(5)   BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, e latino, aulico, anatomico, architectonico... Coimbra: Collegio das Artes da Companhia de Jesu, 1712. Vereadôr, v. 8, p. 437.

(6)   BASTOS, op. cit., p. 201.


Anais da 56ª Reunião Anual da SBPC - Cuiabá, MT - Julho/2004